A coalizão entre o vírus, a irresponsabilidade e a ignorância constituirá o adversário mais difícil do Brasil, por Sergio Guedes Reis

Na prática, o Brasil até agora testou 20 vezes menos do que os EUA, e atualmente (nesta última semana) está testando 32 vezes menos.

A coalizão entre o vírus, a irresponsabilidade e a ignorância constituirá o adversário mais difícil do Brasil

por Sergio Roberto Guedes Reis

Em meio às precipitadas discussões sobre o “retorno à vida normal” (tanto no Brasil, longe do pico de COVID-19, como nos EUA), um Estudo da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard aponta, no caso norte-americano, para a necessidade de que se triplique o número diário de testes feitos naquele país, apenas para que o país seja reaberto em 15 de Maio.

Atualmente, cerca de 146 mil testes são conduzidos por dia nos EUA, com uma taxa de positivos superior a 20% (30 mil novos casos/dia). Apenas nesta semana é que o país alcançou a marca de 1% da população testada para o COVID-19 (Itália, Espanha, Portugal, Alemanha e Noruega, entre outros países, já testaram mais de 2% da população). O que o estudo propõe é que seja necessário que mais de 500 mil testes sejam feitos ao dia para que o percentual de contaminados (taxa de positivos) caia para menos de 10% (limite máximo estabelecido pela OMS para que medidas de relaxamento da quarentena comecem a ser implementadas).

E qual é a situação do Brasil? Não sabemos bem ao certo, já que não há atualmente um esforço de coordenação atual do Ministério da Saúde para que saibamos o total de testes realizados. Na análise de cenários que publiquei na semana passada, a continuação da situação observada naquele momento nos levaria hoje a 38 mil casos, com 108 mil testes feitos (dados mais recentes apontam para 36,8 mil casos, sugerindo uma quantidade de testes efetivamente feitos um pouco inferior ao estimado).

Se o modelo estiver razoavelmente correto, isso significa que nessa última semana tivemos pelo menos 60% dos testes dando positivo – um sinal evidente da falta de testagem. O modelo também aponta pra aproximadamente 4,5 mil testes concluídos ao dia. Na prática, o Brasil até agora testou 20 vezes menos do que os EUA, e atualmente (nesta última semana) está testando 32 vezes menos.

Como na prática o Brasil mantém um nível de isolamento social inferior ao registrado nos EUA, a diferença entre os dois países com relação ao total de contaminados vem caindo rapidamente ao longo do tempo. Já que o governo brasileiro prometeu ampliar a quantidade diária de testes feitos para apenas 30 mil/dia, então nesse ritmo nós reduziríamos o percentual aos de casos positivos para o percentual hoje existente nos EUA (20~25%) apenas em meados de Julho. Caso nós implementássemos uma quarentena mais séria e subíssemos a quantidade de testes diários para o patamar atual dos EUA (150 mil testes/dia), então na segunda quinzena de Junho é que teríamos uma “luz no fim da quarentena”. Isso, no entanto, é hoje bastante improvável de ocorrer no curto prazo, especialmente porque a capacidade de processamento dos laboratórios brasileiros ainda é baixa, independentemente da quantidade de testes adquiridos. Tudo isso, é claro, sem considerarmos questões-chave como o risco de reinfecção, a saturação dos sistemas de saúde e a possibilidade de mutação do vírus…

Se nos EUA a discussão sobre a plena volta ao normal em um mês soa tremendamente precipitada diante do número atual de testes feitos e do percentual de casos positivos ao dia, faltam palavras para descrever a impropriedade de se demandar o fim das medidas de isolamento social no Brasil, como temos visto nas “carreatas da morte” que estão ocorrendo em São Paulo e em algumas outras cidades neste fim de semana. A coalizão entre o vírus, a irresponsabilidade e a ignorância constituirá o adversário mais difícil que o Brasil já enfrentou.

Redação

4 Comentários

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  1. Caro Sérgio,
    Vi reportagem na TV (acho que CNN Brasil), dentro de um laboratório importante, mostrando que há uma máquina que teria capacidade para processar cerca de 1500 testes por dia, mas ela está parada porque faltam os insumos (reagentes), que são de procedência alemã, mas o repórter informa que a importação não está sendo possível porque a Alemanha não iria nos enviar se por lá precisam tanto quanto por aqui.
    E realista qualquer hipótese de aumentar a quantidade diária de testes para saber se a pessoa está comtaminada com o novo coronavírus?

    1. Orides, há a previsão de aumento pra 30 mil testes/dia pro final de Maio (incluindo aí testes rápidos, que tem um nível de precisão bem menor). Hoje provavelmente estamos fazendo 5 mil/dia, e a partir de semana que vem deve chegar a 10 mil/dia. Então vai aumentar, mas infelizmente é um aumento bastante insuficiente diante da explosão da quantidade de casos que já está ocorrendo desde a semana passada. E, de fato, a falta de insumos é um complicador importante. No médio prazo, não afeta tanto a quantidade de testes feitos e concluídos, mas no curto prazo reduz a tempestividade dos resultados (i.e. leva muito mais tempo pra que fiquem prontos do que deveria, o que pode criar uma falsa sensação de que temos muito menos casos do que os efetivamente existentes).

  2. …”a irresponsabilidade e a ignorância constituirá o adversário mais difícil que o Brasil já enfrentou.”

    A dificuldade para independer dos EUA, “sararmos” do complexo de vira-lata, é adversário muito mais difícil. E razões não faltam: temos sido sabotados, vilipendiados e atacados faz uns 100 anos. Ataques fortes no golpe de ’64 mas que vêm sendo intensificados de 10 anos para cá. Dão-se através de “lawfare”, por exemplo, mas muito mais intensamente através de propaganda comercial e ideológica, às quais temos sido ineptos em reagir.

    Bem… também não parece errado classificar como irresponsabilidade e ignorância nossas fragilidades quanto à defesa de nossa soberania e prosperidade nacionais. Interessante que demonstremos afeto e respeito não por nós mesmos, nosso povo, mas a país estrangeiro, os EUA.

    “Sararemos” disso um dia? Depende só de nós.

  3. “Interessante que demonstremos afeto e respeito não por nós mesmos, nosso povo, mas a país estrangeiro, os EUA.”

    Bolsonaro presta continência à bandeira dos EUA. Por difícil que seja definir exatamente o que é “classe média” (já vi lixeiro e presidente de multinacional dizendo-se, ambos, classe media), há uma parcela considerável da nossa classe média – a mais, digamos assim, desavergonhada, escrachada, sem “classe” (finesse) alguma – junta-se a ele e também presta, “sem medo de ser feliz”, a mesma continência. Mas há uma parcela enorme da classe média que, seja pela ideia de que “eu não pago pau a ninguém”, acrescentando como se fosse o limite, “nem mesmo aos EUA”, ou ainda pelo “o que dirão os vizinhos”… seja por qualquer razão, realmente não presta continência à bandeira dos EUA mas faz qualquer coisa, de tudo, para conseguir fazer um curso nos EUA, ainda que num obscuro instituto qualquer. E mais do que eventual conhecimento alcançado (os mais sérios com as dúvidas renovadas – algumas antigas resolvidas, algumas novas e cutucar a inteligência) não vê a hora de chegar em casa e acrescentar a “medalha” no curriculum. E ficam super-orgulhosos da “medalha”, como disse, tenha tido algum avanço na ciência ou não. Alguns serão até admirados pelos seus pares ao esnobar “aquele restaurantezinho que, não sendo para ‘turista’, todo ‘americano cool’ conhece”. Se isso não é uma outra forma de prestar continência aos EUA, não sei o que seria…

    Ou seja: reclame-se de Bolsonaro mas o que ele faz e representa talvez seja o que muitos fazem (ou fariam se não fossem hipócritas). E é, afinal, pelo que ele faz e é – entreguista – que é tão difícil tirá-lo de lá.

    Mantém-se questão: “sararemos” disso um dia?

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