Memórias em ruínas no filme ‘Retratos Fantasmas’
por Wilson Roberto Vieira Ferreira
As ruínas nos fascinam. Desde o início da arqueologia moderna, influenciou a sensibilidade artística criando um imaginário associado a memórias, fantasmas e desaparecimento até chegar, no século XX, ao “princípio das ruínas” como propaganda e estética política nazista: ruínas como inspirações para as gerações futuras. Kleber Mendonça Filho consegue representar esse imaginário em “Retratos Fantasmas” (2023) através de uma jornada pessoal e sociopolítica pelas memórias trazidas pelas ruínas urbanas: da casa vizinha ao edifício em que mora aos cinemas de rua abandonados do Centro do Recife. Como a modernidade cria incessantemente ruínas. E como nos relacionamos com elas através das memórias. Além de as ruínas apontarem para o futuro quando salas de projeção viram templos religiosos.
Desde o surgimento no Ocidente da arqueologia moderna no século XVIII, com eruditos e cientistas, o fascínio pelas ruínas foi muito além de um estudo disciplinar. As ruínas tornaram-se o tema favorito da sensibilidade artística. Os próprios arqueólogos usavam ilustradores integrados às investigações de campo.
Mais tarde, na explosão do esoterismo e do Romantismo no século XIX, as ruínas foram associadas às memórias e fantasmas. Espiritualistas e esotéricos acreditavam que os ambientes em que vivemos nos transmitem energias. Isso porque as paredes têm memórias – Mágoas, ressentimentos, dor, ódio; mas também alegria, entusiasmo, amor, paixão que seriam absorvidos pelo ambiente: cimento, tijolos, madeira e outras materiais que absorveriam as vibrações naquele ambiente, irradiando ondas de energia etérica.
Realidade ou não, o fato é que essa ideia dá sentido ao arquétipo dos fantasmas e casas mal-assombradas como materializações ou condensações dessas vibrações que repercutem nos vivos.
Simultaneamente, cronistas, poetas e pintores descobriram um novo tipo de ruínas: as criadas pela vida moderna – pintores impressionistas, poetas e cronistas românticos (Monet, Baudelaire etc.) registram tudo aquilo que outrora era sólido e estava desaparecendo no ar.
O ápice foi a obra das “Passagens” do filósofo Walter Benjamin, descrevendo a experiência das ruas de Paris, o flâneur e a estética do choque.
Não tardaria muito para essa sensibilidade artística se transformar numa estética política com o arquiteto de Hitler, Albert Speer e o seu “princípio das ruínas”: projetos de construção de edifícios monumentais predestinados à destruição, criando ruínas peculiares, pitorescas, que inspirariam as gerações futuras, tornando-as curiosas sobre o que foi o Terceiro Reich.
Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho, é um filme que traduz filmicamente esse imaginário moderno das ruínas – uma verdadeira declaração de amor à sua cidade natal, Recife, narrando uma jornada sentimental por lugares, casas, bairros e cinemas antigos de rua que marcaram a sua vida. E nessa jornada sentimental, ecoa todos esses aspectos das ruínas na modernidade: memórias, fantasmas e estetização política.
Kleber Mendonça tem uma rara habilidade de lidar com espaços e pessoas, criando dinâmicas entre o espaço físico e o psíquico. Em O Som ao Redor, o tema era um bairro; em Aquarius, era sobre um edifício; Bacurau era sobre as pessoas num vilarejo.
Mas é em Retratos Fantasmas que Kleber Mendonça Filho explora exclusivamente esse tema: de como as pessoas dão vida aos lugares, de como a História transforma os lugares, mas, principalmente, de como o Tempo transforma os lugares em memórias de cenários em ruínas. E como essas ruínas nos transformam.
Ao longo do filme Mendonça Filho apresenta alguns locais chave da cidade que marcaram sua vida: o apartamento de sua mãe falecida, um centro da cidade de Recife decadente e cinemas de rua em ruínas. Através de imagens de arquivo e materiais recentes gravados (inclusive da filmografia do diretor), entramos em uma viagem ao passado, cujas memórias ainda impactam o presente.
A primeira grande virtude de Retratos Fantasmas é a do diretor sair ileso da armadilha da autoindulgência – evita os chavões da filosofia cinéfila (principalmente quando trata das ruínas dos cinemas de rua), principalmente pelas múltiplas personas que Mendonça assume ao longo do filme: às vezes assume o papel de repórter; outras vezes de um contador de histórias; como observador participante – de qualquer forma, sempre a narrativa em off do diretor é autoconsciente, com momentos de bom-humor e ironias.
Portanto, Mendonça não se deixa cair no clichê da “celebração da sétima arte”. Sempre mantém uma dialética perfeita entre o distanciamento consciente e narrações sobre memórias da sua vida.
O Filme
Retratos Fantasmas é dividido em três partes: na primeira as relações afetivas de diretor e sua mãe com o apartamento em que moravam e o bairro na sua infância no Recife; a decadência do Centro de Recife e seus cinemas de rua; e as salas de cinema que se transformaram em templos evangélicos.
De forma magistral Mendonça tece as relações entre sua mãe e o apartamento: como as sucessivas reformas refletiram fases da sua vida e até mesmo a última, próximo da sua morte. Como fosse uma cirurgia decisiva, assim como a sua no combate ao câncer. E também, como o apartamento transformou-se em set de filmagem, inclusive para locações de filmes anteriores como Aquarius e O Som ao Redor.
De tanto usar o espaço do apartamento para fotografia e filmagens, acabou captando supostamente a imagem de um fantasma. “Muitos religiosos disseram que eu era médium”, diz o diretor. A imagem é assustadora, e parece ser mais do que um fenômeno de pareidolia – fenômeno psicológico de identificação ilusória de imagens e formas em estímulos vagos e aleatórios.
É o evento insólito que acabou dando nome ao filme, mas que se transforma numa metáfora mais geral que sustenta o filme: a relação das pessoas com espaço é tão intensa que muitas vezes as memórias podem ganhar vida e o passado influenciar os vivos.
É quando as ruínas começam a tomar conta da narrativa: como a casa vizinha fica abandonada e é invadida pela Natureza (cupins e gatos), obrigando a cercar o muro do edifício com arame farpado e telas nas janelas – além do combate aos cupins que invadem o apartamento.
Da cartografia afetiva de um apartamento, Mendonça Filho passa para a cartografia urbana do Centro decadente do Recife e seus cinemas de rua abandonados. São ruínas da modernidade: de como o dinheiro abandonou o Centro e foi construir os altos prédios comerciais da Zona Sul.
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