A digitalização poderá mudar as cadeias globais de valor

Do IEDI (Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial)

Sumário

A Carta IEDI de hoje trata das implicações da digitalização, associada à indústria 4.0, das discussões realizadas no artigo “The ‘lightness’ of Industry 4.0 lead firms: implications for global value chains”, de autoria dos professores da Duke University (EUA), Lukas Brun e Gerry Gereffi, e de James Zhan, Diretor da Divisão de Empresas e Investimentos da Unctad.

Nesse artigo, que integra o livro Transforming Industrial Policy for the Digital Age: Production, Territory and Structural Change, os autores mostram que, ao viabilizar o avanço das empresas multinacionais (EMNs) de tecnologia digital em setores da indústria de transformação e de serviços, a digitalização está modificando o funcionamento das cadeias globais de valor (CGV).

As EMNs digitais operam com menos ativos físicos localizados no exterior do que as EMNs tradicionais, indicativo de uma estratégia competitiva que valoriza formas mais “leves” de ativos de produção internacional.

Para os autores, a tendência à digitalização é a mais recente das quatros principais forças que vêm modificando a dinâmica das CGVs desde a crise financeira global de 2008-09. As demais são racionalização (redução do número de fornecedores), regionalização (com crescimento dos fluxos comerciais sul-sul) e resiliência (via diversificação geográfica e aumento de estoques).

É possível que alguns destes fatores, sobretudo digitalização e resiliência, venham a ganhar força adicional após a crise do covid-19, que interrompeu o fluxo de mercadorias de muitas cadeias globais.

A tendência à digitalização é resultado dos avanços da indústria 4.0, que, na definição empregada no estudo, é um conjunto de tecnologias e recursos aprimorados que, quando combinados, devem mudar a maneira como produtos e serviços são criados, produzidos e entregues. Seus principais viabilizadores são big data, análise avançada, interface homem-máquina e transferência digital para físico, como robótica avançada e impressão em 3D.

O avanço da digitalização está conduzindo a três grandes mudanças nas CGVs, de acordo com os autores:

  •     A primeira delas é a desintermediação das cadeias de suprimentos, uma vez que a digitalização permite que os produtores de bens e serviços produzam e entreguem seus produtos diretamente aos usuários finais, contornando as redes de suprimento, distribuição e vendas.

  •     A segunda mudança é o aumento o papel dos serviços como modelo de negócios para as CGVs, tendência conhecida como “servitização”. A captura dos dados da produção e do uso dos produtos é uma forma cada vez mais comum de “servitização”.

  •     O terceiro efeito da digitalização nas cadeias é a substituição do trabalho por capital devido à automação. À medida que o investimento em automação e robótica aumenta, a intensidade de capital da produção aumenta, alterando o tipo e a quantidade de atividades realizadas pelo trabalho humano.

Na avaliação de Brun, Gereffi e Zhan, as empresas multinacionais digitais são os atores que estão liderando as forças de disrupção e desintermediação que caracterizam a mudança nas CGVs industriais e de serviços devido à adoção das tecnologias da indústria 4.0.

As EMNs digitais incluem empresas digitais “puras”, que dependem inteiramente da Internet para realizar negócios, bem como players “mistos”, como empresas de comércio eletrônico e conteúdo digital, que têm uma presença proeminente on-line, mas retêm parte de seus negócios em formas não digitais.

Uma característica distintiva das EMNs digitais é o fato de operarem internacionalmente com maior taxa de “leveza” do que EMNs dos setores tradicionais, expressa em vendas externas elevadas em comparação com a proporção de ativos físicos mantidos no exterior.

Os autores destacam que o avanço da digitalização nas CVGs pode resultar em mudanças no comércio exterior e no comportamento do investimento estrangeiro das EMNs, especialmente se os modelos de negócios com ativos estrangeiros “leves” se tornarem prevalecentes. Isto porque os incentivos para investir em ativos relacionados à produção no exterior diminuem à medida que as empresas conseguem produzir competitivamente mais perto dos mercados de demanda final, ainda amplamente localizados no mundo desenvolvido.

Os autores exploram três cenários de como a governança das empresas líderes das CGVs pode mudar em função da digitalização:

  •     Complementariedade. Nesse cenário, as EMNs da economia digital criam um novo valor adicionado significativo na economia global, gerando emprego e investimento entre as indústrias, mas não substituem as empresas líderes existentes.

  •     Descolamento. Nesse cenário, as EMNs da economia digital perturbam os setores existentes, desafiando os modelos de negócios das principais empresas existentes, com deslocamento rápido ou gradual.

  •     Adaptação. Nesse cenário, as tecnologias da indústria 4.0 são adotadas com sucesso pelas empresas líderes existentes para melhorar a eficiência da produção e alcançar níveis mais elevados de competitividade.

De acordo com os autores, o cenário que emergirá como dominante é atualmente incerto, principalmente porque existem evidências para apoiar todos os três acima identificados.

Em resumo, os autores consideram que a digitalização, além de influenciar a decisão de onde e como os bens e serviços são produzidos na economia mundial, está permitindo a entrada de novas de empresas multinacionais de tecnologia digital de alta capacidade nos setores da indústria e de serviços. Essas empresas são únicas por operarem no mercado externo com menos ativos físicos e funcionários, “leveza” que tem implicações para o comércio exterior, investimento estrangeiro e desenvolvimento das regiões.

As empresas com uma presença “mais pesada” no exterior fornecem, segundo os autores, um conjunto maior de benefícios macroeconômicos para os países anfitriões do que as empresas com modelos de negócios “mais leves”. Na medida em que a digitalização aumentar a “leveza” de outros setores da economia, o impacto sobre trabalhadores, regiões e governos pode ser significativo e até disruptivo.

IEDI – Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial
Luis Nassif

1 Comentário

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  1. É por isso que a esperança pós-coronavírus de um novo keynesianismo humanitário, aos estilo dos ’30 anos dourados’ (1945-75) é uma ilusão das esquerdas, às quais se somam, agora, economistas neoliberais convertidos ao keynesianismo (De Bolle, Arida, Fraga etc).

    A 3a revolução industrial das décadas de 1970-80, que intruduziu a microeletrônica no chão da fábrica foi a responsável pela imensa queda de lucro global e perda de empregos industriais que causaram o fim do fordismo/keynesianismo – a crise do petróleo foi apenas o gatillho de uma crise estrutural já armada.

    2008 (crise financeira) e 2020 (coronavirus) são também apenas gatilhos para a saída de era da decadência (1980-2010) para a era do colapso, que já estava sendo gestada com o aprofundamento da automação pela indústria 4.0. Dizer que as multis se tornam leves em todoas as suas cadeias significa que não precisam de quasa nada de mão de obra para produzir, mas também para distribuir e vender: tudo ficou informatizado.

    Os humanos se tornaram, em sua maioria, supérfluos para a produção de valor e isto tende a se aprofundar, pois ganha mais mercado quem automatiza mais e tem menos custos de mão de obra – as máquinas estão ficando muito baratas. Restam apenas subempregos pracários. E mesmo assim em escala insuficiente nos países periféricos como o Brasil. Até Alemanha e EUA estão precarizando selvagemente seus mercados de trabalho: estão se achinesando. E quem comprará a superprodução automatizada de mercadorias? E a Terra aguentará tal superprodução que já a leva a seus limites? E o capital suportará a redução exponencial das margens de lucro que a automação promove? O capitalismo está, finalmente, se encontrando com suas contradições finais. E nós, filhos trabalhadores e consumistas do capital, também.

    E esta tendência não vai parar por “vontade política” simplesmente porque no capitalismo, a política não determina a economia e sim o contrário, como Marx viu acertadamente. A empiria está do lado de Marx. Enquanto as esquerdas choram a desumanidade do mundo o capital o faz caminhar segundo suas leis. A única opção é abolir o capitalismo, antes que ele nos destrua.

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