NRA, a Associação Nacional de Rifles, o aliado preferencial do bolsonarismo

Por: Victor Farinelli

Essa reportagem faz parte da investigação do projeto Xadrez da ultradireita mundial à ameaça eleitoral, para o documentário sobre o avanço da ultradireita mundial e a ameaça às eleições. Apoie aqui!

A columbinização dos Estados Unidos

Em 20 de abril de 1999, dois adolescentes munidos de espingardas, explosivos e uma arma semiautomática promoveram um massacre na Escola de Ensino Médio de Columbine, no Estado do Colorado, meio-oeste dos Estados Unidos. A ação terrorista terminou com a morte de 12 estudantes e um professor, além de 24 pessoas que ficaram feridas.

Até hoje, não há conclusões sobre as motivações do ataque: alguns autores que investigaram o caso dizem que os autores reagiam ao bullying que sofriam, enquanto outros revelaram trechos de diários mostrando referências a ataques terroristas e até mesmo ao nazismo – o fato de o massacre ter ocorrido no dia dos 110 anos do natalício de Adolf Hitler também é considerado uma evidência nesse sentido.

Três anos depois, o caso chegou ao cinema, através do documentário “Tiros em Columbine”, que rendeu um Oscar ao jornalista e cineasta Michael Moore.

A obra, no entanto, não se atém ao relato do massacre em si, mas questiona, principalmente, como a legislação estadunidense é aliada daqueles que pretendem realizar um atentado como o da escola do Colorado.

A conclusão de Moore acabou soando como uma profecia, quando ele diz que se os Estados Unidos não tomassem medidas para restringir o acesso às armas, casos como o de Columbine poderiam se tornar frequentes no país.

Vinte anos depois do lançamento do filme, o país norte-americano registra mais de cem atentados com armas de fogo, a maioria em escolas e universidades, mas também contra igrejas, centros comerciais, casas de show e outros locais.

Em 40 anos, 80% dos assassinatos foram depois de Columbine

Um levantamento realizado pela revista Mother Jones contabiliza 130 casos de assassinatos massivos com o uso de armas de fogo cometidos nos Estados Unidos entre 1982 e 1º de junho de 2022, dos quais 103 ocorreram depois do massacre de Columbine e 97 após o premonitório documentário de Moore – cabe esclarecer que esse informe registra somente os casos de assassinos atirando indiscriminadamente contra as vítimas, outros estudos que contabilizam ataques contra vítimas específicas registram mais de 200 casos.

Isso significa que nos primeiros 17 anos, entre o primeiro assassinato em massa contra alvos indiscriminados, ocorrido em Miami em 1982 (com 8 mortos e 3 feridos) até o emblemático ataque à escola de Columbine, os Estados Unidos conviveram com uma média de 1,5 casos desse tipo por ano. Depois de Columbine, a média saltou para 4,5 casos por ano.

Alguns anos são mais violentos que outros. Naquele mesmo 1999, houve outros quatro assassinatos em massa posteriores ao de Columbine, tornando-o um dos anos mais sangrentos da história dos Estados Unidos, com um total de 42 mortos e 47 feridos.

A cada ano, o número de ataques foi aumentando. Em 2012, houve sete atentados, com 71 mortos e 80 feridos. O trágico recorde seria superado em 2017, quando ocorreram onze atentados, com 117 mortos e 587 feridos. O ano seguinte bateria o novo recorde de quantidade de ataques, com doze casos, mas com menor quantidade de vítimas: 80 mortos e 70 feridos. Vinte anos depois de Columbine, a sociedade norte-americana já convivia com a banalização de tragédias como aquela, transformadas em fenômeno do cotidiano do país.

A pandemia freou um pouco essa escalada, pois houve apenas dois casos em 2020 e seis em 2021, com 52 mortos e 16 feridos. Porém, 2022 já registra cinco ataques em apenas cinco meses, com 40 mortes e 33 pessoas feridas – e, desses cinco, três ocorreram entre os dias 14 de maio e 1º de junho, um ritmo de quase um ataque por semana desde então.

Também vale destacar que o ano de 2002, há exatos vinte anos, foi o último na história dos Estados Unidos que não registrou nenhum caso de assassinato massivo – na lista da Mother Jones, com casos registrados nas últimas quatro décadas, apenas outros dois anos passaram em branco: 1983 e 1985.

A NRA antes e depois de Columbine

A NRA (sigla em inglês da Associação Nacional do Rifle) é uma organização que existe nos Estados Unidos desde 1871, e foi criada para defender a segunda emenda da constituição estadunidense: em 1791, o recém fundado país estabeleceu como um dos pilares de sua carta magna o “direito da população à legítima defesa, seja por meio de manter ou portar armas ou qualquer equipamento”.

Desde então, a NRA sempre foi uma organização barulhenta. Apesar de um limitado porém fiel apoio na sociedade, sempre contou com um fortíssimo poder de influência sobre o mundo político, especialmente dentro do Partido Republicano.

A repercussão do massacre de Columbine, nos Estados Unidos e no mundo, foi muito maior que os de ataques anteriores, o que gerou as primeiras iniciativas de grupos organizados da sociedade civil pedindo novas leis que criassem restrições para a compra e venda de armas no país. Nesse cenário, a NRA se viu obrigada a adaptar seu discurso.

Naquele ano, o presidente da NRA era ninguém menos que o célebre ator Charlton Heston, ganhador do Oscar por sua interpretação de Ben-Hur nos cinemas. Coube a ele a promover a nova narrativa, que diminuiu o tom da defesa ortodoxa da segunda emenda, que já não seria suficiente em uma sociedade comovida por tragédias com grande quantidade de vítimas, e passou a pregar que a melhor forma de lidar politicamente com os atentados seria facilitando ainda mais o acesso às armas, para que as possíveis vítimas estejam também armadas e possam reagir com um contra-ataque do mesmo tipo.

AP PHOTO/RIC FELD, FILE

Esse discurso esteve presente inclusive no documentário de Michael Moore, e se difundiu o suficiente dentro das instituições, com uma grande ajuda especialmente do Partido Republicano, e serviu de barreira argumentativa contra projetos para impor maiores restrições à compra e venda de armas.

O alinhamento da NRA com o Partido Republicano é notório há muitas décadas e se nota principalmente nas doações da entidade para campanhas eleitorais. Este gráfico do Center for Responsive Politics mostra os valores entregues aos dois maiores partidos dos Estados Unidos em todas as eleições presidenciais e legislativas desde 1992 até 2016.

Enquanto as doações para o Partido Democrata jamais alcançaram US$ 1 milhão por eleição, as destinadas ao Partido Republicano já ultrapassaram a barreira dos US$ 3 milhões em ao menos quatro oportunidades, e em 2016 (último ano de registro) chegou a se aproximar dos US$ 6 milhões. Além disso, todos os vinte senadores que mais receberam recursos da NRA para suas campanhas são republicanos.

Contudo, nenhum político republicano foi tão próximo à NRA quanto Donald Trump, que chegou a discursar em uma convenção anual da entidade, em 2019. Foi com a ajuda de Trump que a NRA começou a se internacionalizar, tendo a Australia e o Brasil como pontos de partida do seu plano de expansão.

Já a relação com Barack Obama foi de confrontação desde a campanha eleitoral, quando o então candidato enfrentou uma série ataques difamatórios promovida pela NRA, segundo denúncia do The New York Times.

Já como presidente, Obama fracassou em aprovar uma de suas principais promessas, a Lei de Controle de Armas, que mexia diretamente com os interesses da NRA. A entidade aproveitou a maioria republicana no Senado e constituiu uma bancada de contenção contra o projeto. Em 2015, em entrevista para a BBC, o líder do Partido Democrata admitiu que esta foi uma das suas maiores frustrações na Casa Branca.

O racismo e a NRA

A relação da NRA com Obama remete a outro problema histórico vinculado à organização: o racismo. Quem vê seus porta-vozes mais recentes bradarem contra qualquer tipo de legislação de controle de armas não imagina que durante grande parte do Século XX ela foi sim favorável a restrições ao uso de armas por pessoas afro-americanas.

Essa postura que se tornou ainda mais forte nos Anos 1960, especialmente na segunda metade daquela década, quando o Partido dos Panteras Negras estremeceu as estruturas de poder nos Estados Unidos ao defender uma revolução em favor das comunidades de afrodescendente no país, a qual consistia, entre outras coisas, que a população negra deveria se armar.

Esse discurso se intensificou após uma foto registrada em 1967, onde aparecem vários membros dos Panteras Negras nos degraus do palácio sede do governo da Califórnia, posando armados com revólveres e espingardas.

Naquele então, o governador da Califórnia era Ronald Reagan, um ex-ator de filmes de faroeste que também mudou sua postura pró-armas e criou uma regulamentação mais rígida de controle de armas visando evitar o acesso a elas por parte do movimento negro. Essas políticas tiveram justamente a NRA como principal aliada.

Mas o racismo da organização não se expressou somente naquela época. Na atualidade, a NRA costuma ser criticada por sua omissão ao defender casos de afro-americanos, o que contrasta com o fervor demonstrado em casos que envolvem pessoas brancas. Nesse sentido, foi especialmente ilustrativo o caso de Philando Castile, um homem negro que foi morto em 2016 pela polícia de Minnesota – a mesma que matou George Floyd quatro anos depois – durante uma blitz.

A investigação mostrou, dias depois, que Castile era proprietário legal da arma que carregava e tinha licença para usar armas de fogo, mas os policiais não pediram os documentos e atiraram contra ele quando viram a pistola no porta-luvas do seu carro. A NRA tardou horas em se pronunciar sobre o caso, e justificou a atuação da polícia afirmando que a vítima também portava drogas ilegais em seu carro.

O racismo da NRA também se expressa dentro da entidade. Muitas pessoas negras estadunidenses reclamam de barreiras criadas pela associação para coibir a entrada delas. A exceção é feita aos pouquíssimos casos de celebridades do esporte e das artes, como o jogador de basquete Karl Malone e o ator James Earl Jones (a voz original de Darth Vader nos cinemas).

Esse racismo institucional da NRA fez com que um grupo do sul dos Estados Unidos criasse uma nova associação somente para pessoas negras fanáticas por armas, a qual foi batizada com o provocativo nome de NAAGA (sigla em inglês para a Associação Nacional Afro-Americana de Armas).

A provocação está no trocadilho: a sigla se pronuncia como “neiga”, que soa muito parecido como “niga”, que é como se pronuncia o termo “nigger”, que costuma ser usado como um insulto racial nos Estados Unidos. Aparentemente, a escolha de uma sigla que soe dessa forma é proposital, segundo as ambíguas declarações do fundador da entidade, Philip Smith, um ativista pró-armas da Georgia – um dos estados do sudeste norte-americanos onde o racismo é mais forte.

A NAAGA nasceu em 2015 e em sete anos já superou a marca de 45 mil associados, e inaugurou 75 subsedes, em muitas das principais cidades e capitais de estado do país – o que ainda está muito abaixo dos cerca de 6 milhões de associados e mais de 2 mil filiais da NRA.

As diferenças entre a NRA e a NAAGA estão nesses pontos específicos: a idade, a estrutura, a quantidade de membros e a diversidade étnica. No discurso, elas dizem a mesma coisa, defendem a liberdade de acesso às armas e ações contra políticas proibitivas. Essa retórica inclusive se assemelha ao comentar as mortes de pessoas negras baleadas pela polícia com o argumento de que “a melhor forma de um negro se proteger disso é com uma arma” – parecido ao que a NRA prega como resposta aos casos de massacres em escolas e outros locais públicos.

Caso de corrupção

Entre 2018 e 2019, a NRA teve outro presidente famoso, porém muito mais polêmico: Oliver North, um ex-militar envolvido no escândalo Irã-Contras, nos anos 1980, quando era membro do Conselho de Segurança Nacional norte-americano. North e alguns membros do alto escalão da CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos) organizaram uma rede ilegal de venda de armas para o Irã – sim, o Irã, que na época já era a República Islâmica, liderada pelo Aiatolá Khomeini –, com a qual arrecadaram fundos para financiar as milicias anticomunistas da Nicarágua, as chamadas Contras, que lutavam contra o exército da Frente Sandinista de Libertação Nacional.

Na época, North e os demais envolvidos no escândalo alegaram que realizaram a operação devido a uma promessa dos iranianos de que ajudariam a libertar agentes estadunidenses que eram mantidos reféns pelo grupo libanês Hezbollah.

Em 1989, Oliver North foi condenado por participação no esquema de tráfico de armas e por obstrução da Justiça, mas cumpriu apenas um ano de trabalhos comunitários no Potomac Gardens, em Washington DC.

Os laços da NRA com a Rússia

A NRA começou tecer suas primeiras relações internacionais a partir do governo de Donald Trump, especialmente com países como Brasil e Austrália. Porém, há indícios de que a entidade também tenha ligações com o governo da Rússia, e que essas sejam inclusive anteriores à chegada de Trump à Casa Branca.

O FBI (sigla em inglês do Departamento Federal de Investigação dos Estados Unidos) está trabalhando há anos no caso sobre a suposta interferência de Moscou nas eleições presidenciais estadunidenses de 2016, aquelas que foram vencidas por Trump. Uma das linhas investigativas indica que a NRA teria sido usada no esquema para canalizar o dinheiro russo que foi injetado na campanha do candidato republicano – algo que, se provado, configuraria uma violação da lei eleitoral norte-americana, que proíbe o financiamento por entes estrangeiros.

Curiosamente, também desde aquele 2016, a NRA tem desenvolvido boas relações com vários funcionários importantes do governo russo, como Alexander Torshin, vice-governador do Banco Central da Rússia e figura relativamente próxima ao presidente Vladimir Putin.

Segundo matéria da Bloomberg, Torshin teria sido um dos elos entre o trumpismo e o governo russo, e essa colaboração teria começado quando ele se encontrou com Donald Trump Jr., filho do futuro presidente, justamente em uma reunião anual da NRA, realizada em Kentucky. Torshin foi um dos primeiros russos a se tornar membro da associação e fazia parte dela ao menos até 2018.

O artigo também afirma que a NRA tem mostrado dificuldade em esclarecer a origem dos US$ 55 milhões que doou para campanhas eleitorais em 2016, incluindo os US$ 30 milhões destinados à campanha presidencial de Trump.

Eduardo Bolsonaro e a NRA

Apesar dos laços com políticos russos, a expansão internacional da NRA tem como primeiros objetivos países que causam menos polêmica para o público estadunidense, como o vizinho Canadá, a Austrália e o Brasil.

A primeira passagem de representantes da associação por terras brasileiras foi em 2003, quando uma delegação liderada por Charles Cunningham, um dos principais lobistas da NRA, veio discutir estratégias de comunicação antes do referendo sobre o controle de armas que ocorreria dois anos depois. A presença de Cunningham e sua equipe no Brasil foi patrocinada pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Patrimônio, que tem entre seus membros mais destacados o bolsonarista Bertrand de Orleans e Bragança, descendente da antiga família real brasileira.

Mas aquela visita foi um fato isolado, e hoje em dia pode-se dizer que foi um Bolsonaro quem realmente abriu as portas do Brasil para a NRA, mas não Jair e sim Eduardo.

O deputado federal por São Paulo teve seu primeiro contato com representantes da NRA em 2016, quando foi apresentado a eles pelo ex-lutador Royce Gracie e pelo instrutor de tiro Tony Eduardo, pertencente à família proprietária do clube de tiro Ponto 38 de Santa Catarina, aquele mesmo que foi frequentado pelos filhos de Jair Bolsonaro e por Adélio Bispo dias antes da facada sofrida pelo então candidato em Juiz de Fora, em 2018.

Vale destacar que Tony Eduardo também é instrutor do polêmico clube de tiro estadunidense 88 Tactical, conhecido por suas referências nazistas.

Também há um detalhe adicional sobre Royce Gracie, já que ele serviu de intermediário para Eduardo Bolsonaro em outros contatos importantes que ele conseguiu nos Estados Unidos, como Donald Trump Jr e Steve Bannon, que serviram principalmente para fomentar a relação entre Brasília e Washington entre 2019 e 2020.

Dentro do clã, Eduardo Bolsonaro parece ser o principal responsável pelas relações internacionais com outros grupos de extrema direita, especialmente dos Estados Unidos. Ele costuma participar todos os anos do Shot Show, maior evento anual dos fanáticos por armas nos EUA.

Parte do seu trabalho nesse sentido é organizar e incentivar grupos e movimentos que repliquem no Brasil estruturas similares a que existem nos Estados Unidos para promover ideias e valores de extrema direita. A ideologia armamentista é uma delas e, nesse sentido, Eduardo tem se envolvido especialmente com o Movimento Pró-Armas, liderado pelo advogado Marcos Pollon.

O Movimento Pró-Armas

No site da organização não está detalhado em que ano ela foi criada, mas diz que sua missão é “abordar as questões sociológicas e filosóficas que estão por trás das políticas de desarmamento, bem como, o que sustenta o seu direito de ter acesso às armas de fogo”.

A página sobre a história do Movimento Pró-Armas também descreve o diretor Marcos Pollon como um “especialista em legislação de controle de armas, pró Deus, pró vida e pró armas”. Ele e seu movimento são presença constante nos eventos convocados por Jair Bolsonaro para pressionar o STF (Supremo Tribunal Federal), para questionar as urnas eletrônicas e as eleições, ou simplesmente para apoiar o governo.

Entre os armamentistas, Pollon é conhecido por sua retórica que insiste na ideia de que “a luta não é por armas, é pela liberdade”.

Em seu discurso na edição de 2021 da CPAC BR (versão brasileira da Conservative Political Action Conference, outra excentricidade da ultradireita estadunidense importada por Eduardo Bolsonaro), em setembro passado, Pollon deu declarações que comprovam seu alinhamento com Jair Bolsonaro e faz alusões acusatórias a Lula, à esquerda e ao STF. Em um momento da sua participação, ele diz que “quando você decide comprar uma arma, antes mesmo de tocar nela, você tomou uma decisão irrevogável: você não vai ser mais vítima, e a partir daquele momento qualquer injustiça vai calar fundo no seu peito e você reage, você reage ao Luladrão que destruiu o país, você reage à instrumentalização do país, você reage à corte que está querendo destruir o país” – foi interrompido por assovios e aplausos.

Dias antes, em 1º de setembro de 2021, Pollon e Eduardo Bolsonaro se reuniram com Silvinei Vasques, diretor-geral da PRF (Polícia Rodoviária Federal, a mesma entidade responsável pela morte do trabalhador Givanildo Santos em Sergipe, em maio passado), e pelo massacre da Penha, no Rio de Janeiro. O site do Governo Federal diz que o encontro serviu para “apresentação do manual de fiscalização de CACs, que visa trazer segurança jurídica e orientação aos policiais rodoviários federais e já está em fase final de elaboração”. Contudo, parte da imprensa especulou com um suposto pedido para flexibilizar a fiscalização de pessoas que viajavam para Brasília, onde ocorreria o ato de 7 de setembro, convocado pelo presidente para pressionar o STF.

CACs

Na prática, a tal liberdade defendida por Pollon e pelo Movimento Pró-Armas é especificamente a liberdade de adquirir e portar armas, e a forma que encontraram para tornar essa liberdade viável sem criar uma nova legislação que pudesse manchar o governo de Jair Bolsonaro é facilitando a aquisição de licenças para CACs (sigla Colecionadores de Armas, Atiradores Desportivos e Caçadores).

Durante os primeiros anos do governo de Bolsonaro, o número de CACs no Brasil disparou de forma alarmante: segundo uma reportagem da BBC News, houve um aumento de 50% desses registros no país somente no ano de 2019, que terminou com cerca de 397 mil CACs legalizados.

Isso significa que o número desses registros já supera o número de militares na ativa nas três Forças Armadas – cerca de 360 mil, segundo o Global Fire Power Index – e se aproxima inclusive do número de policiais militares que o Brasil possui – cerca de 406 mil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Essas estatísticas continuaram em aumento nos anos seguintes, especialmente no número de caçadores, que passaram de cerca de 56 mil em 2018 para 193 mil em 2021, segundo reportagem do Fantástico.

O caso dos caçadores é impulsionado por outro fenômeno, que é o da praga do javali. Em 2016, o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) passou a considerar o javali como uma praga e legalizou a sua caça, tornando-a a única espécie cuja caça é permitida no Brasil. Isso também provocou um aumento importante do chamado “turismo de caça” e há indícios de que alguns grupos estão trabalhando na proliferação da espécie como forma de manter a brecha, além de promover os negócios relativos à caça – a reportagem do Fantástico, a mesma do link no parágrafo anterior, mostra um empresário de Goiânia que oferece o serviço de “turismo de caça” e que descreve a existência de um esquema de tráfico ilegal do javalis do Sul para o Norte do Brasil, para se criar o pretexto para disseminar a caça e, consequentemente, o acesso às armas.

Bolsonaro tem sido um grande aliado da proliferação dos CACs, por foi a forma que ele encontrou de colocar em prática sua promessa de campanha de facilitar o acesso às armas de fogo. Até agosto de 2021, seu governo federal havia publicado 37 decretos, portarias e projetos de lei que facilitam o acesso às armas, além de reduzir a fiscalização dos CACs.

Uma dessas medidas, de agosto de 2020, foi a autorização da venda de fuzis do Exército para produtores rurais e para CACs, notícia que foi comemorada por Eduardo Bolsonaro em suas redes sociais.

Algumas dessas medidas para facilitar o acesso às armas foram barradas pela Justiça, mas muitas delas continuam vigentes. Além disso, há um processo aberto no STF (Supremo Tribunal Federal) questionando os decretos de Bolsonaro a favor das armas, mas se encontra parado desde setembro de 2021, quando o ministro Kássio Nunes Marques, nomeado pelo atual presidente, pediu vistas do processo – depois que os três primeiros ministros, Rosa Webber, Edson Fachin e Alexandre de Moraes, votaram pela inconstitucionalidade dos decretos, considerados uma “extrapolação regulamentar do presidente da República”. Vale acrescentar, ademais, que Nunes Marques possui registro de CAC, e não soltou o processo desde então.

Clubes de tiro

Outra via pela qual a cultura armamentista vem se propagando no Brasil é através dos clubes de tiro, atividade que vem demonstrando um crescimento vertiginoso em todo o país.

Somente em 2021 foram abertos 457 clubes de tiro no território nacional – segundo a coluna de Ricardo Noblat no Metrópoles, citando números do Exército. O crescimento com relação a 2020 é de 30% e significa mais de um clube novo por dia no país.

Esse recorde tende a ser batido em 2022, já que só os primeiros três meses deste ano registraram 268 novos clubes. No total, também segundo o Exército, há pouco mais de 2 mil clubes de tiro funcionando no Brasil.

A ligação do bolsonarismo com alguns desses clubes de tiro é direta. O caso mais conhecido é o do Ponto 38, o clube de Florianópolis que ficou conhecido devido ao caso da facada em Jair Bolsonaro em 2018, já que ele foi frequentado, semanas antes do ataque, tanto por Carlos e Eduardo Bolsonaro, filhos do então candidato, quanto por Adélio Bispo, o autor do crime. Além de bolsonaristas, os donos do Ponto 38 são fanáticos por Olavo de Carvalho, e chegaram a cunhar uma medalha com o brasão da família para presentear o falecido guru da extrema direita brasileira – episódio contado em matéria do DCM que, ademais, descreve toda a estrutura do clube.

Outro frequentador do Ponto 38 é o diretor-geral da PRF (Polícia Rodoviária Federal), Silvinei Vasques, citado acima por sua reunião com Eduardo Bolsonaro e Marcos Pollon na qual combinaram a flexibilização da fiscalização aos CACs nas vésperas do ato de 7 de setembro de 2021.

Apoiadores de Bolsonaro

Dois anos antes de ser nomeado por Jair Bolsonaro como diretor-geral da PRF, Vasques recebeu outra missão do presidente: ele era um policial rodoviário de Santa Catarina, até 2020, quando assumiu a delegacia de Angra dos Reis, o que significou ter poderes sobre a fiscalização do Porto de Itaguaí, porta de entrada do contrabando de armas no país.

Chama a atenção nas duas citações a Vasques como sua carreira ascendeu meteoricamente durante o atual governo, a partir de uma relação de simples amigos e frequentadores do mesmo clube de tiro.

Contudo, não é exagero afirmar que, mesmo entre os clubes que não possuem ligação direta com o clã, existe devoção dos frequentadores à figura de Jair Bolsonaro e ao bolsonarismo. Esse sentimento é disseminado por figuras como Marcos Pollon e outros influenciadores armamentistas, em páginas e canais voltados aos CACs e outros grupos de extrema direita, que apontam o atual presidente como o responsável pelas políticas que estão permitindo um acesso mais fácil às armas e uma propagação dessa cultura no Brasil.

Porém, alguns desses clubes de tiro aparecem ligados a diferentes tipos de contravenção, incluindo casos que também respingam no governo de Jair Bolsonaro.

CACs e organizações criminosas

Um levantamento feito pelo jornal O Globo mostra que há 25 processos em andamento nos tribunais de Justiça do país em que CACs estão acusados ou condenados por fazerem parte de organizações criminosas. Em 60% dos casos, os acusados conseguiram seu registro de CAC após os decretos bolsonaristas que facilitarem a obtenção do mesmo – para, depois, utilizar essa licença para adquirir as armas legalmente com maior facilidade e em maior quantidade.

Também chama a atenção o fato de que muitos desses réus afirmam que são frequentadores de clubes de tiro, o que lhes permite aproveitar uma brecha legal que foi criada por um decreto de Bolsonaro que autoriza o porte de armas por parte dos CACs quando estes alegam estar em caminho a um clube de tiro.

Outra reportagem de O Globo, também escrita pelo jornalista Rafael Santos, cita diferentes casos de criminosos ligados a milícias ou grandes facções do crime organizado que conseguiram seus registros de CAC e os utilizam para facilitar seu acesso legal a armas de fogo – os casos apontados são, em sua maioria, de contraventores que atuam em São Paulo, Rio de Janeiro Mato Grosso do Sul e no Distrito Federal.

A proliferação dos clubes de tiro e dos CACs fez com que denunciar os possíveis crimes cometidos por esses se torne uma tarefa de alto risco. Um caso que chamou a atenção foi o do jornalista Gabriel Luiz, da TV Globo de Brasília, que foi esfaqueado dias depois da transmissão de uma matéria na qual ele denunciava que as balas disparadas em um clube de tiro em Brazlândia atingiam as casas vizinhas ao local – o estabelecimento foi fechado após a matéria.

As investigações não determinaram uma relação direta entre os autores desse crime e o clube de tiro – a polícia afirma que o caso se tratou de uma tentativa de latrocínio –, mas assim como Gabriel Luiz, outros jornalistas que fizeram matérias sobre clubes de tiro afirmam ter recebido ameaças por telefone ou em suas redes sociais.

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Essa reportagem faz parte da investigação do projeto Xadrez da ultradireita mundial à ameaça eleitoral, uma campanha do Catarse para produzir um documentário sobre o avanço da ultradireita mundial e a ameaça ao processo eleitoral. Colabore!