Universalismo da Democracia, da Justiça versus Parcialidade, por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

Ao julgar o pedido de habeas corpus do ex Presidente Lula, o Supremo Tribunal Federal recusou-se à aplicação da modernidade da filosofia do direito por meio da universidade.

Universalismo da Democracia, da Justiça versus Parcialidade

por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

Em 1904, durante os escritos em comemoração ao centenário de falecimento de Immanuel Kant, surgiu um grupo de intelectuais que ficou conheço pelo nome de os “novos kantianos”: Franz Staudiger, Franz Mehring, Hans Jörg Sandküler, Max Adler. Tais autores, dentre outros, refletiram sobre um possível diálogo entre Kant e Marx, posicionando-se ora favoravelmente à sua possibilidade, ora contra. O homem livre de Kant e do Iluminismo é aquele liberto do jugo absolutista, do domínio do obscurantismo religioso; é o homem em busca da a razão universal. O de Marx é o liberto da alienação capitalista. Nos dois casos, a liberdade individual, de o homem ser senhor seu próprio destino, é uma exigência fundamental para a transformação da sociedade mundial – na direção de uma paz eterna, como quer Kant – ou no rumo socialista emancipatório, que se dará por meio da revolução – como formulou Marx. Franz Staudinger registra a conjunção “onde o atual socialismo relaciona-se intimamente com a idade clássica, embora não ligados como uma conseqüência direta”. Max Adler identifica convergência entre Kant e as idéias do socialismo. Para Adler, a condenação expressa de Kant à indiferença da nobreza, na iminência e durante guerra, encastelada em suas frívolas atividades, corresponde à crítica de Marx ao militarismo e armementismo inerente à natureza do Estado capitalista para sobrevivência.

Assim como Kant, condicionava Marx a liberdade do homem à sua ação permanente, a um agir material e teoricamente neste sentido. Se a proposta de paz eterna kantiana é um projeto universal concebido a ser realizado pelos homens na Terra, para Marx desempenham filosofia e ação humana função central. Desta forma, “assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas teóricas”. Franz Mehring, social-democrata austríaco de primeira hora, lembra que o sentido da ética em Kant e Marx seria idêntico: o que os afasta de forma inconciliável é a respectiva “fundamentação analítica”.

Kant desenvolveu seu imperativo categórico de comportamento pessoal numa perspectiva universal: aquilo que não querem te façam, não faze aos outros. Se a lei vale para mim, valerá para o outro. O republicanismo kantiano reforça seu lado universal quando de seu projeto para uma paz perpétua entre os homens, a qual somente será possível se universal; primeiro na forma de artigos preliminares, depois na forma de artigos definitivos. Um projeto baseado no direito; não no idealismo da boa vontade.

Marx recorre ao caráter universal de direitos de todos, o que somente será conseguido com uma revolução mundial. A universalidade é a chave de uma outra forma de democracia; da igualdade entre todos os homens. Assim como em Kant, a realização universal da igualdade de todos perante a lei não cairá do céu. Haverá de ser produto da ação humana. Nos dois casos, chama a atenção o olhar especial sobre o universalismo, à firme busca por tratamento igual entre todos. Não há uma teoria do direito em Marx, como há em Kant, e, assim, a pergunta que somos obrigados a fazer é a mesma dos novos kantianos: o que o direito pode ganhar com Marx. Muito. Fiquemos no aspecto da universalidade.

Ao julgar o pedido de habeas corpus do ex Presidente Lula, o Supremo Tribunal Federal recusou-se à aplicação da modernidade da filosofia do direito por meio da universidade. A igualdade de todos perante a lei é central no conceito de democracia, e consiste na grande diferença da democracia desde os gregos antigos. Para estes, e até para os liberais, o conceito de democracia convivia com a legitimidade da escravidão, com a exclusão da participação em qualquer processo decisório – isto é, de votar ou ser votado – de estrangeiros, mulheres e pobres. Será o Iluminismo a insistir que todos são iguais perante a lei.

Quando se observa a posição de julgadores no Supremo Tribunal Federal a renegarem a aplicação universal e igual da lei em virtude do peso político e/ou social do eventual beneficiado da decisão, rompeu-se o vínculo civilizatório que tanto custou ao Iluminismo, aos iluministas e aos que lutaram os últimos 200 anos pela aplicação racional democrática das leis e das constituições. Em outras palavras: abandonou-se a perspectiva universal, pela particularistas.

Alguns elementos objetivos ocorridos na sessão de julgamento autorizam esta triste conclusão, relativamente à nossa mais elevada Corte Judiciária. Ministros do STF manifestaram abertamente sua possibilidade de mudança de entendimento quando do julgamento do mérito do pedido de habeas corpus que se fundamenta na comprovada e escandalosa suspeição do julgador do ex Presidente Lula, ao ponto de outro integrante reconhecer publicamente que, não se tratasse do ex Presidente, a ordem de soltura teria sido concedida. Outro membro da mesma Turma do STF não viu o menor embaraço em mandar soltar quem carrega mala de dinheiro em plena via pública; carga que nada mais é a comprovação explícita do apurado da corrupção. Muito recentemente, este membro afirmou grave e solenemente – um desassombrado Pacheco! – que a Operação Lava Jato “não é suscetível a retrocessos”. A Constituição, a igualdade e a universalidade da aplicação das leis são.

Que lições tiramos? A Primeira delas é a de que nossa Constituição fracassou: estabeleceu princípios da modernidade universalista para aplicação do direito, e estes restaram numa cama de Procusto nas mãos de qualquer membro do Ministério Público ou do Judiciário. Deixo ao melhor exemplo da intelectualidade nacional sobre o assunto, Lenio Streck, a explicação da natureza do que liquidou nossa Constituição por interpretação, ponderação et caterva. A segunda lição, e mais penosa: a progressividade da história constitucional não passa de um mito. O ponto a que chegamos é aquele da inflexão pessoalista de cada um dos integrantes do STF. Não dependemos mais da racional universalidade, defendida seja idealismo liberal kantiano, seja pela filosofia da revolução. Estamos nas mãos da convicção individual, que não esconde seu mais obscuro desejo localizado de manter seu entendimento, que é, na verdade, seu poder contra a conquista do que significou, e ainda significa, a legalidade democrática e universal.

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima – Professor Titular da Universidade de Fortaleza. Procurador do Município de Fortaleza.

Redação

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