Você sabia que Dom Quixote tem uma editora no Brasil? – Parte I, por Sebastião Nunes

Colagem do autor sobre imagens de Dulcineia e Dom Quixote


 

Você sabia que Dom Quixote tem uma editora no Brasil? – Parte I

por Sebastião Nunes

Sancho Pança despencou do alto da escada e caiu de bunda no chão.

– Ah, ah, ah! – riu o Cavaleiro da Triste Figura, sentado numa mesinha diante das estantes. – Gordo como você é, tinha mesmo de cair da escada.

Sancho se levantou gemendo, botou as mãos na cintura, torceu o tórax para lá e para cá, sacudiu a cabeça e concluiu:

– Ufa! Ainda bem que não quebrei nada.

– Já te falei pra não ficar lendo em cima da escada – disse Dom Quixote. – Você é gordo demais pra isso.

– É que achei um livro esquisito e tava dando uma olhada – respondeu Sancho. – A história de um menino que morre quando tinha seis anos. O pior é que o livro começa assim mesmo: ‘João tinha seis anos quando morreu’. Imagina só que babaquice.

– Temos piores, ou melhores, depende do ponto de vista – disse o Cavaleiro da Triste Figura. – Procura por aí um tal de “Mamães e papais”.

– Que é que tem de diferente nele? – perguntou Sancho, que estava sentindo umas pontadas nas costelas.

– Nada de mais – disse Dom Quixote. – Apenas que conta a história de um garoto que tem duas mães e de uma garota que tem dois pais.

– Pode isso? – espantou-se Sancho. – Se pode, até hoje eu não sabia.

– É uma história na temática LGBT, seu ignorante – acrescentou o Cavaleiro da Triste Figura. – LGBT é a sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros. Pessoas cada vez mais assumidas e buscando seus direitos. Por outro lado, o país está cheio de gente dizendo que vai acabar com eles.

– Acho que sua editora não poderia mesmo dar certo – insinuou Sancho. – Ainda mais hoje em dia, ainda mais com a extrema direita no comando.

 

UMA ESTRELINHA QUE CAI

Dom Quixote coçou a barbicha rala, tirou as pernas de cima da mesa e ficou olhando o telefone fixo, que teimava em manter, mesmo sabendo que só tocava para cobranças, gráficas se oferecendo, empresas querendo vender planos disto e daquilo.

– Não sou adivinho – monologou bastante alto para que Sancho ouvisse. – Se eu soubesse que ninguém compra livro no Brasil, teria aberto um botequim, um sacolão, um templo evangélico ou uma oficina mecânica.

– Quem foi o idiota que te deu essa ideia?

– Nem lembro – respondeu o Cavaleiro da Triste Figura. – Creio que é minha sina embarcar em canoas furadas. Lembra dos condenados que libertamos?

– Ora, se lembro – queixou-se Sancho. – Até hoje recordo as varadas que levei, os murros que apanhei e os chutes no lombo.

– Acho que nosso destino, amigo Sancho – disse Dom Quixote –, é lutar contra moinhos de vento. Quanto mais envelheço mais acredito nisso.

Sancho não disse nada. Apenas olhou para as estantes abarrotadas de livros, alguns novos, mas a maioria já ficando antiga: 2015, 2014, 2012, 2010…

E o diabo do telefone que não tocava!

E a merda dos emails de compras que não chegavam!

E os editais governamentais que não saiam!

E o pingadinho do varejo que sumiu!

 

AS ILUSÕES PERDIDAS

“Houve um tempo”, meditava o Cavaleiro da Triste Figura, “em que as pessoas podiam viver de literatura, e editar livro era uma profissão digna”.

– Em que é que o senhor está pensando, com esse olhar parado? – Perguntou Sancho – Saudades de Dulcineia del Toboso?

– Que Dulcineia que nada! – Enfureceu-se Dom Quixote. – Se aquela infeliz nem ler ela sabe. Nem soletrar o nome, quando mais ler livros.

– Mas é lindinha, não é? – tentou agradar Sancho. – Bem que o senhor continua caidinho por ela…

– Lá isso, continuo – suspirou o Cavaleiro da Triste Figura. – Mas veja bem, amigo Sancho. Como ela vai querer um editor pobretão que nem eu, se tem tanto cantor de sertanejo universitário dando sopa? Ouvi dizer que passam de um milhão.

– Também ouvi dizer outra coisa: que estão pensando numa escola sem partido para desensinar as crianças – disse Sancho. – Que diabo será isso?

– Já ouvi falar – disse Dom Quixote. – É uma escola em que os alunos não terão de pensar. Aprenderão português e ciências na Bíblia. De geografia conhecerão as conquistas de Israel, dos Estados Unidos e da Inglaterra. Em matemática, ficarão eternamente dividindo e multiplicando pães e odres de vinho.

Olhando com preocupação para seu chefe, Sancho se atreveu a dizer:

– Tem mais uma coisa que ouvi dizer: que tem uma bancada bbb no congresso brasileiro que é muito forte. Dizem que é pior que o BBB da Rede Globo, aquele programa de sacanagem.

– Muito pior, Sancho, muito pior. – o Cavaleiro da Triste Figura afundou o tórax magro na cadeira. – O bbb, com letras minúsculas, é a bancada do boi, da bala e da bíblia que, de agora em diante, vai mandar no país, junto com os milicos e o judiciário.

– Por falar nele, chefe, no judiciário, será que ele não pode fazer nada? – mais uma vez indagou Sancho. – Será que não podia dar um basta nisso tudo e botar o país de novo nos trilhos?

– Acredito que não, amigo Sancho. – Os anos vindouros serão de vacas magras para pobres, negros, índios, quilombolas, intelectuais e todos os que se preocupam com as questões de gênero, de sexualidade e das minorias. Que importância tem a literatura ou as editoras diante disso?

Sancho Pança olhou para as estantes recheadas de livros e deixou o queixo cair.

Sebastiao Nunes

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