Serviços sociais públicos para a retomada verde, por Celia Lessa Kerstenetzky

Serviços sociais foram fundamentais para a reconstrução nacional e a coesão social nos países beligerantes no pós-guerra.

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Democracia e Economia – Finde

Serviços sociais públicos para a retomada verde

por Celia Lessa Kerstenetzky

Difícil encontrar quem se oponha à tese de que serviços sociais públicos são essenciais à vida social. Economistas, sociólogos, cientistas políticos e historiadores estão de acordo quanto à essencialidade desses serviços. Alguns singularizam os serviços de educação e de saúde, outros incluem a cultura e o lazer, outros lembram ainda os cuidados, a habitação popular, o transporte coletivo, o saneamento. Entre os cidadãos ordinários, o consenso não deverá ser menos forte. Os serviços sociais se tornaram a face mais visível do direito ao compartilhamento da riqueza social a que se intitulam os cidadãos. Afinal, não há riqueza sem cooperação social e a malha de instituições que a sustenta.

Esse sentimento coletivo tem história. Serviços sociais foram fundamentais para a reconstrução nacional e a coesão social nos países beligerantes no pós-guerra. Atenderam a necessidades sociais diminuindo as diferenças sociais que se vinham acumulando desde o início do século até atingir ápices vertiginosos na Grande Depressão da década de 1930. Piketty nos lembra, com razão, que uma classe média “patrimonial” emergiu então, gente que só então teve acesso à casa própria. Mas foi também nesse período que se expandiram os sistemas de educação e saúde e as muitas instituições culturais que ajudaram a preencher o rarefeito espaço do meio de sociedades polarizadas. Nas instituições públicas em que se proviam os muitos serviços sociais se criou finalmente algo como um espaço público – nem doméstico ou afetivo, nem meramente mercantil – conectando os diferentes estratos sociais, base para noções de identidade nacional e propósito comum. Mais ainda, se forjou uma classe média “ocupacional”, em decorrência dos novos e numerosos empregos criados nos serviços sociais. Exemplo célebre é o National Health Service britânico que se tornou o maior empregador isolado da Europa do pós-guerra. Feito nada banal: celebração coletiva da vida frente à carnificina do passado. Em ainda outro sentido cooperaram esses serviços para dissolver a rigidez de sociedades polarizadas: eles erigiram uma estrutura de oportunidades que introduziu fluidez e mobilidade – eles facilitaram a circulação de vários “capitais”: educacionais, culturais, sociais, que ampliaram escolhas para boa parte da população. Desse modo cumpriram o mandato de integração social que cabe à política social.       

E, no entanto, a luta pela manutenção e expansão dos serviços sociais públicos tem sido dura. A partir dos anos 1980 a função social do estado tem sido constantemente aviltada, apodada como desperdício, gastança, irresponsabilidade fiscal, destruição de incentivos e outros vitupérios. A despeito do sucesso relativo desse sistema de crenças em se manifestar em realizações concretas, especialmente em países periféricos, mas disfarçadamente também em países avançados, é preciso reconhecer: nada mais retrógrado, atrasado, míope e obscurantista do que juízos semelhantes – isso, em hipótese benigna. A situação corrente mais do que justifica, de fato exige, atenção aos serviços sociais públicos. Mundo afora, mas com especial intensidade em contextos menos desenvolvidos como o brasileiro. É questão existencial no mais alto grau.

E por que a urgência? Trata-se, como diria o Cartola, dos abismos que cavamos com nossos próprios pés: as desigualdades crescentes, a repor as polarizações do passado, a emergência climática e as perdas desastrosas de biodiversidade, a abrir passagem para pandemias, o desafio aos empregos representado pela automação. O avanço dos serviços sociais públicos é estratégia chave para enfrentar esses desafios. O potencial para reduzir desigualdades está bem à vista nos resultados obtidos no século passado – os desafios contemporâneos apenas exigem que a resposta seja mais intensa e inclua novas áreas, como os cuidados e a conectividade. O potencial para enfrentar a emergência climática está à vista na baixa pegada ecológica dos serviços sociais, confirmada em pesquisas recentes inclusive para o Brasil. O potencial para gerar empregos, empregos de qualidade, é identificável em diversos casos nacionais, na OCDE pode alcançar até 40% do emprego– no Brasil, não passa de 8%, a despeito das imensas necessidades sociais represadas.

O que torna essa estratégia atraente para países como o Brasil é a possibilidade de resolver a demanda social sem cavar abismos, ao contrário, os evitando. É atendimento a necessidades sociais – em saúde, educação, cuidados, cultura, lazer, habitação, saneamento, transporte coletivo, conectividade – que reduz desigualdades de bem-estar e gera empregos “limpos”, formais, com jornada de trabalho regulamentada e equitativos (a participação feminina tende a superar a masculina; a participação de não-brancos tende a superar a de brancos).

Resumidamente, associadas aos numerosos empregos que será necessário multiplicar para atender a demanda social, estarão (1) uma injeção substancial de renda disponível às famílias, já que não precisarão dispender recursos na compra dos serviços de provisão pública, com enorme impacto sobre pobreza e desigualdade; (2) uma importante massa salarial que impulsionará o consumo de massa e produzirá efeitos multiplicadores sobre a renda e o emprego; (3) uma fonte potencial de capacitações para a constituição de uma força de trabalho saudável, instruída, criativa e deliberativa; (4) uma estrutura de suporte para facilitar o emprego feminino; (5) uma estrutura de oportunidades universais de bem-estar e de empregos capaz de desafiar iniquidades raciais, de gênero, etárias e de origem.             

Vamos nessa?

Celia Lessa Kerstenetzky – professora titular do Instituto de Economia da UFRJ e coordenadora do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento-CEDE (@CEDE_grupo)

FINDE – O grupo de pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores da UFF e de outras instituições, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. (FINDE | Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento do PPGE/UFF)

O Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas. O grupo objetiva estimular o diálogo e interação entre Economia e Política, tanto na formulação teórica quanto na análise da realidade do Brasil e de outros países. (Apresentação – GEEP – Grupo de Estudos de Economia e Política (uerj.br))

Redação

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