A falsa equivalência entre a “voz do povo”e a Ciência, por Paulo Cesar de Paiva

Os bichinhos foram chamados de larvas (incorretamente), vermes (corretamente, mas com um toque depreciativo) pelos populares e repórter

Prefeitura do Rio

“É claro que é larva”- as larvas fake do piscinão de Ramos e a falsa equivalência entre a “voz do povo”e a Ciência.

por Paulo Cesar de Paiva

No último dia 10 fui surpreendido com mensagens de colegas da universidade com fotos, vídeos e uma reportagem veiculada, na mesma manhã, no programa Bom dia Rio − noticiário local da Rede Globo de Televisão1. O vídeo era sobre a proliferação de pequenos animais, semelhantes às minhocas, nadando desenfreadamente nas águas, até relativamente claras, do famoso Piscinão. Os bichinhos foram chamados de larvas (incorretamente), vermes (corretamente, mas com um toque depreciativo) pelos populares, repórter e apresentadores. O INEA (Instituto Estadual do Ambiente) responsável pela avaliação da qualidade das águas no Estado do Rio de Janeiro, deu uma resposta protocolar de que estaria avaliando o risco, recomendando que a população não se banhasse nas águas até que um laudo pudesse esclarecer quem era a tal larva.

Para mim, o surpreendente foi ver o meu objeto de estudo há mais de 30 anos − sim tem gente que estuda minhocas marinhas como eu e, não são poucos −aparecer numa reportagem de televisão causando tanta repercussão. Ciente da velocidade da informação nas redes, fui ao X (antigo Twitter) e ao site do G1, onde estava hospedada a referida reportagem, para esclarecer que as tais “larvas” nada mais eram que animais marinhos, parentes das minhocas (chamados de poliquetas), que vivem nos fundos dos oceanos, lagoas e baías, como a vizinha Baía de Guanabara. Estes animais, em determinadas épocas, sofrem uma mudança no corpo (metamorfose) que permite que saiam do fundo para a superfície da água onde se reproduzem em uma dança frenética. Este fenômeno natural ocorre ao mesmo tempo, daí o “enxame” observado no Piscinão. Ou seja, naquele momento o Piscinão estava funcionando como o que realmente é: um pedaço, mesmo que artificial, do mar, com água salgada, animais, vegetais, microrganismos e assim por diante, ou seja com sua biodiversidade.

Entretanto o ponto aqui não é explicar do que se trata o bicho, mas sim relatar o que se passou depois. A Fundação Rio-Águas, vinculada à prefeitura e responsável pela manutenção do Piscinão me procurou para esclarecer o que eram aqueles animais. Explicação dada, me foi solicitado uma participação na edição do dia 11 do mesmo Bom Dia Rio2 para esclarecer o mal-entendido, antes que fosse tarde. Como tinha outro compromisso (a reportagem seria ao vivo) concordei em gravar um breve vídeo para esclarecer a não gravidade da situação e que os bichinhos eram inofensivos.

No dia seguinte, pela manhã, me sentei na frente da televisão e, após uma longa reportagem sobre três cães abandonados em uma casa na Pavuna, vi e ouvi novamente os apresentadores se referindo às “larvas”, antes alertando ao público para que se afastassem do café da manhã durante a veiculação das imagens, seguido de um “que nojento” da apresentadora. A reportagem passa a mostrar as margens do Piscinão e a repórter narra novamente a dança dos vermes incluindo o vídeo por mim gravado. Na versão veiculada, reduziram a parte em que eu mencionava a possibilidade do evento ser causado pelas altas temperaturas daquele dia (era um dia extremamente quente no Rio de Janeiro), cortando qualquer menção às mudanças climáticas que constavam do vídeo original. A reportagem continuou com uma entrevista, no local com o Secretário da Casa Civil da Prefeitura (Eduardo Cavalieri) e o Presidente da Fundação Rio-Águas (Wanderson Santos) – reafirmando que não se tratava de larvas (o que, aliás, não seria um problema), nem de organismos tóxicos e destacando que devemos “ouvir a Ciência”. O apresentador, aparentando uma certa frustração com o fim precoce da pauta, declara que a “tal da poliqueta” não faz mal à saúde, mas acrescenta um: “segundo alguns biólogos”.

Bom, vamos a algumas considerações: (1) a associação destes animais como coisas “nojentas” que não devem ser vistos durante a refeição cria uma ideia de que quaisquer animais, com exceção talvez dos cães da Pavuna e outros vertebrados, são coisas sujas, indesejáveis e perigosas – discurso este que não ajuda em nada, aliás atrapalha muito na conscientização popular neste período de crise de biodiversidade no planeta. (2) a explicação de que é um animal marinho inofensivo não é a opinião de “alguns biólogos”,
garanto que se fossem ouvidos 2, 5, 10 ou 100 biólogos, oceanógrafos ou mesmo não especialistas um pouco esclarecidos, estes diriam o mesmo. (3) Foi desconsiderada a alusão ao verdadeiro desastre para a humanidade que é o relatório que aponta o ano de 2023 como o mais quente da história dos últimos 100.000 anos3, mas para os grandes meios de comunicação os cães abandonados da Pavuna parecem merecer maior destaque. Para estes, pauta sobre mudanças climáticas é assunto para jornais de canais fechados e um público de classe média, não para o povo.

Bom, assunto encerrado. Só que não! Fui ver os comentários da nova reportagem nas redes, afinal é isso que vale agora! A repercussão não poderia ser pior, foram ignorados quaisquer esclarecimentos ou explicações, nada mudou. “Quero ver o tal especialista mergulhar lá” (respondo que já mergulhei em lugares bem piores), “Claro que são larvas, todo mundo vê”, etc. etc. Nada do que foi dito por mim ou pelos representantes da prefeitura foi considerado. As críticas mais ácidas vinham de perfis com bandeiras do Brasil e menções à Deus. Mas diversas eram de pessoas com perfis progressistas, que viam em tudo apenas uma demonstração de como “ferrar os mais pobres que frequentam o Piscinão”. Recebi depois vídeos de outras redes de TV e canais online. Um biólogo (Alex exaluno da UFRJ) falou o mesmo que eu, como esperaria de qualquer biólogo e bióloga, inclusive do corpo qualificado do INEA que, aparentemente, não foi consultado imediatamente. O INEA, segundo reportagens, sugeriu que não se frequentasse o Piscinão por uma semana, privando a população de um mínimo de lazer na véspera de um fim de semana de calor insuportável.

O SBT Rio também fez uma reportagem4, também seguida de caras de nojo e expressões de ojeriza, mesmo com todos os esclarecimentos, novamente, do Presidente da Fundação Rio-Águas mencionando o que eu havia dito. A reportagem finalizava com a repórter proferindo a seguinte pérola: “Você decide se as minhocas são amigas ou se são um risco em potencial” ao invés da opção mais sensata: “Você decide se deve entrar ou não no Piscinão”.

Bom, vamos lá − não é uma questão de opinião! O animal em questão, não oferece perigo, isto é um fato. Assim como é um fato que ele não seja tóxico ou peçonhento e seja um animal adulto, não uma larva ou um microrganismo. A título de exemplo, ninguém disse que os cães abandonados da Pavuna eram cães “segundo um especialista”, eles simplesmente eram animais da espécie Canis lupus (vulgo cães) assim como os animais do Piscinão eram Allita succinea (vulgo poliquetas) é assim que a ciência trabalha, com fatos, observações e consensos, e não com opiniões não embasadas.

Mais reportagens, replicando as anteriores e uma entrevista ao Diário do Rio com a mesma versão em texto5, mas o assunto já morreu. O desastre das chuvas no Rio de Janeiro no fim de semana seguinte (olha as mudanças climáticas aí minha gente!) se tornou, com razão, a nova pauta e o conflito INEA vs Prefeitura do Rio ficou para outra ocasião.

Mas o que ficou para mim foi a triste equivalência da opinião leiga com a da Ciência, num peso 1:1 que parece ter ressurgido de forma assustadora nos recentes anos de pandemia e continua por aí, ou como diria o saudoso Umberto Eco: “as redes promoveram o idiota da aldeia a portador da verdade”.

Só que neste caso o problema não é restrito às redes sociais. Um argumento utilizado com frequência pelos grandes meios de comunicação é que estes se diferenciam das redes por haver uma certa curadoria que filtraria as informações. Bom, neste sentido alimentar a imagem “suja” da natureza com o uso e abuso de caras e bocas, usar a conjunção subordinativa “segundo” dando uma ideia de que se trata apenas de uma opinião e não de um fato só ajudam a atiçar a fogueira das redes.

Minha esposa me avisou para me cuidar. Afinal existe um ódio quase mortal dos comentaristas de plantão contra o poliqueta, eu, a prefeitura ou qualquer informação que se contraponha a ideia original fincada como uma cunha em cérebros cada vez mais amaciados pelas redes e grupos de Whatsapp. Segundo minha esposa, se alguém, no Piscinão, pisar num prego ou tiver queimaduras com o limão de uma caipirinha, vão me culpar, afinal eu disse que não havia risco!

Paulo Cesar de Paiva – professor da UFRJ há quase 30 anos e atualmente Diretor Editorial Adjunto do periódico de divulgação, Fórum UFRJ em Revista (https://emrevista.forum.ufrj.br).  

NOTAS

1
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/video/inea-e-secretaria-de-meio-ambiente-recolhemlarvas-encontradas-no-piscinao-de-ramos-12254604.ghtml

2
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/bom-dia-rio/video/especialista-diz-que-animais-marinhosachados-no-piscinao-de-ramos-nao-oferecem-risco-a-populacao-12257120.ghtml

3
https://climate.copernicus.eu/copernicus-2023-hottest-yearrecord#:~:text=Not%20only%20is%202023%20the,least%20the%20last%20100%2C000%20years.%E
2%80%9D
4
https://www.youtube.com/watch?v=e0w7rBiW4Ig

5
https://diariodorio.com/professor-da-ufrj-explica-o-fenomeno-das-larvas-encontradas-nopiscinao-de-ramos/
AS “LARVAS” DO PISCINÃO 5
Paulo Cesar de Paiva é Professor Titular do Departamento de Zoologia do Instituto de Biologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Trabalha com animais marinhos, especialmente anelídeos poliquetas,
desde 1985. É também Diretor Editorial Adjunto do periódico de divulgação científica “Fórum UFRJ em
Revista” do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ (https://emrevista.forum.ufrj.br/)

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