Violência e eleições, por Leonardo Avritzer

Violência e eleições

por Leonardo Avritzer

A primeira semana após o primeiro turno das eleições traz uma antecipação das ações que poderão vir a constituir a política normal no Brasil a partir do ano que vem. A se confirmar o resultado do primeiro turno, teremos não apenas um governo que se apoia fortemente em instituições político-judiciais, mas também no desencadeamento da violência a partir dos atores sociais.

A principal reação ao resultado do primeiro turno veio nos primeiros dias dessa semana de dois lugares diferentes. De um lado, do próprio indivíduo comum que já começou a transformar o político através de um processo de “higienização do campo político”. O homem comum informado por meio de notícias falsas e desesperado com o “assalto” que um governo de esquerda pode trazer aos seus valores pessoais e religiosos tomou essa tarefa nas suas próprias mãos, como uma tarefa pessoal. 

Em segundo lugar, vemos membros do aparato policial ultrapassar completamente suas prerrogativas transferindo para si mesmos um processo de julgamento de atos de violência que a princípio  caberiam ao campo jurídico.  Dois episódios  ocorridos nos primeiros dias desta semana  exemplificam os pontos acima abordados. O primeiro deles ocorreu ainda na madrugada de domingo para segunda-feira na cidade de Salvador (Bahia), onde um mestre capoeirista, Moá de Catendê, foi esfaqueado após expressar sua opinião contra o candidato Jair Bolsonaro em um bar da periferia de Salvador. O segundo episódio foi um assalto a uma adolescente vestindo uma camiseta do #elenão.

Qualquer crime pode ser atribuído a um estado de desequilíbrio momentâneo entre indivíduos ou a um ato de irracionalidade, mas não é difícil trabalhar com a hipótese de que existe de maneira clara no Brasil, hoje, um processo de incitação da violência por parte do homem comum, processo esse que tem sua origem na própria maneira como a campanha do candidato Jair Bolsonaro estabelece uma diferenciação entre amigo e inimigo no interior do campo político e na sociedade como um todo.

Mas chama também a atenção a violência instituída pelo sistema de justiça e pela polícia. O caso da jovem em Porto Alegre, que por usar uma camiseta do #elenão teve a suástica inscrita em seu abdômen, é dos mais graves ocorridos neste processo eleitoral onde uma parte da população brasileira acabou sucumbida frente à irracionalidade. Se o ato em si já é de uma violência indescritível, o cinismo do delegado de polícia torna-o ainda mais grave. Ele coloca o problema clássico de quem guarda os guardiões ou do que uma sociedade pode esperar quando o seu sistema policial e de justiça fracassa rotundamente e um delegado vê uma suástica mas diz que aquilo não é uma suástica. Em ambos os casos vemos no Brasil a repetição de características do autoritarismo e do fascismo que muitos, entre eles Stephan Zweig, consideravam inexistentes no nosso país.

A violência oriunda do homem comum é um dos traços principais da teoria do autoritarismo de Hannah Arendt. Para ela, o indivíduo qued perpetra atos de violência na modernidade é um pai de família ou um bom vizinho que em todas as outras atividades humanas poderia passar desapercebido. Esse parece ser um elemento forte na atual conjuntura no Brasil, onde a violação de direitos e atentados políticos têm sido realizados pelo assim chamado “homem comum”. A intolerância está ligada a uma visão do homem médio sobre política, visão essa reforçada pelo pertencimento a um sub-grupo na rede e não por acaso em redes familiares de WhatsApp. Ou seja, elementos familiares e religiosos jogam, no Brasil de hoje, o papel de desencadeadores da violência política. Tal como afirmou Kim Kataguiri em recente conversa com jornalista do Estado de São Paulo “O homem médio, que nunca foi organizado politicamente, que não estava em partido ou sindicato, em organização estudantil, em nada, agora está começando a se organizar e levantar sua voz e com anseio de ter seus valores representados na política.” (Estadão 05/10/2017).

Ou seja, vivemos no Brasil um aggiornamento da tese arendtiana ou uma reintrodução pela porta dos fundos da prática da violência pelo homem comum que rompe com a estrutura do que foi vigente até mesmo em momentos de ruptura democrática como em 1964.

Este é um momento grave na história do Brasil que ainda pode ser revertido com custos relativamente baixos. Para isso basta que saiamos da derivada não liberal e anti-democrática que entramos desde a eleição de 2014 e da qual não saímos. As lideranças políticas, intelectuais e midiáticas precisam posicionar-se rapidamente sobre o surto de violência que acomete o país e que implicou em mais de 50 episódios de ataques ou aos apoiadores de Haddad ou aos críticos de Bolsonaro que, sabemos, não são necessariamente os mesmos. A irracionalidade do homem comum só poderá ser revertida se as instituições capazes de civilizar a luta política se expressem de forma clara e contundente em relação a esta via que conduzirá o país ao desastre político. Ainda há tempo de evita-lo.

 

Leonardo Avritzer

5 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Quando o segundo tiver passado

    Quando o segundo tiver passado, poderá ser iniciado o livre debate sobre quem são os responsáveis por esse estado de coisas a que chegamos.

  2. …”teremos não apenas um

    …”teremos não apenas um governo que se apoia fortemente em instituições político-judiciais, mas também no desencadeamento da violência a partir dos atores sociais.”

    Será que você não está esquecendo-se, caro Leonardo, do apoio da iniciativa privada? Firmas de vão das enormes como a firma “Globo” ao pequeno industrial que ameaça seus funcionários de fechar caso Bolsonaro não ganhe? Donos de lojas nos shoppings da vida a achacar e aliciar balconistas? Milhares… milhões de micro, pequenos e médios empresários de todos os ramos – indústria, comércio, serviços, agricultura… ah, esses coronéis do campo! – desfechando impunes relhadas em quem pensa diferente? O que seria das instituições político-jurídiciais dem o apoio – ou a ameaça – das firmas privadas que detém o oligopólio da imagem pública? O que seria da barbárie se não fosse pelo silêncio anuente das empresas de comunicação em massa?

    Não basta agora, a pouco dias da eleição, que essas empresas chamem Bolsoraro de “mal-criado” – acusação mais grave não será feita -, isso se faz na tentativa de manter público bolsoraiano e ao mesmo tempo de não ficar tão mal na fita, um pedido fajuto e apenas pró-forma de desculpas pelo apoio à ditadura, como se a ditadura estivesse morta… O trabalho de induzir a cidadania teria que ter sido feito há anos. Mas sabe como é… cidadão não compra, quem compra é consumidor.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador