Tabu e ficção na realidade brasileira

Ir ao sebo e procurar algo ao acaso pode ser uma experiência interessante. Hoje, por exemplo, fui a um que há na Rua João Batista, Centro, Osasco, SP e topei com o livro de bolso CAMPEÕES DO MUNDO, Dias Gomes, Melhoramentos, 1990. Conforme a nota do próprio autor, a “peça foi escrita, evidentemente, em cima de fatos acontecidos e hoje amplamente divulgados. Convém ressaltar, entretanto, que suas personagens são absolutamente fictícias e que a realidade foi manipulada e recriada segundo os interesses da ficção dramática.” (p. 29) O tema da peça a resistência a ditadura e a Copa do Mundo.

 

Abro ao acaso a peça e topo com o seguinte diálogo na Cena IV:

 

“RIBA

A lista com os nomes dos pesos?

 

VELHO

Fica pra depois, quando eles  divulgarem o manifesto.”

 

Ao fim da cena VI leio:

 

O torturador sai. A luz se apaga em resistência, fica apenas um foco no Inquiridor, cujo rosto se ilumina, como se escutasse, embevecido, a filha tocar.”

 

No início da cena VII o locutor anuncia que o Presidente Médice enviou um telegrama ao chefe da delegação brasileira que disputa a Copa do Mundo.

 

RIBA

Já pensou se o Brasil vence? Os gorilas vão capitalizar, vão fazer um carnaval. E o povo vai esquecer tudo, a fome, a opressão. Só que não dá para torcer contra o Brasil, não dá. Você não acha?

 

VELHO

Por que não? O selecionado não é a pátria de chuteiras?

 

RIBA

É tem razão. Acho que é uma debilidade minha. Não consigo escapar ao envolvimento emocional e raciocinar politicamente. Não, não me venha com aquele chavão ‘debilidade pequeno-burguesa’, a classe operária tá toda envolvida, torcendo adoidado.

 

VELHO

Não falei nada.”

 

Lendo os fragmentos ao acaso lembro-me que há muito tempo não ouvia falar de Dias Gomes. Depois começo a fazer ligações com a realidade. O Brasil não ganhou a Copa do Mundo e a imprensa tupiniquim tentou beneficiar a oposição creditando o fracasso da seleção ao governo Dilma Rousseff. Ativistas de esquerda foram presos porque poderiam realizar manifestações violentas contra a Copa do Mundo. Após eles passarem uma temporada na prisão por serem culpados por suspeita a Justiça lhes concedeu HC. Ninguém sequer cogitou sequestrar um embaixador para exigir a libertação deles. Os personagens de Dias Gomes temiam que a ditadura utilizasse uma vitória brasileira em 1970, portanto, política e futebol continuam juntos misturados no imaginário nacional. Mas desta vez a ‘debilidade pequeno-burguesa’ é dos jornalistas de direita e não dos militantes de esquerda.

 

A tortura tratada abertamente na peça de Dias Gomes, que na cena VI descreveu um interrogatório com o uso da Pimentinha (como era chamada a máquina de dar choques), continua sendo um tabu. Todo mundo sabe que a tortura é usada nas delegacias e presídios brasileiros, mas todo mundo (especialmente os Juizes e Desembargadores) faz de conta que isto não é verdade. Não regredimos ao regime infame porque de fato nunca saímos dele em razão de outro tabu: a impossibilidade de punição dos torturadores do regime militar.

 

Hoje mesmo no Facebook li um artigo da Comissão da Verdade reclamando que o Exército Brasileiro segue se recusando a colaborar com os trabalhos da mesma. A ditadura fictícia de Dias Gomes equivale à ficção de democracia em que vivemos na atualidade. Os tabus da tortura cotidianamente praticada e não vista e da impossibilidade de punição dos torturadores se liga a outro tabu, o da necessidade de preservar a imagem do Exército.

 

Em seu livro Totem e Tabu, Freud afirma que as “…restrições do tabu são algo diferente das proibições religiosas ou morais. Elas não são atribuídas ao mandamento de um deus, mas no fundo são evidentes por si mesmas; o que as distingue das proibições morais é o fato de não estarem incluídas num sistema que declare de um modo bem geral a necessidade de renuncias e que também fundamente essa necessidade. As proibições do tabu carecem de qualquer fundamentação; são de origem desconhecida; incompreensíveis para nós, parecem naturais para aqueles que se encontram sob seu domínio.” (Totem e Tabu, Sigmund Freud, L&PM Editores, 2013, p. 58)

 

Nós  mandamos, vocês obedecem. Nós  batemos, vocês se resignam ou reclamam e não serão atendidos. O Exército é a pátria de chuteiras, por isto a seleção tem que ganhar quando os generais estão no poder e deve perder quando queremos mudar o governo pelo voto. Por traz de todos os tabus, portanto, há outro ainda mais perverso e que diz respeito a quem o país pertence. A Constituição Federal diz que o Brasil pertence a todos os brasileiros, pois todos compartilham indistintamente a mesma soberania que tem poder para investir as autoridades nos mandatos públicos mediante o voto da maioria. Alguns brasileiros, porém, parecem acreditar que são mais donos do país que os demais. São eles que dividem o país em castas e que criam e alimentam todos estes tabus que derivam do tabu fundamental que sugere a existência de um país dentro do Brasil que não pertence a todos os brasileiros e que está acima dele.

 

Voltando para casa e refletindo sobre o impasse que persiste desde o fim da ditadura que de fato ainda não findou, lembrei-me de algo importante. Em 1987, portanto, durante o processo constituinte, enviei uma carta para o Painel do Leitor da Folha de São Paulo criticando um Desembargador do TJSP que havia defendido a tese de que os crimes da ditadura deveriam ser considerados prescritíveis. Ao chegar em casa fui fuçar no arquivo digital da Folha e consegui localizar o pequeno texto:

 

“Argumentar que a prescrição da tortura deve ser prevista na nova Constituição para assegurar a paz e a harmonia social é a mesma coisa que dizer que a nudez do rei está escondida pela mais bela roupa invisível. O eminente desembargador Luis Carlos Galvão Coelho se esquece que justamente a imprescritibilidade de tais crimes é que proporcionam segurança social, porque torturada, a vítima terá a certeza de que tal crime não ficará impune, tanto quanto seu algoz. Também a sociedade por via da inibição, não estará mais sujeita às vicissitudes de uma ditadura militar, que de resto, permanece, somente que velada, inclusive na consciência de determinadas pessoas.”

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=834096879947475&set=a.345737828783385.85599.100000415136357&type=1&theater

 

Na época que meu comentário foi publicado na Folha de São Paulo eu era assinante do jornal. O mesmo era entregue em casa depois que eu saia para trabalhar. Eu só folheava o mesmo quando chegavas em casa a noite, separando os cadernos que levaria para ler no ônibus na manhã seguinte. Naquele dia meu pai esperou-me acordado. Assim que entrei em casa, ele me mostrou o Painel do Leitor e me deu uma bronca. “Quem lhe permitiu escrever isto e mandar para o jornal?”  Ninguém, respondi. O velho João de Oliveira Ribeiro começou então uma longa arenga. Se bem me lembro, disse ele que eu corria grande risco discutindo publicamente assuntos tão delicados e ainda por cima tendo a ousadia de criticar um Desembargador do TJSP. Ele sabia do que estava falando, pois vários de seus amigos comunistas haviam sido presos torturados e mortos e ele não queria que isto ocorresse comigo. Ri e disse-lhe que os tempos eram outros. Não eram não. Eu é que era jovem, entendem?

 

A Folha de São Paulo publicou meu comentário no Painel do Leitor, mas tomou o cuidado de obter uma resposta do Desembargador criticado. Minha discordância em relação ao artigo que ele havia publicado no jornal sobre o assunto, mesmo que tivesse mínima relevância, não poderia ser admitida. A opinião de quem defendia a harmonização social mediante a impunidade dos criminosos da ditadura deveria prevalecer. Quem dele discordasse não havia entendido o principal: a pressuposta hierarquia que permite a uns mandar obrigando outros a obedecer.

 

A impunidade daqueles que mandaram durante a ditadura era o problema quando a Folha publicou meu comentário no Painel do Leitor. A impunidade deles continua sendo o problema mais grave do Brasil, país em que algozes e vítimas têm razões para rir e chorar respectivamente em razão da predominância da injustiça porque este é o desejo cruel daqueles que deveriam distribuir justiça. Assim eram as coisas em 1987, assim elas continuam em 2014 a julgar pela crítica que a Comissão da Verdade fez hoje no Facebook à resistência do Exército Brasileiro em colaborar com as investigações em curso. O tabu do qual derivam todos os outros tabus ainda não foi removido do imaginário dos Donos do Poder e desgraçadamente não temos nenhum dramaturgo como Dias Gomes para rir desta democracia fictícia em que vivemos.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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