Gracia do Salgueiro, a versatilidade em forma de samba, por Daniel Costa

O terreiro de uma escola de samba é, antes, onde pulsa a sua comunidade, onde as raízes são as pessoas que transitam anonimamente

Gracia do Salgueiro, a versatilidade em forma de samba

por Daniel Costa

Subi mais de 1800 colinas
Não vi, ai, eu não vi nem a sombra
De quem eu desejo encontrar
Ó Deus eu preciso encontrar meu amor
Pra matar a saudade que quer me matar

(1800 colinas, Gracia do Salgueiro)

Desde seus primórdios as escolas de samba despontaram para o público em geral, para a intelectualidade e para o mercado fonográfico como um grande celeiro de bambas, caso fosse listar os grandes compositores surgidos nos terreiros das diversas agremiações cariocas a lista seria interminável. Assim falarei apenas do Acadêmicos do Salgueiro, escola onde nosso personagem forjou sua identidade enquanto compositor. De acordo com o jornalista e pesquisador Haroldo Costa, no livro “Salgueiro: Academia de samba”, o terreiro de uma escola de samba não é, necessariamente, “o local onde são realizados os ensaios, reunindo pastoras, ritmistas, compositores, passistas e admiradores, num quase ritual que já foi mais respeitado. O terreiro de uma escola de samba é, antes, onde pulsa a sua comunidade, onde as raízes são as pessoas que transitam anonimamente, levando cada qual um pedaço da vida, uma reminiscência, um dado, um episódio, que, juntos, compõem o grande mural da história da sua agremiação”.

Entre os quadros que passaram pela Ala de Compositores da Academia do Samba podemos destacar figuras como Éden Silva, o Caxinê; um dos fundadores da mesma, e nomes como Alaíde Costa, Amado Régis, Anescar, Bala, César Costa Filho, César Veneno, Djalma Sabiá, Geraldo Babão, Guará, Iracy Serra, Laíla, Nei Lopes, Noel Rosa de Oliveira, Pedrinho da Flor, Zé Di, Zuzuca e Graciano Campos, nosso personagem que entraria para a história do samba como Gracia do Salgueiro. De acordo com a pesquisadora e jornalista Rachel Valença em depoimento presente no livro “Três poetas do samba-enredo”, mostra a evolução para o “bem e para o mal” dessas alas. Segundo a jornalista, em seus primórdios tínhamos “uma ala de compositores atuante, que fazia sambas de quadra, que dava festas, que desfilava junto com a escola cantando o samba vencedor, qualquer que fosse. Isso hoje é uma farsa, porque na verdade não é dali, daquela ala que vemos em desfile, que sai o samba”.

Graciano Campos nasceu na cidade mineira de Além Paraíba em junho de 1927, porém ainda criança, foi morar com a família no Rio de Janeiro. Como dezenas de famílias vindas de Minas Gerais, do interior do Rio de Janeiro, do sul da Bahia e de outros estados do Nordeste, a família de Gracia adotaria como novo lar o morro do Salgueiro. A diversidade na origem dos moradores do morro é considerado por sambistas e pesquisadores um dos fatores para a riqueza cultural do local, que em meados da década de 1930 já era considerado um dos “ninhos do samba carioca”, como atesta o jornalista Francisco Guimarães, o Vagalume no seu livro Na Roda do Samba. É o jornalista quem ainda define o Salgueiro como o “bamba dos bambas” e a “Academia do Samba”.

Se o morro da Serrinha, berço do Império Serrano ficou conhecido pelo jongo, o Salgueiro era conhecido pelo caxambu, de acordo com Haroldo Costa, o caxambu “sempre teve grande importância e popularidade entre os habitantes do Salgueiro. De procedência africana, esta dança instalou-se no interior de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, particularmente na zona cafeeira”, com o processo de migração dessas populações a manifestação alcançou as zonas urbanas do Rio de Janeiro. Essa diversidade fez do morro do Salgueiro desde seus primórdios um lugar de referência, segundo Haroldo Costa a região “servia de modelo, de parâmetro para se definir um bom sambista”.

Assim entre o caxambu, as festas católicas e dos terreiros de candomblé e umbanda, as rodas de partido-alto e os blocos de carnaval; antes da fundação do Acadêmicos do Salgueiro, o morro contou com aproximadamente dez blocos carnavalescos e três escolas: a Unidos do Salgueiro, Depois Eu Digo e Azul e Branco que Graciano foi construindo sua identidade de sambista, compositor e salgueirense. Aos dezesseis anos, já cantava profissionalmente, apresentando-se em programas da Rádio Mayrink Veiga. Em 1958, sua composição, “Cortina do meu lar”, parceira com Noel Rosa de Oliveira e J. Piedade seria gravada pela cantora Ademilde Fonseca e lançada pela gravadora Odeon. Neste mesmo ano, ingressa na Ala dos Compositores do Salgueiro, compondo ao lado de Djalma Sabiá e Carivaldo da Mota seu primeiro samba-enredo, Exaltação aos Fuzileiros. Por fim Gracia ainda veria outra composição sua, o samba de terreiro Vai pra casa, Luzia, parceria com Djalma Sabiá e Amado Régis, gravada pelo solista da escola, Raul Moreno no álbum Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, lançado pela Todamérica no mesmo ano.

O ano de 1958 ficaria marcado para a população brasileira como o ano em que após a trágica derrota para o Uruguai em pleno Maracanã na copa de 1950 o escrete canarinho enfim erguera a Jules Rimet, dessa vez na copa realizada na Suécia. O ano também ficaria marcado, como recordou o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, autor do livro Feliz 1958 – o ano que não devia terminar em entrevista a Agência Senado, como o ano em que tudo deu certo. Segundo Joaquim: “O Brasil ganhou a Copa do Mundo pela primeira vez. João Gilberto lançou Chega de Saudade, o disco fundador da bossa nova. A revista Manchete apresentou fotos belas da colunata do Palácio da Alvorada pronta, mostrando que Brasília, em construção, se tornaria mesmo realidade, e não mais uma lenda brasileira que não se confirmaria. A arquitetura de Niemeyer causava espanto internacional. Em 1958, o Brasil assistia a Rio Zona Norte, o primeiro filme de Nelson Pereira dos Santos, que inaugurou o Cinema Novo. O Brasil se industrializava”.

Como resultado do processo de transformação econômico e cultural ocorrido na virada da década de 1950 o mercado fonográfico não ficaria imune a transformações. Com o interesse da população pela música popular as gravadoras passaram a investir de forma maciça em artistas de samba, é nesse bojo que ao lado dos salgueirenses Zuzuca e Anescar e dos portelenses Jair do Cavaquinho e Velha que Gracia participa do grupo Os Cinco Só, lançando em 1969 pela CBS o álbum “Um partido mais alto”; em 1970 o grupo lançaria o disco “Roda de Samba”, com a participação dos compositores Wilson Moreira e Baianinho.

Ao longo da década de 1970 Gracia participou de diversos álbuns coletivos. Em 1971 com remanescentes de Os Cinco Só lança pela Tapecar o álbum Turma do Ganzá; em 1973 ao lado de nomes como Jurandir da Mangueira e Nadinho da Ilha participa do disco Os Partideiros, lançado pela Odeon. De volta a Tapecar nosso personagem participa em 1974 do primeiro volume da série Olé do partido alto, onde divide faixas com compositores como o imperiano Mano Décio da Viola, os portelenses Catoni e Ari do Cavaco, e ainda Aluísio Machado e Roque do Plá.

Nesse período marcado pelo crescimento do interesse geral pelo samba, além do interesse das gravadoras, diversas rodas começam a surgir, o que nem sempre garantia uma remuneração decente aos compositores. Segundo o jornalista Leonardo Bruno: “Com a popularidade do gênero, proliferaram pelo país rodas de samba e pagodes que rendiam dinheiro somente para os organizadores  Os autores das músicas ficavam a ver navios. Pior: ao serem convidados para cantar recebiam uma mixaria e eram obrigados a mostrar apenas as canções de sucesso. Para lutar contra essa situação, vinte e um compositores se reuniram para criar o “Grupo de Ouro”. Eles redigiram um manifesto com suas principais reivindicações e fizeram pagodes para arrecadar fundos”.

Dessa iniciativa resultaria o álbum coletivo, “Elite do Samba – Grupo de Ouro”, lançado em 1977 pela Polydor. No álbum Gracia divide faixa com “parceiros de luta” como: Dominguinhos do Estácio, Dida, Romildo, Jurandir da Mangueira, Dedé da Portela e Davi Corrêa. Em 1978, ao lado de Bebeto Di São João, Jota Ramos, Everaldo da Viola e Roque do Plá participa da coletânea “O Plá dos Partideiros” lançada pela Odeon. Em 1979 participa do quarto volume da série Partido em Cinco lançado pela gravadora Tapecar, no disco Gracia surge como mestre de cerimonias da roda que busca reproduzir em estúdio o clima informal das batucadas dos morros e tendinhas. É nesse disco que Gracia interpreta um dos seus grandes sucessos, o samba Dedo na Viola. Além de Gracia o álbum conta com a participação de nomes como Monarco, Wilson Moreira, Noel Rosa de Oliveira, Sarabanda e Nilton Santa Branca.

A discografia de Gracia é completada pelos álbuns: “Fusão do Samba”, lançado pelo selo Tamborim em 1975, o disco é dividido com o compositor portelense Velha; “Pique Brasileiro”, no álbum lançado em 1986 pela gravadora 3M o compositor salgueirense canta ao lado do portelense Davi Corrêa e do imperiano Aluísio Machado. Ao longo de sua carreira Gracia lançou apenas um disco solo, o disco homônimo lançado pela 3M em 1987 na esteira do sucesso obtido com o disco gravado no ano anterior.  O disco solo  ganhou as paradas de sucesso com o “Pagode do Gago”, samba em parceria com Gaguinho.

Ao longo de sua trajetória Gracia era figura presente em rodas como aquelas que ocorriam em clubes como Renascença e Bola Preta, além de pagodes como o da Tia Doca. Como compositor destacamos como principais êxitos: o samba “1800 colinas  gravado em 1974 pela cantora Beth Carvalho no LP “Pra seu governo”, lançado pela Tapecar. Em 1975 a cantora ganharia as paradas com outro sucesso de Gracia, “Pandeiro e viola”, que também daria título ao disco da cantora lançado pela Tapecar. Ainda em 1975, Jorginho do Império interpretou “Na beira do mar”, no álbum “Viagem encantada” (Tapecar).

Em 1977, outro samba de Gracia, “Cuidado com a minha viola”, foi incluída no disco “Botequins da vida”, de Beth Carvalho, lançado pela RCA. No ano de 1978, a cantora Janaína gravaria “O tema é o dinheiro”, no álbum  “Quem tem… tem”, lançado pela Polydor. Destacamos ainda a regravação de “1800 colinas” feita por Elizete Cardoso, presente no disco “Recital – Volume 1”, lançado pela Victor. Em 1997 o cantor Fabiano interpretaria no disco “Samba e Pagode vol.7” lançado pela Som Livre, “Presença de Noel”, em parceria com Martinho da Vila, que no clássico “Tá Delícia, Tá Gostoso” (Columbia/MZA, 1995) gravaria “Cuca maluca”. Em 2004 a cantora paulistana Tereza Gama lançou o disco “Aos mestres com carinho”, onde gravou clássicos do partido alto,  “Dedo na viola”.

Homenagear e relembrar a figura de Gracia do Salgueiro é também trazer para o grande público a trajetória de dezenas de compositores responsáveis por clássicos do samba e da canção popular que muitas vezes são esquecidos até mesmo pelas agremiações onde fizeram história.

                        Abre a janela da favela

Vai no silêncio quando a noite
Cede a vez à madrugada
Pra romper um novo dia
Puxe a cortina da mesma lentamente
E você vai ver o samba em pessoa falando com a gente
(Abre a janela, Gracia do Salgueiro)

Daniel Costa é historiador, compositor, pesquisador e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga

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