Violência sexual, castigos físicos e preconceito na Faculdade de Medicina da USP

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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da Ponte

Violência sexual, castigos físicos e preconceito na Faculdade de Medicina da USP

Tatiana Merlino, Igor Ojeda, Caio Palazzo/Vídeos e Rafael Bonifácio/Edição de vídeos 

Na série de reportagens que tem início nesta terça-feira (11/11), a Ponte aborda inúmeras denúncias de violações ocorridas no ambiente de uma das faculdades mais respeitadas do país. Lá, os abusos são sistemáticos e naturalizados. Em nome da tradição, a ordem é silenciar

Fachada da Faculdade de Medicina da USP

Fachada da Faculdade de Medicina da USP | Foto: Divulgação

Muitas das garotas têm menos de 20 anos. A maior parte delas é branca, de família de classe A ou B. Estão felizes por realizar um sonho. Apreensivas pelos desafios que enfrentarão nos anos seguintes. Assustadas com o novo ambiente e os rostos desconhecidos.

São reunidas em círculo. Em volta, outro círculo, de garotos igualmente brancos, igualmente nascidos em famílias ricas ou de classe média alta. Mas são mais velhos. Intimidadores. Ordenam que todas gritem “bu”. Elas obedecem:

– Bu! Bu! Bu! Bu! Bu! Bu!

Um coro alto de vozes masculinas, a dos garotos em volta das garotas, abafa as vozes femininas e ressoa pelo ambiente:

– Buceta! Buceta! Buceta eu como a seco! No cu eu passo cuspe! Medicina é só na USP!

É assim que calouras da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) são recepcionadas em seu primeiro dia dessa nova fase da vida. Todos os anos. É uma das muitas tradições da faculdade de ciências médicas considerada a melhor do país. “De elite.” Para as mulheres, no entanto, grande parte dessas tradições se traduz em opressão permanente, que traz como consequência extrema casos graves de abusos sexuais, incluindo estupros, no interior do ambiente universitário. Casos sobre os quais recai um pesado manto de silêncio que impede que se tome providências a respeito. É fundamental que se preserve o bom nome da instituição.

Ou melhor: das instituições, no plural. Pois a FMUSP abriga entidades tão tradicionais que elas próprias parecem ser autossuficientes. É o caso da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz (AAAOC), ou simplesmente Atlética, e do Show Medicina, que reúne alunos para uma apresentação teatral anual e que recentemente virou notícia quando estudantes que dele fazem parte pintaram um anúncio de sua 72ª edição sobre um grafite na avenida Rebouças, em São Paulo.

Violências sexuais, trotes violentos, castigos físicos, humilhações, machismo, racismo e discriminação social. A Ponte reuniu inúmeras denúncias de violações sistemáticas aos direitos humanos ocorridas nessas instituições, quando não incentivadas ou promovidas por elas. Comumente varridos para debaixo do tapete, tais abusos passam atualmente por uma inédita publicização, fruto da luta das vítimas e de coletivos de direitos humanos da faculdade. Tanto que hoje são alvos de investigação por parte do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e objetos de uma histórica comissão interna formada por professores com o objetivo de apurá-los. As denúncias também chegaram à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT), que realizará uma audiência pública sobre o tema nesta terça, 11/11.

Com esta reportagem, a Ponte dá início a uma série especial sobre o assunto. Tradição, hierarquia, segredo, ritualismo, elitismo, regras rígidas e punições são as palavras-chave. Os relatos são impactantes.

Abusos sexuais: a naturalização

Na segunda-feira à tarde da semana de recepção aos calouros, acontece o primeiro evento do ano no clube da Atlética, no bairro paulistano de Pinheiros. É a “Espumada”. Os estudantes de Medicina festejam com churrasco e bebidas o início do novo semestre. Numa quadra poliesportiva, é formada uma espécie de piscina cheia de espuma, que chega a cobrir a cabeça dos presentes. Garotas e garotos que lá entram mal veem um ao outro. Mas são elas as mais vulneráveis. Mãos masculinas anônimas apalpam tudo que encontram pela frente: seios, bundas, vaginas. “A caloura não sabe como é a festa. Qualquer menina que entra na espuma perde o controle sobre o corpo. É mão de todo lado, sem você saber quem é. O menino te agarra, te beija. E se você tenta fazer algo, a resposta é que se você está na espuma é porque quer, está lá para isso. Rola uma pressão. Se está lá é porque está topando qualquer negócio”, relata uma das alunas, que não quis se identificar. “Os veteranos abusam do poder que têm sobre as meninas, que estão vulneráveis, não sabem o que está acontecendo. Muitas ficam bêbadas. Abusam mesmo delas.”

“Muitos veteranos usam o fato de você estar numa situação vulnerável e forçam o beijo, o sexo. Às vezes a menina está desmaiada e ele tira a roupa dela.”

Segundo a estudante Marina Pikman, do coletivo feminista Geni, formado no final de 2013 dentro da FMUSP, é comum que as alunas reclamem do constrangimento a que são submetidas logo quando chegam à faculdade. “Há muita ênfase na hierarquia, em tirar a identidade do calouro, falar: ‘você não sabe de nada, esquece toda a sua vida pregressa que e a gente vai te ensinar’. Com as mulheres, isso acontece de forma machista, os veteranos acham que têm livre acesso às calouras”, diz.

Ana Luísa Cunha, também integrante do Geni, lembra que quando o grupo foi fundado começaram a chegar vários relatos de abusos sofridos na semana de recepção. “Você chega e não sabe o que vai acontecer. Quer se enturmar, está na euforia e os caras se aproveitam, muitos veteranos usam o fato de você estar numa situação vulnerável e forçam o beijo, o sexo. Às vezes a menina está desmaiada e ele tira a roupa dela”, conta.

Mas os casos de abusos não ocorrem apenas na primeira semana ou na “Espumada”. Há relatos de violências sexuais em outras festas, tanto promovidas pelo Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (Caoc), como as cervejadas, quanto pela mesma Atlética, a exemplo das tradicionalíssimas “Carecas no Bosque” e “Fantasias no Bosque”, realizadas uma em cada semestre. De acordo com o Geni, são pelo menos 8 casos de assédios graves nos últimos 3 anos. Marina avalia, no entanto, que esse é um número bem menor do que a realidade, já que muitas estudantes não denunciam as violências sofridas por vergonha e medo de serem hostilizadas.

Cartaz de festa da FMUSP

Cartaz de festa da FMUSP

Das festas que acontecem na FMUSP, a “Carecas no Bosque” e a “Fantasias no Bosque” são as que criam o ambiente mais “propício” para abusos. A começar pelos cartazes de divulgação, quase sempre com destaque a mulheres cheias de curvas, trajes mínimos e olhares provocantes. Os preços dos convites são diferenciados. Em geral, mulheres pagam quase a metade do que os homens. “Todo o marketing é baseado no fato de que lá haverá muitas mulheres e que vai ter sexo à vontade. A USP inteira sabe que tanto a ‘Carecas’ quanto a ‘Fantasias’ são para isso, para ir lá e transar”, explica a aluna que optou por permanecer anônima. O problema, segundo ela, não é a questão moral, mas oambiente de machismo extremo que cria a impressão de que qualquer garota presente está disponível.

A festa acontece no campo de futebol da Atlética. As equipes masculinas de cada modalidade esportiva erguem suas barracas para vender bebidas e arrecadar recursos. Atrás destas são montados os “cafofos”: estruturas fechadas com colchões ou almofadas apropriadas para se levar garotas. Segundo relatos, uma das modalidades costuma contratar prostitutas, cuja tarefa é agradar os presentes com strip teases e “body shots” de tequila nos seios, além de deixar o corpo à mercê das apalpadelas. Na barraca de outra modalidade, filmes pornôs são projetados. Outra equipe batiza seu espaço de “matadouro”.

“Nessas festas, minha impressão é que as meninas são um pedaço de carne na prateleira.”

Em torno do campo de futebol, há um pequeno bosque, para onde os casais vão para transar. Seguranças contratados pela organização vigiam a entrada. “Nessas festas, minha impressão é que as meninas são um pedaço de carne na prateleira. A mentalidade dos meninos é que elas estão disponíveis para transar. Chegam de maneira agressiva, ao ponto de vários caras tentarem te puxar para o bosque. E, na minha percepção, se você entra no cafofo você não sai, vai ter de transar com o cara”, opina a estudante. “Ter” de transar. Marina, do coletivo Geni, revela que já ouviu muitas histórias de garotas assediadas e estupradas entre as árvores. “Houve uma vez em que meu namorado ouviu gritos e foi socorrer. Um cara que ele conhecia tinha rasgado a calcinha da menina contra a vontade dela”, conta.

“Há estupros de meninas inconscientes, casos de colocar ‘boa noite Cinderela’ na bebida delas. É algo sistemático porque acontece em todos os anos”, diz professora da FFLCH

Heloísa Buarque de Almeida, coordenadora do programa USP Diversidade e professora de estudos de gênero na antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), pesquisa a ocorrência de violência sexual, machismo, homofobia e trotes violentos na FMUSP desde que foi procurada pelos coletivos da faculdade, há alguns meses. “As violências se tornam rituais que se repetem a partir de uma ideia de tradição que querem manter, que não é exatamente do curso, mas uma tradição de algumas festas e instituições que se torna escandalosa”, analisa. “Há estupros de meninas inconscientes, casos de colocar ‘boa noite Cinderela’ na bebida delas. É algo sistemático porque acontece em todos os anos. A festa ‘Carecas no Bosque’ é tradicional entre aspas. Eles consideram tradicional que tenha prostitutas lá dentro, e no meio disso algumas meninas são estupradas porque estão bêbadas.

Você estava muito bêbada’
Cartaz de festa dos alunos da Medicina da USP

Cartaz de festa dos alunos da Medicina da USP

Foi na “Carecas no Bosque” de 2011 que a então caloura Doralice* foi estuprada no “cafofo” do judô. Ela estava desacordada. “Demorei para saber o que tinha acontecido, porque eu retomei a consciência apenas quando estava no hospital. Não me falaram direito, só: ‘acho que você foi abusada’”, diz ela, em depoimento à Ponte. Posteriormente, juntando os relatos que foram surgindo, muitos por insistência dela, a estudante pôde entender melhor o que ocorreu após as 4 horas da madrugada, quando ainda estava consciente e havia ido tomar uma bebida na barraca do judô – depois disso, não se lembra de mais de nada. De acordo com o que lhe contaram, Doralice ficou com um dos garotos da modalidade, que a levou ao cafofo, onde a deixou. Quando ele voltou, viu-a desacordada com um homem sobre ela, estuprando-a.

O que se seguiu, segundo a aluna, foi uma série de tentativas, por parte da Atlética e da diretoria da faculdade, de abafar o caso. No Hospital das Clínicas, para onde foi levada por diretores da entidade esportiva, não foram feitos exame de corpo de delito, para se comprovar a violência, ou toxicológico, para identificar uma possível adulteração em sua bebida. No entanto, a caloura começou a tomar medicamentos antirretrovirais como prevenção ao HIV.

“Eles falaram que eu não tinha como provar, que não poderia dizer que havia sido estuprada porque estava muito bêbada.”

Apesar da insistência, os responsáveis pela Atlética demoraram a lhe explicar exatamente o que tinha acontecido. Foi somente 2 dias depois, quando teve a confirmação de que havia existido penetração, que Doralice decidiu denunciar o caso. Mas foi sistematicamente desencorajada pelos diretores da Atlética. “Eles falaram que eu não tinha como provar, que não poderia dizer que havia sido estuprada porque estava muito bêbada.”

Mesmo assim, a estudante fez um Boletim de Ocorrência na Delegacia da Mulher. Algum tempo depois, a delegada apontou um funcionário terceirizado da faculdade como o agressor. “Até hoje, quando o inquérito policial está sendo finalizado, eu descubro coisas sobre meu caso que não sabia, por exemplo, que a diretoria da Atlética não permitiu que a polícia entrasse no local da festa”, conta.

As pessoas que ela procurava para testemunhar se mostravam ariscas. Falavam que deveria “tocar a vida para frente”. “Foi feito um pacto de silêncio, como tudo é tratado dentro da Faculdade de Medicina. Meu namorado era mais velho e falavam para ele que a história não poderia vazar, que iria destruir a imagem da Atlética, que iria destruir a festa”, revela. Ela conta, ainda, que a diretoria da FMUSP tomou conhecimento do caso, mas não fez nada a respeito.

“Abaixou minha calça, enfiou o dedo, me beijou à força.”

O estupro no “Carecas no Bosque” de 2011 não foi a primeira nem a última violência sexual sofrida por Doralice. No início daquele mesmo ano, durante a semana de recepção, ela foi abusada por um dos diretores da Atlética, que inclusive faria parte do grupo que a levaria ao hospital alguns meses depois. Numa tarde de bebedeira, ele a levou a uma sala escura da equipe de atletismo e a jogou no chão. “Abaixou minha calça, enfiou o dedo, me beijou à força. Mas teve uma hora em que ele parou”, relata Doralice. “Depois ele fez isso com outras meninas, uma delas da ‘panela’ dele, outra, uma colega minha de turma. Ele vê que a menina está bêbada e não conseguindo oferecer muita resistência.” Nos anos posteriores ao estupro, outro diretor da Atlética aproveitou duas “Espumadas” para passar a mão em seu corpo. Segundo a aluna, ele igualmente costuma repetir o abuso com outras estudantes.

‘Eu sei que você quer, deixa de ser chata’

Em novembro de 2013, a estudante de Medicina Leandra* sofreu abuso sexual de 2 alunos durante uma cervejada do sexto ano realizada no Centro Acadêmico Oswaldo Cruz. Eles ficaram insistindo para que ela fosse até o estacionamento ao lado. “Vamos para meu carro que eu vou dar bebida para você”, diziam.

“Eu falava que não queria, eles insistiam para eu ir. Me puxavam, mas eu não queria ficar com eles. Nesse vai e vem acabamos chegando ao carro deles. Lá eles começaram a me beijar, enfiar a mão dentro da minha roupa, dentro da minha calça. Queriam que eu entrasse no carro, abriram a porta, e eu comecei a gritar, a fazer um escândalo, dizendo que não queria. Tentava sair e eles impediam a minha passagem. Me empurravam, e um deles começou a gritar comigo: ‘para de gritar, para de gritar!’. Eu dizia que não queria os dois e um deles respondia: ‘você quer sim, eu sei que você quer, deixa de ser chata’. E os dois me beijavam, passavam a mão em tudo, não me deixavam sair. Nisso uma menina que estava no estacionamento brigando com o namorado viu o que aconteceu, deu um grito e me chamou. Então consegui sair.”

A partir de então, Leandra iniciou uma epopeia para que a violência sofrida por ela fosse reconhecida. Fez um Boletim de Ocorrência e denunciou o caso à diretoria da faculdade. Uma sindicância formada por 4 professores foi criada, mas apenas a estudante e um dos agressores foram ouvidos, já que o outro estava viajando. Em abril de 2014, a conclusão divulgada foi que a relação havia sido consensual, e que o problema havia sido o consumo de álcool. “Para mim, essa decisão tira a culpa do agressor e a joga na vítima, porque ela estava bêbada. Chegaram à conclusão de que foi consensual só com meu depoimento e de um dos garotos”, reclama.

O forte corporativismo existente no ambiente universitário da Faculdade de Medicina da USP, que havia se manifestado no caso de Doralice, voltou a “atacar” no caso Leandra. A vítima, e não os agressores, passou a ser hostilizada sistematicamente desde então. “Eu passo no corredor, as pessoas cochicham, apontam, principalmente os amigos dos caras. Eu mesma ouvi dizerem: ‘ah, aquela menina sai com todo mundo, logo ela vai reclamar disso? Está querendo aparecer’”. A preocupação maior é com a imagem da faculdade. Até mesmo um dos que abusaram de Leandra foi tirar satisfação. Ameaçou processá-la por difamação.

“Quando fui denunciar, achei que o meu era um caso isolado, mas descobri que havia mais.”

Uma das instâncias procuradas por ela foi o Núcleo de Estudos em Gênero, Saúde e Sexualidade (Negss), grupo de alunos criado no início de 2013. “Quando fui denunciar, achei que o meu era um caso isolado, mas descobri que havia mais”, diz. Foi divulgada então uma nota sobre o ocorrido no Facebook, gerando grande repercussão, em sua maioria, negativa. O texto foi publicado na página mantida nessa rede social pelo Grupo Pinheiros, do qual participam alunos e ex-alunos da FMUSP. A reação de seus membros foi violenta, diz Marina Pikman, do Geni. “Temos um monte de prints com postagens supermachistas, homofóbicas, classistas, xenófobas… tirando sarro do que aconteceu. Foi bem difícil para ela [Leandra]. Ela é ridicularizada nas redes sociais.”

Questionada pela reportagem, a diretoria do Centro Acadêmico afirmou que ofereceu apoio e orientação a Leandra e a incentivou a registrar um Boletim de Ocorrência. Disse, ainda, que solicitou à FMUSP a instauração de uma sindicância administrativa, “uma vez reconhecida a dificuldade e inadequação do CAOC de realizar tal apuração”. Todas as respostas enviadas pelo Caoc à Pontepodem ser lidas aqui.

A estudante, no entanto, nega. Ela diz ter procurado a segurança da faculdade, que a levou até ao chefe da graduação. Este a teria orientado a fazer o BO. “Os diretores do Caoc disseram que não poderiam me ajudar pelo princípio da isonomia em relação aos alunos. Só após a pressão do Negss eles enviaram um ofício à diretoria da faculdade pedindo abertura de sindicância.”

Modus operandi da violência
Cartaz de festa dos alunos da FMUSP

Cartaz de festa dos alunos da FMUSP

Ao Geni chegaram outros exemplos de abusos semelhantes. Como o de uma aluna violentada por um ficante. Ou de uma caloura que “apagou” numa festa “Fantasias no Bosque” e acordou numa enfermaria às sete da manhã sem sapato e calcinha. Ou o estupro de uma estudante de Enfermagem por um aluno de Medicina na Casa do Estudante, a moradia estudantil do Hospital das Clínicas. Ou até de um aluno estuprado por um veterano numa “Espumada”.

“No começo elas nem se dão conta de que sofreram assédio. Elas acham que estavam muito bêbadas, que não resistiram o suficiente. Depois, quando se dão conta, acham que passou muito tempo, que as pessoas relativizarão o ocorrido.”

Nenhum desses abusos, no entanto, foi denunciado, com a exceção dos de Doralice e Leandra. “É claro que não são casos isolados, é claro que há uma cultura institucionalizada de violência, impunidade, desamparo das vítimas”, avalia Marina. Ela explica que se pode até dizer que há ummodus operandi. “A maioria dessas violências acontece em festas, em ambientes nos quais a menina está bastante alcoolizada. Às vezes está inconsciente, às vezes consciente, mas ofereceu resistência à agressão, e não foi respeitada pelo menino. E ela se sente culpada por não ter conseguido se defender. E há a lógica machista de considerar sempre que foi consensual.”

A partir daí, inicia-se uma luta para decidir denunciar o assédio e/ou buscar apoio. As vítimas, porém, esbarram nas próprias dúvidas e na falta de mecanismos institucionais de acolhimento. “No começo elas nem se dão conta de que sofreram assédio. Elas acham que estavam muito bêbadas, que não resistiram o suficiente. Depois, quando se dão conta, acham que passou muito tempo, que as pessoas relativizarão o ocorrido”, analisa Marina, para quem seria fundamental uma instância que amparasse as alunas que sofreram violência. “Mesmo que não tenha havido denúncia, a maioria procurou alguma ajuda institucional, porque foi fazer o tratamento antirretroviral.”

Ainda que as estudantes decidam ou cogitem denunciar, devem enfrentar mais obstáculos: o pacto de silêncio e abafamento em relação aos escândalos, e a transformação das vítimas em algozes. “As meninas são ridicularizadas, estigmatizadas como loucas que só querem chamar a atenção, que estão inventando coisas, manchando a imagem das instituições da faculdade”, pontua a integrante do coletivo Geni.

Segundo Marina, o grupo chegou a se reunir com a diretoria da faculdade e da Atlética para pressionar por medidas que diminuíssem a vulnerabilidade das alunas nas festas promovidas pela entidade, mas seus diretores responderam que não era possível tomar providências antes de uma decisão judicial. “As meninas não reclamam muito, fica velado, pois ninguém tem coragem de criticar a Atlética, porque é uma instituição muito forte. Existe um corporativismo muito grande envolvendo a Atlética, ou o Show Medicina. Você vai ser perseguido se reclamar, se der a cara para bater”, lamenta Leandra. Foi justamente a violação sofrida por ela o estopim da criação do Geni. “Meninas vinham contar histórias de estupro por colegas que nunca haviam denunciado porque tinham medo, porque não viam canais de denúncia antes”, explica Marina.

No dia em que foram anunciadas as conclusões da sindicância sobre o caso de Leandra, as estudantes realizaram um ruidoso protesto criticando a decisão e denunciando outros abusos. Foi o suficiente para que a faculdade decidisse formar uma comissão para apurar os inúmeros exemplos de opressão em seu interior. Instalado em março deste ano, o grupo formado por professores da FMUSP vem ouvindo relatos de violações sexuais, físicas, morais, machistas e homofóbicas, entre outras. O relatório elaborado a partir dessa apuração deve ser divulgado nos próximos dias.

Enquanto isso, após a publicação de matérias na imprensa sobre os casos de Doralice e Leandra, a edição deste ano da festa “Fantasias no Bosque” foi cancelada.

Ponte solicitou uma entrevista com o diretor da FMUSP José Otávio Auler, mas a assessoria de imprensa da faculdade informou que ele se encontra em um simpósio fora do país e enviou a seguinte nota:

“A Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) se  coloca de maneira antagônica a qualquer forma de violência e discriminação (com base em etnia, religião, orientação sexual, social) e tem se empenhado em aprimorar seus mecanismos de prevenção destes tipos de casos, apuração de denúncias e acolhimento das vítimas. A Cultura da Instituição é baseada na tolerância e respeito mútuos, valores que são passados aos seus alunos. Com o intuito de fortalecer esta cultura, foi formada recentemente, inclusive, uma Comissão com docentes, alunos e funcionários com o objetivo de propor ações de caráter resolutivo quanto aos problemas relacionados às questões de violência, preconceito e de consumo de álcool e drogas. Em relação às denúncias envolvendo membros da FMUSP ou de casos ocorridos em suas dependências, foram abertas sindicâncias para apuração. Em caso de comprovação, a Faculdade adota as punições disciplinares de acordo com o Código de Ética da USP.”

A reportagem também procurou a Atlética, via assessoria de imprensa da FMUSP, mas até a publicação desta reportagem não havia obtido retorno.

* Nome fictício para preservar a identidade da vítima

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

23 Comentários

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    1. Essa não é apenas a elite

      Essa não é apenas a elite paulista… é a elite do país.

      Para onde você acha que a elite nordestina manda seus mancebos estudarem medicina?

       

  1. Vergonhoso. E mais vergonhosa

    Vergonhoso. E mais vergonhosa a atitude da instituição que se faz de inocente diante fatos que estão acontecendo embaixo de seu nariz.

  2. Futuros médicos?!?!?!?!?!

    Não é de se espantar que a maioria dos médicos tupiniquins seja contra o Mais Médicos ou qualquer outro programa social voltado para as minorias.

    Já passou da hora de se fazer um acompanhamento rigoroso do tipo de profissionais de saúde que estão sendo formados e suas condutas no exercício da profissão, acabando com o corporativismo criminoso no CRM.

  3. Levar adiante esses casos,

    Levar adiante esses casos, punindo os envolvidos pode evitar novas ocorrências na universidade.  Mas, e essa deformação de conduta, de caráter, em jovens que em pouco tempo estarão exercendo a medicina, tratando de pessoas? É assustador pensar que em algum momento de nossas vidas  poderemos estar sob os cuidados dessas “feras”, desses sociopatas.   Não se trata de arroubos inconsequentes de garotos desmiolados, coisa que a maturidade pode resolver. Revela-se um gravíssimo e talvez já incurável distúrbio. 

  4. Quem são os alunos da

    Quem são os alunos da medicina, da USP?

    Bebes que chutam babás, e as mamães acham que “elas são pagas para isso”.

    Crianças que batem nos amiguinhos e papai acha que são “hominhos”

    Adolecentes “que viajam” de todas as maneiras, e os nomes das famílias “seguram as barras” quando quebram as regras.

    Jovens que NÃO SÃO ALCANÇADOS PELA LEI porque, invariavelmente, são filhos de “sabe com quem está falando?”

    Somente VÍTIMAS do mesmo “extrato social” PODE BARRÁ-LOS. BOCA NO TROMBONE MENINAS, o que eles precisam não é punição do “códico de ética da USP”, isso e M* é a mesma coisa. PRECISAM SER DENUNCIADOS (SÃO MAIORES DE IDADE) E DEVEM SENTIR O PESO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

    Sem contar que MEDICINA, É HERANÇA DE FAMÍLIA NO BRASIL. A omissão dos pais da USP, leva-nos a crer que ” essa TRADIÇÃO” de IRMANDADE CRIMINOSA É BEM ANTIGA.

    Estarrecedor, e revoltante, A CLASSE MÉDICA QUE ESTAMOS FORMANDO, COM DINHEIRO PÚBLICO…cade a REVOLTA dos “revoltadinhos” ?

  5. Fecha!!!

    Substitui todos por cubanos civilizados. Aliás, quem assim age poderia atravessar a Dr. Arnaldo e ser hóspede permanente do empreendimento funerário em frente da FMUSP e suas subsidiárias do pavor.

  6. Nossa “elite”…
    Apesar da

    Nossa “elite”…

    Apesar da perplexidade, do horror, do medo que nos causa, esses últimos dois anos têm revelado o tamanho do câncer que corrompe essa nação há séculos! Que tenhamos força para acabar com essa máfia de altos escalões que manteve até 2002 de joelhos esse poderoso país e seu valoroso povo.

  7. Há uma grande polêmica que

    Há uma grande polêmica que cerca a realização de festas nas universidades, sendo que várias federais simplesmente proibiram sua realização nos campi universitários, onde se proíbe o consumo de bebidas alcoolicas. Nos meus tempos de graduação havia muitas festas e até bares nas faculdades, mas eram tempos politizados e “politicamente corretos”, como reza o clichê que a direita americana propagou pelo mundo e muita gente repete por aí. Se for “politicamente correto” criticar a mentalidade e a ação desses filhos do que seria a elite da elite da elite brasileira, esses plaibas imbecis, machistas e violentos, então sejamos “politicamente corretos”. As famílias dos filhinhos-de-papai têm grana e o corporativismo médico os protege, já desde a faculdade, então que a USP e justiça deem um jeito nisso. Claro que isso não vai terminar tão cedo porque são arraigados os privilégios de classe e sua desfaçatez, arraigados em corpos e mentes, pelos século e séculos. Sem amém.

  8. ISTO TUDO É NOJENTO

    Há 20 anos atrás quando eu entrei pra faculdade eu já sabia desses trotes e não compareci em nenhuma festa na facul. 

    Eu sempre soube que era tudo sacanagem, que eles faziam horrores com os calouros.

    Agora, eu me pergunto: _ O que estas garotas vão fazer neste antro de perdição?

    Hoje, com tanta informação essas meninas ainda vão para serem abusadas. Francamente, é muita burrice.

     

    Por outro lado como é que uma universidade deste porte permite essa festança regada a bebidas, drogas e abusos?

  9. Nossa elite…  Nossos

    Nossa elite…  Nossos médicos… sem exame de corpo de delito, exame toxicológico… a vítima que beba menos numa próxima, né? Na ditadura eram esses tipos que assinavam laudos falsos para livrar a cara dos torturadores. Tá chegando a nova geração.

  10. Uma barbaridade; um abuso.

    Uma barbaridade; um abuso. Causa revolta a omissão do Corpo Diretivo de uma Universidade tão renomada com relação ao que de muito já ultrapassa a normal inquietude e irreverência dessa fase da vida para adentrar na seara do crime, da bandidagem.

     

     

  11. Além do que o pessoal falou

    Além do que o pessoal falou de levar adiante (na justiça) esse tipo de situação é preciso outras medidas:

    – cobrar apoio e acompanhamento do movimento estudantil da própria instituição, que aparentemente some nessas horas

    – não compactuar NUNCA com esse tipo de conduta

    – e muito menos perpetuar esse tipo de prática no ano seguinte

    – e não participar desse tipo de festa. Se for pra curtir, vão ter muitas outras festas mais civilizadas pela frente

    E para concluir, não sei como é nas outras universidades, mas na UFRGS sempre notei que o grupo que “passa” o trote é menor que aquele que sofre e é compreendido apenas pelos veteranos do ano anterior.  É só questão de união e mobilização do pessoal que entra para “interromper unilateralmente” qualquer trote mais abusivo. Deixando claro que já acho a própria ideia de trote abusiva, independente da abordagem.

  12. Medicina na USP

    Inacreditável! E só agora vem realmente à público? Infelizmente parece que a sociedade paulista tem lados muitos escuros. Fico imaginando se o Conselho Federal de Medicina não está a par disso. Não será de gente como essa que partem as reações contra o Mais Médicos? Que moral essa gente tem?

  13. E mesmo assim….
    Tinha muitos dessa atlética no protesto pelo golpe militar…deplorável…vê se o porque de precisarmos de médicos cubanos…

  14. Mudança do nome do centro acadêmico

    A continuar assim, o nome do centro acadêmico do curso de Medicina da USP passará a se chamar Roger Abdelmassih. 

  15. putz!este post-reportagem

    putz!

    este post-reportagem ponte entre civilização e barbárie nos arrabaldes e bosques e ermos sombrios e espumas flutuantes bem debaixo do bigode do reitor da medicina da usp está tão bom e prazeroso de se ler como é a literatura erótica e pornográfica francesa; os contos e memórias do marques de sade; os romances de restif de la bretonne; a história do olho de bataille; a inconfundível primorosa literatura pornográfica devassa japonesa: o fetiche do poder senhorial pater familia em estado de arte…

    os futuros médicos da usp prestam uma bela homenagem a literatura libertina, devassa, pornográfica, brutal universal…

    parabéns pelo grande evento cultural anual semestral bimestral semanal do novo Grêmio e Atlética Estudantil Dr. Roger Abdelmassih Fazendo Escola… de Medicina, aquela escola que dizem ter a nobre missão de servir humanitariamente a sociedade, curar os enfermos e aliviar as dores do mundo e blá-blá-blá blaya fugiu da raia…

  16. Calouro de medicina morre na piscina da USP

     lembram da morte dele na piscina da USP, pois é, todos os indiciados estõ hoje nas suas clínicas e consultórios exercendo a nobre profissão.. a categoria do médicos é uma das  mais reacionárias que exissre no País, pena que os Adibs Jatenes sejam cada vez mais raros e Abdelmassihs   abundantes..

     

    POLÍCIA
    Corpo de Edison Tsung Hsueh, que entrou este ano na faculdade, foi encontrado após festa de confraternização
    Calouro de medicina morre em piscina da USP

    GONZALO NAVARRETE 
    da Reportagem Local 

    O estudante de medicina Edison Tsung Chi Hsueh, 22, foi encontrado morto ontem dentro da piscina da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz, que pertence ao diretório acadêmico da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
    No local, havia ocorrido uma festa de confraternização entre calouros e veteranos anteontem. Recém-ingresso na faculdade, Hsueh estava na comemoração. A Polícia informou que a morte pode ter acontecido durante ou após a festa.
    A principal suspeita é que Hsueh tenha morrido acidentalmente. Segundo a família, ele não sabia nadar. Apesar de o corpo não apresentar sinais de violência, a polícia não descarta a hipótese de homicídio (intencional ou não).
    A bermuda do estudante estava manchada com tinta, sinal de que ele passou por um trote.
    Os 180 alunos do 1º ano de medicina participaram na manhã de segunda-feira da aula inaugural.
    Depois da aula, eles foram pintados com tinta pelos veteranos. Por volta das 12h, um grupo de aproximadamente 200 pessoas (entre veteranos e calouros) foi para a associação para participar de uma festa de confraternização.
    O evento é considerado tradicional. Segundo veteranos que não quiseram se identificar, os calouros não recebem trote durante o churrasco. Mas antes do início da festa, os alunos mais velhos costumam limpar os calouros com jatos de mangueira ou dar um banho neles no vestiário da associação.
    Segundo a polícia, a festa foi interrompida por volta das 14p0, quando um temporal atingiu São Paulo. Uma parte do grupo teria ido embora. O restante se refugiou em um ginásio da entidade.

    Duração
    “Temos a informação de que a festa durou pelo menos até as 18h, com muita cerveja e acesso livre à piscina. O que aconteceu depois disso ninguém sabe”, disse o delegado do 14º DP (Pinheiros), Paulo Roberto Nascimento de Oliveira. “O mais improvável é que alguém, mesmo vendo o corpo ou o acidente, tenha se negado a ajudar.”
    Segundo informações da direção da Faculdade de Medicina, o IML (Instituto Médico Legal) informou que o corpo ficou por cerca de nove horas dentro da água.
    O corpo, que estava submerso na piscina, foi encontrado por volta das 7p0 de ontem por um funcionário da limpeza. Isso indica que o estudante teria morrido às 22p0.
    O delegado Oliveira disse que a água da piscina estava escura devido ao excesso de cloro e sujeira, o que poderia atrapalhar a visualização do corpo submerso à noite.
    Estudantes chegaram a afirmar que Hsueh teria voltado à noite para a associação atlética após o término da festa com outros colegas.
    A direção da Faculdade de Medicina da USP informou que nunca registrou nenhuma morte ou agressão na semana de trotes.

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