O Rio Negro, de Nei Lopes, e a “degeneração dos negros”, de Octavio Ianni, por Rogério Mattos

Nei Lopes atualiza a antiga discussão sobre a "cordialidade brasileira" em contraposição a um debate da época ambientada no livro, relativa a chamada "revolução brasileira".

O Rio Negro, de Nei Lopes, e a “degeneração dos negros”, de Octavio Ianni

por Rogério Mattos

Em seu romance Rio Negro, 50, Nei Lopes atualiza a antiga discussão sobre a “cordialidade brasileira” em contraposição a um debate da época ambientada no livro, relativa a chamada “revolução brasileira”. Na academia, as discussões não avançaram muito, ainda apegadas ao Édipo correspondente à identidade nacional, a do “homem cordial”. Porém o professor João Cezar de Castro Rocha mostra um caso flagrante de, no mínimo, desonestidade intelectual na leitura sobre o tema, vinda da Escola Paulista de Sociologia através da figura de Octavio Ianni. O presente texto pretende contrapor a abordagem ficcional a acadêmica, caminho que pode abrir novas perspectivas para a leitura de alguns dos clássicos formadores da história do Brasil.

O problema colocado pelo romance

Em determinado momento do romance de Nei Lopes, Rio Negro, 50, gira uma discussão sobre o 1º Congresso do Negro Brasileiro, realizado no prédio da ABI e idealizado pelo Teatro Experimental do Negro (TEN) sob a liderança de Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos. Num dos bares-protagonistas do romance, as críticas, o Colored, são baseadas no fato de que os mais pobres estão precisando de empregos, não de teatro. Além disso, “as pretas agora só querem saber de escola de samba e gafieira. Ninguém quer nem passar perto de um tanque, arrumar a casa, pegar num escovão, num ferro de engomar…” (LOPES, 2015, p. 46). O negócio das “pretas” e “pretos”, agora, é serem cantoras de rádio, artistas de teatro, apostar em corrida ou serem atletas do Flamengo ou até (do elitista) Fluminense… Bem diferentes são as discussões no bar concorrente, o Rio Negro, com Esdras, o baixinho destemido e transgressor. Ele é membro da “Uagacê” (União dos Homens de Cor) e um dos líderes do TEN. Numa entrevista, ele mostra seus planos, ignorando totalmente as malícias do repórter:
– Temos do nosso lado gente muito boa, de posses, que está ajudando muito. Uma das ideias é escolher, entre crianças e adolescentes, os mais inteligentes e com boas notas na escola, pra dar a eles instrução, secundária, profissional e superior, quer dizer, dar a elas todas as oportunidades pra desenvolverem suas capacidades (…) – Esse grupo quer também fornecer auxílio material a artistas e escritores, pra que eles possam não só criar como mostrar, divulgar e até vender, depois, os trabalhos que criarem (…) – Estamos também organizando um departamento feminino. Aí, as moças e senhoras formadas – professoras, enfermeiras… – vão orientar as menos esclarecidas sobre assunto delas, inclusive em termos de saúde, essa coisa toda… (LOPES, 2015, p. 33-47)
Se um dos dois personagens, Paula (Assis) e Paulo (Cordeiro), formam um duplo (nunca uma “dupla”, até porque não agem assim no romance), ou seja, o escritor se desdobra no advogado (que Nei Lopes é) e se redobra no pesquisador (que Nei Lopes também é), Esdras parece aglutinar características dos dois líderes do TEN, Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos. Talvez nem tanto por características físicas ou psicológicas (baixinho e enérgico, generoso e solidário) – que nos faltam material para traçar as correspondências –, mas por, com certeza, a postura de Esdras compor tanto o programa de formação pedagógico-política do Teatro Experimental do Negro, quanto o ideal de formação filosófica defendido pelo autor de A Redução Sociológica:
Tudo o que faz é para transgredir os limites, o que nem sempre é bem aceito. Para ele, todas as coisas se estendem uma nas outras. Por isso ele luta contra o racismo, para que o negro se estenda no branco; luta pela Humanidade, para que esta se estenda no mundo. Nele, convivem a cordialidade e a agressividade. É tão carinhoso com as pessoas que gosta quanto intransigente nas ideias que defende. Como, por exemplo, na necessidade de tornar visíveis as grandes realizações do povo negro. (LOPES, 2015, p. 34)
Interessante notar igualmente como o autor se coloca no tempo onde o livro é escrito, como um dos protagonistas e espectador, daquela década de 1950. Ao conviver com os personagens da época, Nei Lopes reatualiza um debate tão comum na academia ainda hoje (na Literatura, História, Sociologia), sobre a cordialidade brasileira. Mais impactante, talvez, seja a centralidade de Raízes do Brasil nesse debate, sendo que ele precede à publicação do livro de Sérgio Buarque e de Casa Grande & Senzala, como continua enquanto ainda era vivo dentro do país o pensamento social brasileiro, antes do Golpe de 64 e/ou do AI-5.

A discussão acadêmica

O professor João Cezar Castro Rocha retoma, em pequeno trecho de um artigo, a continuidade desse debate, em especial a partir da USP e o papel exercido por Octavio Ianni num caso que pode ser classificado, no mínimo, de desonestidade intelectual. Ao recortar de maneira deliberada um trecho do prefácio da 1ª edição de Casa Grande & Senzala, descreve o desembarque de marinheiros brasileiros no Brooklin, onde “sob o fantasma de preconceitos europeus e norte-americanos, Freyre teria diagnosticado definitivamente a debilidade congênita do brasileiro, fruto inelutável da miscigenação” (ROCHA, 2012, p. 26). Pelo contrário, Freyre, ao contrapor a imagem negativa daqueles que pareciam “caricaturas de homem” com as palavras do “sábio” John Casper Branner, entusiasta da miscigenação, ou as de Roquette Pinto (num congresso de arianistas), de que não eram os mulatos e cafuzos que costumavam representar o Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes, Rocha mostra a violência gratuita exercida por Octavio Iann contra Freyre. O professor simplesmente mostra a continuidade do Prefácio para fazer ver como tendenciosamente Ianni cortou a referência aos marinheiros antes que o próprio Freyre fizesse seu contraponto. Como diz Rocha, “em Casa-grande & senzala, o sábio é o próprio Freyre e o elogio é menos ao mestiço do que à civilização brasileira, compreendida sob o signo da miscigenação” (p. 27). O que estava em jogo é a visão de alguns marinheiros recém desembarcados, muitos deles deveriam estar mareados ou mesmo com doenças devido à longa viagem. Seria um agravante o fato de em sua maioria serem mulatos, mas o sociólogo pernambucano, na época, ainda não adotara a postura reacionária dos anos subsequentes. Da mesma maneira que, para ele, não é o africano que degenera a sociedade, mas a instituição da escravidão (é conhecida a passagem do livro em que ele fala que “enquanto o negro civiliza o Brasil, o português sifiliza o Brasil”), as difíceis condições de viagem não são um fator estrutural (como poderia sê-lo?) que mostrariam “caricaturas de homens” como a imagem do Brasil. De acordo com o programa de CG&S, deve ser mostrado o aspecto civilizatório da miscigenação lado a lado com o fator degenerador que o projeto de civilização liderado pelas elites brasileiras acaba por realizar nos estratos mais pobres da sociedade. O artigo do professor João Castro, contudo, se mostra ainda imaturo em relação às reflexões que propõe. Na ocasião, prometeu que naquele mesmo ano, 2012, sairia um livro sobre o tema. Parece que acabou entrando em uma das estantes das bibliotecas imaginárias que nós, intelectuais, tantas vezes, e com tanto desvelo, construímos…

Um debate ainda imaturo?

Imaturo num aspecto duplo: ao colocar o problema como uma “rivalidade literária” entre uma escola paulista e outra pernambucana no contexto da produção historiográfica de Sérgio Buarque de Holanda, parece deixar de lado que o projeto historiográfico deste está bem distante dos trabalhos realizados pelos sociólogos da USP. Pelo contrário, quem terá papel fundamental na continuidade deste debate (e talvez por isso tenha sido “apagado da história” por essa mesma “escola”), é Florestan Fernandes. Além do mais, ele se recusa a participar do CEBRAP, onde se reunirão tantos destes intelectuais, por divergências teóricas e políticas, em especial pelo financiamento da Fundação Ford ao grupo. Como resultado de fato, sabemos como o CEBRAP apagou a teoria da dependência transformando-a em teoria do capital associado (e subordinado), em mais um capítulo de desonestidade intelectual (para dizer o mínimo) da “escola paulista”. E ainda assim, fundaram todo um modo de se interpretar o Brasil… Não é porque Sérgio Buarque foi apagando inúmeras referências controversas expostas na 1ª edição de sua obra que, necessariamente, ele agia no sentido de desprestigiar o trabalho inicial da carreira Freyre, ainda mais no modo como Octavio Ianni fez. É natural que o entusiasmo inicial com as teses de CG&S tenha sido substituído por uma aversão ao posicionamento político do intelectual pernambucano, cada vez mais reacionário e cada vez menos inovador[1]. Contudo, ainda hoje se pode ver claramente como o ensaio de Buarque dialogou com o livro de Freyre, assim como o fez o importante livro de Caio Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo. São três livros, literalmente, testemunhos de uma época. Como também são testemunhos daquela década de 1950 retratada por Nei Lopes as discussões sobre a chamada “revolução brasileira” que implicam uma atualização das discussões das décadas passadas, em especial sobre a mestiçagem e a cordialidade brasileira. O debate entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes deveria ser considerado nas especulações a respeito desse verdadeiro Édipo brasileiro, o mito da cordialidade. Aqui se vê claramente algum dos limites da ficção: se o romance Rio Negro, 50 é ele próprio uma atualização do debate, ocorre mais por recolocar as ideais novamente no circuito do que propriamente por retratá-las pormenorizadamente. Entre as limitações da teoria e os da ficção, que podem ser superados em ambos os lados, pois nem uma nem outra por si é um impeditivo para tratar do “nosso Édipo”, deixo aqui marcado como ponto importante a ser revisto, não importa por qual tipo de escritor-pesquisador.
[1] Se são notórias as exclusões a Gilberto Freyre e a Carl Schmitt, por que SBH manteve Machado de Assis como exemplo de “homem cordial”? Será só uma questão de “bairro”, como o conceito de “rivalidade literária” pressupõe ou, mesmo depois de tantas modificações, haveria alguma motivação para a referência ao maior nome da literatura nacional permanecer intocado num contexto não muito favorável de Raízes do Brasil? A pergunta pode parecer impertinente, mas por que não pode ser feita? Bibliografia LOPES, Nei. Rio Negro, 50. Rio de Janeiro: Record, 2015. ROCHA, João Cezar de Castro. Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre: raízes de uma rivalidade literária”. Dicta&contradicta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira ; São Paulo: IFE, 2012.

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Redação

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