Anedota de laxismo e fascismo, por Eliseu Raphael Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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William Aiken Walker. Still LIfe with Cheese Bottle of Wine and Mouse, 1876. ¹

Anedota de laxismo e fascismo

por Eliseu Raphael Venturi

“E Sêneca considera o momento da morte como aquele em que, de algum modo, se poderá ser juiz de si mesmo e medir o progresso moral que se terá realizado até o último dia. Na carta 26, escreve ele: ‘É na morte que me darei conta do progresso moral que terei podido fazer… Espero o dia em que serei juiz de mim mesmo e saberei se minha virtude está nos lábios ou no coração”. (FOUCAULT, Michel)

A pouco menos de uma semana da inegável potencial consagração do discurso fascista como discurso eleito, o que por si parece suficientemente aterrador, mais um capítulo da comovente novela da inabilidade institucional mínima do Tribunal Superior Eleitoral parece assolar os frangalhos da democracia brasileira, que resiste.

Meio que entrevados em uma mesa ocreada em placas bege, os Senhores Ministros e Senhores Advogados sentam-se para debater algo em torno à democracia. Era 18 de outubro de 2018, que fique claro. O segundo turno se realiza em 28 de outubro de 2018. Algo proporcional em torno do tempo que as “fake news” dispuseram para explorar a plasticidade mental humana.

Sim, o tema é democracia. Parece que, deste breve cenário, já merecem cumprimentos os Senhores Advogados do candidato Haddad pelo equilíbrio emocional e pelo estômago forte: discutir democracia nas tramas do arbitrarismo voluntarista e seus palavrórios e do fascismo disfarçado de bondade não deve ser fácil aos que prezam Filosofia Política e direitos subjetivos.

Uma Ministra, então, pede serenidade. Uma bela construção jurídica: a serenidade. Efeito jurídico esperado ante à falta de serenidade? Um copo de água de açúcar. Ou, talvez, uma overdose de barbitúricos. Solução, aliás, já bem cogitada por vários colegas ante o estado de desespero que parece assolar todos aqueles brasileiros que compreenderem um mínimo axiológico do que possa ser uma democracia substancial. Poderia, também, ter recomendado “placidez” e explorado sinônimos.

Um advogado, por sua vez, diz que o fato bruto, “diálogo”, já seria vitória. O que, convenha-se, é bem verdade, considerando que “dialética” não é propriamente um dos princípios democráticos do seu representado. Muito menos debate, argumentação.

Aliás, a pergunta seria: devemos agradecer que a situação não está, ainda, sendo tratada na bala (de armamento)? É um pouco do que fica subjacente, inevitável concluir, ou, mais propriamente, questionar. Então, não fosse constrangedor, seria cômico, apenas – até porque os comediantes, digamos, do “establishment”, não nos tiram mais estes risos intensos.

Os advogados, em consenso democrático, parece, recomendam um pronunciamento nacional da Ministra: um discurso que dê segurança à população. Algo embaraçoso, considerando que a instituição poderia (deveria) tomar (ter tomado, há muito) a dianteira de suas missões institucionais. Até porque já parece claro, até ao senso comum, que não há muito pudor, lá, em se conferir deliberadamente certas interpretações políticas tonadas, vejam-se as geniais medidas dadas pelo outro Ministro Censor.

Outro Ministro, ainda, recomenda o “fair play”, afinal, anglicismos desnecessários são altamente pragmáticos e erudição é necessária para devolver o sentimento de segurança à população. E, obviamente, explica o que seja “fair play”, expressão pouquíssimo conhecida, é certo: cumprir as regras do jogo. Parece suficiente: um Tribunal rememorador do axiomático, colando post-it nas ruínas.

Uma Procuradora Eleitoral pronuncia que a disseminação de notícias falsas não “convém” à democracia. É uma sutileza interessante. Se arremangar votos não “convém”, se disseminar a política do ódio não convém, se tudo o que é dito não convém (nem precisaríamos nos remeter ao passado do candidato, nem as situações que ora se denunciam), seria interessante perguntar qual verbo a Senhora Procuradora usaria diante de uma situação que considera realmente grave. Talvez algo em torno de “não orna”, “não casa”, “não harmoniza”. É algo como olhar um incêndio monumental e afirmar que ali há apenas milhões de fagulhas ou faíscas acumuladas entre si.

A linguagem, como a mente humana, assume várias plasticidades. As confusões entre mornidão e equilíbrio não são novidade, também. Coisa de quem acha que o equilíbrio é bege, que não existe equilíbrio cromático em uma arte fauvista. Capacidade de apreciação é irmã gêmea da capacidade de valoração. E Direito é a arte esquecida da valoração.

A anedota do laxismo e do fascismo, vulgo laxofascismo, portanto, é a de que parecem andar de mãos dadas, como um casal feliz que desce uma ladeira, talvez abraçados mesmo, rolando abaixo e vencendo em velocidade a pedra de Sísifo. Afinal, não deixam de ser sistemas morais e, lá no coração do fascismo, há aquele sentido primevo de feixe, molho, ajuntamento.

Um ajuntamento – muito diferente da comunidade –, e cuja “cola” social é aquela tibieza, aquela tepidez, aquela leviandade presente no discurso, na voz, no olhar, na incapacidade de participar de debates ou na incapacidade de assumir políticas sociais e da diferença. Aquela inocência das pessoas de bem.

Aquele apagamento que ilumina o olhar de cada eleitor. “Ah, não temos mais de 50 milhões de fascistas no Brasil”. “Ah, não importa o que ele diz, importa o que ele não é”. “Ah, equivalem-se os discursos dos candidatos”. Sejamos serenos.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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