Reuters: Bolsonaro recorre a aliados militares para definir política brasileira de vacinas contra o coronavírus

A Reuters viu as conversas internas no WhatsApp do Ministério da Saúde entre Kormann e outras autoridades. As mensagens mostravam que Kormann, agindo por ordem de um superior, os orientava a retirar os dados da pandemia do site.

Sergio Lima – Poder360

Da Reuters

Bolsonaro recorre a aliados militares para definir política brasileira de vacinas contra o coronavírus

Por Gabriel Stargardter e Anthony Boadle

RIO DE JANEIRO (Reuters) – O líder brasileiro Jair Bolsonaro está agindo para afirmar o controle da agência reguladora independente de saúde do país, a Anvisa, uma medida que alguns especialistas em saúde temem que politize a agência e dê ao presidente, um dos mais proeminentes céticos do coronavírus no mundo, o poder de controlar as aprovações de vacinas.

Bolsonaro, no dia 12 de novembro, indicou um soldado aposentado, Jorge Luiz Kormann, para assumir um dos cinco cargos de diretoria da Anvisa. Kormann, um ex-tenente-coronel sem experiência em medicina ou desenvolvimento de vacinas, lideraria a unidade encarregada de vacinas de sinal verde. Caso seja confirmado pelo Senado Federal, como se espera, os aliados do Bolsonaro ocupariam três das cinco diretorias da Anvisa, o que lhes dá maioria em todas as decisões da agência.

“A Anvisa está repleta de diretores que são aliados da postura negativa e irresponsável do Bolsonaro em relação à saúde pública”, disse Alexandre Padilha, ex-ministro da Saúde e legislador federal de esquerda. “Ele quer passar uma mensagem política de que apenas as vacinas que ele deseja serão incorporadas ao sistema público de saúde.”

A Reuters entrevistou mais de uma dúzia de funcionários atuais e ex-governadores, governadores estaduais e legisladores sobre os planos do Bolsonaro para a Anvisa, um regulador respeitado internacionalmente cujo papel na aprovação de medicamentos, dispositivos e tratamentos é semelhante ao da Food and Drug Administration dos EUA.

Muitos disseram que temem que a crescente influência do presidente na Anvisa esteja politizando o regulador, que vai aprovar várias vacinas em teste no Brasil. Embora não tenham citado evidências específicas, alguns temem que Bolsonaro, de olho na reeleição em 2022, possa usar as aprovações da Anvisa para acelerar as vacinas a aliados e reter as dos rivais.

Outros temem que a oposição cada vez maior de Bolsonaro às vacinas contra o coronavírus se infiltrará na Anvisa, minando sua credibilidade e alimentando o crescente fervor antivacinas no maior país da América Latina.

A Anvisa disse que é prerrogativa de Bolsonaro indicar diretores, cabendo ao Senado confirmá-los. “A Anvisa não tem … participação nesse processo”, afirmou em nota. Ele recusou mais comentários.

O gabinete do presidente não respondeu aos pedidos de comentários. O Ministério da Saúde, onde Kormann trabalha atualmente como vice-ministro da Saúde adjunto, também não quis comentar. Kormann não respondeu aos pedidos enviados por seu e-mail.

Bolsonaro minimizou repetidamente a gravidade do COVID-19 e elogiou o medicamento anti-malária hidroxicloroquina, que ele tomou quando contraiu o coronavírus em julho. No final do mês passado, ele disse que não tomaria nenhuma vacina contra o coronavírus que se tornasse disponível. Bolsonaro disse que a recusa era seu “direito” e que não esperava que o Congresso ordenasse imunizações.

O apoio público à vacinação COVID-19 está caindo em todo o Brasil, de acordo com uma pesquisa de novembro com residentes de quatro grandes cidades pela agência de pesquisa Datafolha. Em São Paulo, por exemplo, 72% dos entrevistados disseram que seriam vacinados, queda de 7 pontos em relação ao mês anterior, enquanto o apoio à imunização obrigatória caiu 14 pontos, para 58%.

Silvia Waiapi, alferes do Exército que foi até fevereiro secretária do Ministério da Saúde para os indígenas brasileiros, disse esperar que a formação militar de Kormann fortaleça a Anvisa.

“O presidente está estabelecendo a ordem no país e vemos que as coisas estão sendo conduzidas com muito cuidado na Anvisa”, disse Waiapi à Reuters.

No entanto, a Univisa, a associação dos trabalhadores da Anvisa, e o Sinagencias, o sindicato nacional dos funcionários da agência reguladora, se opuseram publicamente à indicação de Kormann devido à sua falta de experiência relevante.

Os presidentes brasileiros sempre nomearam diretores da Anvisa. Mas a agência tradicionalmente tem agido de forma independente, e seus diretores foram escolhidos por sua experiência, disseram funcionários atuais e ex-funcionários entrevistados pela Reuters.

SOLDADO LEAL

Além da inexperiência de Kormann, as fontes entrevistadas pela Reuters disseram que também se preocupam com sua proximidade com Bolsonaro.

A Reuters analisou os bate-papos internos exclusivos do WhatsApp do Ministério da Saúde em junho, quando o ministério foi envolvido em um escândalo depois que parou abruptamente de publicar dados abrangentes de casos e mortes de COVID-19 em seu site. Kormann desempenhou um papel central no esforço do ministério para ocultar essas estatísticas, mostram os chats.

Quando a pandemia atingiu pela primeira vez, Bolsonaro, um ex-capitão do exército, expulsou funcionários especialistas do Ministério da Saúde que defendiam medidas rígidas para controlar o vírus. Ele os substituiu por soldados sem experiência em saúde pública, desencadeando uma cadeia de eventos que selou o Brasil com o segundo maior número de mortes de COVID-19 do mundo: quase 177.000 mortes e mais de 6,6 milhões de infecções confirmadas.

Agora, conforme o foco muda para a aprovação da vacina, Bolsonaro parece estar seguindo o mesmo manual da Anvisa, disseram várias fontes. A nomeação de Kormann poderia permitir que Bolsonaro ditasse sua política de vacinas.

Por exemplo, Bolsonaro criticou repetidamente uma vacina chinesa, desenvolvida pela Sinovac Biotech Ltda, que está em fase final de testes no estado de São Paulo. Fã descarado do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ele imitou seu homólogo americano ao condenar a China como a fonte da pandemia.

João Doria, o governador de São Paulo, é amplamente visto como um potencial rival presidencial de Bolsonaro em 2022. Seu estado comprou milhões de doses da vacina Sinovac para inocular os moradores de São Paulo. Mas a Anvisa deve primeiro aprovar a segurança da vacina antes que as imunizações possam começar.

Bolsonaro muitas vezes procurou minar a credibilidade da vacina Sinovac. Em outubro, ele reverteu rapidamente um anúncio de seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, um general do exército na ativa, que havia dito em uma reunião de governadores estaduais que o governo federal planejava comprar a vacina Sinovac para incluir no programa nacional de vacinação do Brasil.

Bolsonaro disse que Pazuello foi mal interpretado: “Com certeza, não compraremos a vacina chinesa”, disse ele na mídia social em 21 de outubro, respondendo a um apoiador que o instou a não comprar a vacina.

Na terça-feira, o Ministério da Saúde delineou seu plano nacional preliminar de imunização. A vacina Sinovac não estava listada entre as que pretendia comprar.

A administração do Bolsonaro já tem um acordo com a AstraZeneca PLC para garantir o fornecimento de sua vacina contra o coronavírus. Outros candidatos incluem vacinas fabricadas pela Pfizer Inc e Janssen, uma unidade da Johnson & Johnson.

Sinovac não respondeu aos pedidos de comentários. Pazuello não respondeu às perguntas sobre se ele foi mal interpretado, nem por que a Sinovac foi deixado de fora da lista.

No mês passado, o presidente comemorou quando a Anvisa suspendeu temporariamente o ensaio São Paulo Sinovac devido ao suicídio de um paciente voluntário. Determinou-se que a morte não tinha relação com a vacina e o teste foi retomado rapidamente. Ainda assim, Bolsonaro chamou o atraso de “outra vitória de Jair Bolsonaro”.

Doria, o governador de São Paulo, não respondeu aos pedidos de comentário. Ele disse recentemente ao site de notícias de Brasília Metropoles que Bolsonaro tem muita influência no regulador de saúde.

“Hoje, há a suspeita de que a Anvisa possa sofrer interferência política do presidente e deixar de ser uma agência independente como deveria ser, como deve ser”, disse Doria em entrevista publicada no dia 26 de novembro.

DADOS TOMADOS

Bolsonaro já se destaca na Anvisa, que é comandada por um de seus aliados, o ex-contra-almirante da Marinha Antonio Barra Torres. Cirurgião treinado, Barra Torres foi confirmado no dia 20 de outubro. Torres foi notícia em março quando apareceu ao lado de Bolsonaro em um comício político ao ar livre em Brasília. Nenhum dos dois usava máscara facial.

Seis fontes disseram à Reuters que houve muitas reclamações internas na Anvisa sobre uma falha percebida pelo regulador, no governo de Barra Torres, em contestar com mais força a descrição do presidente da hidroxicloroquina como uma “cura” do COVID-19.

A Anvisa não respondeu a um pedido de comentário.

Outra aliada do Bolsonaro, Cristiane Jourdan, também foi confirmada como diretora em 20 de outubro. Médica e ex-diretora de hospital, ela apoiou o uso de hidroxicloroquina para tratar COVID-19, disseram duas fontes. Em sua conta no Instagram, ela postou no ano passado uma foto sua com Bolsonaro, a quem ela se referiu como “nossa lenda”.

A Anvisa não disponibilizou Barra Torres ou Jourdan para entrevistas. Eles não responderam às solicitações de comentários enviadas para suas contas de e-mail.

Em entrevista à Reuters no final de outubro, Barra Torres disse que a Anvisa sempre se pautará pela ciência.

“Nós, os cinco diretores, não estamos envolvidos em nenhuma questão política”, disse ele.

Kormann chegou ao Ministério da Saúde em maio, integrante de uma leva de militares indicados pelo governo Bolsonaro. Uma vez lá, ele rapidamente se envolveu em polêmica.

No início de junho, quando a carga de casos de coronavírus no Brasil começou a disparar, o Ministério da Saúde inesperadamente tirou do seu site dados públicos COVID-19 detalhados que documentavam a epidemia ao longo do tempo por estado e município. O movimento gerou indignação pública. Em poucos dias, o Supremo Tribunal Federal ordenou ao Ministério que restabelecesse esses dados por uma questão de segurança pública.

Até agora, pouco se sabe sobre o que levou à retirada dessas informações.

A Reuters viu as conversas internas no WhatsApp do Ministério da Saúde entre Kormann e outras autoridades. As mensagens mostravam que Kormann, agindo por ordem de um superior, os orientava a retirar os dados.

Os bate-papos mostram que Kormann e seus chefes militares ficaram alarmados com o número cumulativo de casos e mortes que pintou um quadro cada vez mais sombrio de uma pandemia que Bolsonaro descartou como uma “pequena gripe”. Eles queriam que esses números cumulativos fossem removidos e apenas as contagens diárias menores mostradas.

“Retire os dados CUMULATIVOS !!!” Kormann escreveu às 17:23 do dia 5 de junho, de acordo com uma captura de tela da conversa vista pela Reuters. Esse conteúdo não havia sido relatado anteriormente. Kormann deixou claro nos bate-papos que estava agindo por ordem do ministro da Saúde, Pazuello.

O Ministério da Saúde não respondeu aos pedidos de comentários nem disponibilizou Kormann ou Pazuello para comentários. Pazuello não respondeu ao pedido de comentários enviado por seu e-mail.

Poucas horas depois da diretriz de 5 de junho de Kormann, quase todas as estatísticas do COVID-19 foram retiradas do site.

No dia seguinte, Bolsonaro defendeu a retirada dos dados, dizendo no Twitter que “não reflete o momento em que o país está”.

Em 8 de junho, apenas três dias depois de Kormann ter dado a ordem de retirar os dados, ele foi promovido a vice-ministro da Saúde.

Um ex-chefe da Anvisa disse que a nomeação de Kormann para o regulador sanitário mostra que “há uma hierarquia militar” sendo instalada ali: “Bolsonaro é o comandante-chefe”.

Redação

1 Comentário

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  1. A irresponsabilidade deste senhor é sem limites e muito piorada pela sua insanidade diante de obstáculos, que sua insensatez vai piorando os resultados e o desespero entra adiante. Na pior crise sanitária pela qual a humanidade jamais passou e o sujeito vai cada vez mais se divorciando do bom senso e da ciência. Se desfaz de ministros da saúde que aceitaram participar de seu governo e por serem médicos e assim ter mais dificuldade de se afastar da ciência, o irresponsável os afasta e traz um general que, talvez mesmo contra princípios, aceita maltratar a ciência e nem o seu setor de estudo que é a logística está mais alinhado, já que participa de um prejuízo milionário com a questão dos testes que poderão ser inutilizados. Agora, de onde irá encontrar recursos no meio militar com interesse e conhecimento suficiente para encarar o risco de degringolar sua carreira no meio da confusão governista?

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