Alguns motivos de Bolsonaro e a produção urgente de alternativas, por Roberto Bitencourt da Silva

Gostaria de ampliar um pouco o enquadramento da avaliação do cenário, devido aos seus potenciais efeitos práticos.

Alguns motivos de Bolsonaro e a produção urgente de alternativas

por Roberto Bitencourt da Silva

Em meio à crise social e econômica em curso e às medidas públicas que estão sendo adotadas no País, para salvar vidas e conter os danos da pandemia do coronavirus, o presidente Jair Bolsonaro, sistematicamente, manifesta-se com gestos e ideias flagrantemente antagônicas às recomendações médicas e sanitárias internacionais, preconizadas pela Organização Mundial da Saúde. No pronunciamento feito na noite de 24/03, uma vez mais, o sórdido presidente chocou amplas faixas da opinião pública.

Muitos setores da população e dos formadores de opinião atribuem essa posição de Bolsonaro a uma extrema irracionalidade ou mesmo loucura. Outros tantos alegam uma dicotomia entre economia e saúde, considerando o presidente estar priorizando a primeira, em detrimento da saúde pública. Todas essas opções do cardápio podem estar corretas. Mas, gostaria de ampliar um pouco o enquadramento da avaliação do cenário, devido aos seus potenciais efeitos práticos. Nesse sentido, vale fazer algumas observações:

  1. Economia não é somente emprego assalariado, rendas e lucros empresariais. Essa é uma visão abstrata oferecida pelo capitalismo, que é somente um sistema civilizatório histórico. Em todos os tempos e tipos de civilização, economia é produção material da existência das coletividades.
  2. Desse modo, atender às urgentes necessidades públicas para conter a pandemia e seus efeitos, tratar e recuperar os pacientes, demanda recursos volumosos. Economia não se opõe à saúde pública. É a base que permite oferecer os meios de proteção social. Não deve ser considerada um fim em si mesma, mas uma ponte para manter a vida coletiva.
  3. O Estado, segundo fórmula dada pelo cientista político Nicos Poulantzas, consiste em uma condensação das contradições e das forças sociais.
  4. No Brasil de hoje, cerca de 45% do patrimônio empresarial, dos meios de produção e trabalho instalados são ativos pertencentes ao grande capital internacional. A economia brasileira é absolutamente desnacionalizada. A fração hegemônica da classe dominante é o capital internacional. Principal interlocutor do Estado.
  5. Aos trabalhadores não é atribuída qualquer legitimidade para opinar, propor medidas no âmbito do Estado. Nada. Como se não existíssemos.
  6. O sentido da formação histórica e social brasileira tem sido norteado por duas práticas estruturais: transferir excedentes, riquezas e frutos do trabalho para os países centrais do capitalismo e superexplorar os trabalhadores. Desde a colônia.
  7. Noves fora gestos, ruminações retóricas e ideias grotescas, os limites da ação de Bolsonaro – que beija bandeira norte-americana, que é um serviçal dos interesses estratégicos dos EUA na América do Sul – são demarcados pela enorme força concentrada do capital internacional, e subalternamente o grande capital doméstico, no Estado brasileiro. Foi eleito e financiado por esse setor.
  8. Bolsonaro representa exclusivamente o grande capital. Veja-se as notas dos últimos dias emitidas pela Fiesp (entidade representativa desse grande capital, notadamente gringo). A sintonia é claríssima. Relação carnal e mui amável.
  9. O capitalismo é um sistema, uma economia-mundo, no dizer do sociólogo Immanuel Wallerstein e do economista Samir Amin, que polariza, hierarquiza e estabelece relações desiguais entre os povos. Desenvolvimento desigual e complementar em escala global.
  10. De modo que as medidas socializantes e humanitárias que estão sendo adotadas na Europa e nos EUA – rendimentos dos trabalhadores cobertos pelo Estado, estatização de setores econômicos etc. – contam com recursos produzidos em âmbito doméstico. Mas, também são resultado de lucros remetidos e alcançados fora do território, por meio dos conglomerados empresariais multinacionais.
  11. Esses recursos externos, conseguidos, por exemplo, no Brasil, podem ser interrompidos agora – e em boa medida, estão –, mas ajudam, e muito, a custear ações estatais no polo central do sistema. Exigirão fluxos crescentes após a quarentena.
  12. Prevalece uma competição solidária por excedentes entre o grande capital estrangeiro e nacional. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Competição que afeta decisivamente os trabalhadores, pequenos e médios negócios. De um lado, incremento da hiperexploração do trabalho. De outro, sobrepreços de monopólios/oligopólios, incidindo sobre pequenos e médios negócios, reduzindo poder de compra de amplas frações dos consumidores. Fenômeno corrente. A piorar bastante devido à pandemia.
  13. Por isso (para já!), uma renda universal é extremamente necessária no País e deve acolher também setores das profissões liberais, micros, pequenos e médios negócios, além, evidentemente, dos trabalhadores assalariados empregados, subempregados e desempregados.
  14. O destempero de Bolsonaro, além de o “tico e teco” não funcionar fora da caixinha monótona do ultraliberalismo de Guedes – “mercado autorregulável, livre negociação, fim da burocracia e do Estado” blablabla… –, deve-se ao fato de que sabe que haverá quebradeira geral entre micros a médios negócios, além de miséria exponencial. Se nada for feito. E o presidente não fará, além de beneficiar bancos e demais setores do grande capital e megaricos. Seus compromissos e a identidade política subjetiva centrada em um radical e religioso, dogmático, liberalismo, não deixam.
  15. Ser o capataz do bombeamento de riquezas e recursos do País para fora, ontem, hoje e amanhã, é o seu papel. O seu discurso explícito, ora implícito, é de que “não há alternativa”, conforme velho adágio neoliberal.
  16. Por outro lado, a inexistência de um contraponto claro, da oferta de alternativas sociais e econômicas altissonantes, visíveis e audíveis ao Povo Brasileiro é uma das grandes lacunas do momento!
  17. Isolada e timidamente, partidos e lideranças, mormente à esquerda do espectro institucional, têm apresentado nos últimos dias propostas para financiar o caixa do Poder Público, de sorte a dar cobertura assistencial, trabalhista à ampla maioria da população, bem como viabilizar suporte material à saúde pública.
  18. O PT apresentou proposta. Também Ciro ontem anunciou. O PCB manifestou-se com algumas ideias. Um parlamentar do PSDB idem (a).
  19. Faz-se necessário que o maior leque possível de líderes e partidos políticos formulem e apresentem, martelem repetidamente que há alternativa! Sobretudo, que demonstre que o grande capital nacional e estrangeiro, os ricos, pagam pouco ou nada em impostos e que precisam financiar as medidas sociais, trabalhistas, sanitárias e assistenciais.
  20. Um keynesianismo parcial de governador aqui e acolá, como a suspensão do pagamento de dívidas públicas por um período curto – o governo federal nem isso… – dará um oxigênio ao caixa dos estados. Mas, considerando o perfil político de governadores como os de São Paulo e Rio de Janeiro, será custeado à frente, senão hoje, com draconianas medidas recessivas e reacionárias, que protegem somente grandes empresas, domésticas e estrangeiras, bancos, rentistas e parasitas em geral.
  21. Uma visão propositiva precisa ser delineada e divulgada aos quatro cantos! O Povo Brasileiro precisa ter acesso a propostas alternativas, de cunho socializante e humanitário – uma mescla de keynesianismo com socialismo, que envolva tocar na distribuição, mas também na produção, com eventuais estatizações. Uma frente política com capacidade de reverberar o quanto antes, de modo a veicular esperanças e a compreensão de saídas da crise humanitária e econômica em curso e a dilatar.
  22. As forças políticas e partidárias de oposição – além das organizações populares, estudantis e sindicais – precisam se articular em torno de um programa de ação. Abandonar o omisso e infecundo papel de meros cronistas da situação, que número expressivo de faixas organizadas e politicamente representativas tem desempenhado.
  23. Mesmo que, por motivos óbvios, não se tenha expectativa de que o governo federal venha a acolher tais sugestões. O que importa, ao menos, é que o perverso fatalismo neomalthusiano de Bolsonaro e seus aliados e aderentes, com nítidas tintas nazistas, não prospere e ganhe de vez o coração da nossa gente.
  24. Uma torpe, indescritível ideia como a defendida ontem pelo nefasto presidente (naturalizar a morte de pessoas idosas e que não são “sãs”) não pode prosperar. Aliás, denunciá-lo no Tribunal de Haia é um imperativo, por crimes contra a humanidade. Bolsonaro já deu motivo demais. Ações e omissões, gestos e medidas inconsequentes, socialmente perversas e lesivas à saúde pública e à segurança coletiva (alimentar, trabalhista, entre outras), que afetam e afetarão não somente o Povo Brasileiro, como ameaçam a saúde e a segurança de demais povos. Cumpre elencar e organizar as provas. Não são poucas.
  25. No Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em seu Artigo 6º, que tipifica crime de Genocídio, afirma-se que: “Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por ‘genocídio’, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: … Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial” (b).
  26. A mudança só pode emergir, de fato, se houver esperança, um projeto alternativo de vida. A compreensão de que as coisas devem ser feitas de outra maneira. Não podendo agir no momento, uma proposta alternativa pode aquecer o peito para ações futuras.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

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Redação

1 Comentário

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  1. Ótimo o seu artigo, Roberto. Nele aparecem os sinais mais reais, aqueles que colocam a necessidade do Poder Popular; assim mesmo, com maiúscula.

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