COVID-19, espaçamento social e o mundo por vir: a Reforma Agrária como parte da solução, por Thiago Lima

A magnitude global da COVID-19 trouxe à tona, em toda sua potência, a oportunidade de refletirmos sobre nossos padrões agroalimentares.

Futebol, Cândido Portinari, 1935. Pintura a óleo/tela 97x130cm

do Boletim Ciências Sociais

COVID-19, espaçamento social e o mundo por vir: a Reforma Agrária como parte da solução

por Thiago Lima

O The New York Times1 repercutiu o alerta de que a principal tragédia do coronavírus no Brasil poderia ocorrer nas favelas, afinal, nestes lugares é praticamente impossível realizar o isolamento social e as medidas de higiene recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. Para lidar com esta crise específica, que está mergulhada numa condição estrutural, argumentaremos que a Reforma Agrária deve ser parte da solução, pois ela pode criar um salutar espaçamento social.

Atualmente, 13,6 milhões2 de pessoas vivem em favelas no Brasil. As imagens são conhecidas: casas pequenas e amontoadas, construídas de forma precária, vielas e falta de serviços públicos básicos como água limpa, esgoto e segurança, além da dificuldade de manter a segurança alimentar e nutricional. Nessas condições3, a possibilidade de isolamento seletivo de populações de risco só pode ser ventilada por quem é mal intencionado ou por quem ignora a estrutura da família brasileira. O abandono parental é muito comum nesses locais e, também por isso, em 49% das famílias a mulher é a principal provedora4, cabendo às avós a tarefa de organizar a casa e cuidar das crianças pequenas. Note-se que as creches e escolas não oferecem a cobertura necessária para as mães poderem trabalhar, tornando fundamental o apoio de outros familiares. Estes, muitas vezes, moram na mesma residência. Quanto às crianças, se já é difícil mantê-las do lado de dentro na normalidade, é praticamente impossível conservá-las confinadas em suas pequeninas casas o dia todo, compartilhando poucos cômodos com muita gente e com pouco conforto.

Essa situação não é específica do Brasil. Segundo o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), “Metade da população mundial vive em áreas urbanas, sendo que um terço destas está em favelas e assentamentos informais. O número de pessoas morando em favelas aumentou de 760 milhões, em 2000, para 863 milhões, em 2012. Estimativas apontam que, até o ano de 2050, mais de 70% da população mundial estará vivendo em cidades.”5 A alta concentração de pessoas em favelas das cidades grandes é um fenômeno global, como explicou Mike Davis (2006) em Planeta Favela. É uma situação imposta ao longo dos últimos séculos e que encontra no passado colonial e imperialista uma de suas principais causas. Por quê? Tanto porque o território foi moldado para cumprir uma função econômica que era baseada no latifúndio, gerando por isso expulsão de pessoas do campo para as cidades, quanto porque nessas sociedades a noção de cidadania não se desenvolveu. Isto é, há pessoas que não são pessoas no sentido pleno; há ‘semipessoas’ cuja tragédia é aceita como sendo parte natural da paisagem.

Esses dois pontos são fundamentais: favelização e cidadania. A intensa urbanização acompanhada por favelização parece ser uma característica de muitos países em desenvolvimento, e dinamizada pelo capitalismo. Dinâmica persistente, como discute criticamente Virginia Fontes (2010), em que a atividade capitalista em direção aos interiores dos países propulsa a contínua liberação/expulsão de mão-de-obra para as cidades. Em outras palavras, a vida vai se tornando impossível nas zonas rurais e afastadas e, por isso, migra-se para as cidades, para as aglomerações.

Esses processos de expulsão e de aglomeração de pessoas em condições indignas de vida ocorre, em grande medida, porque em muitos desses países não se desenvolveu ou não se enraizou a noção de cidadania. Quer dizer, a ideia de que toda pessoa possui direitos a serem garantidos por estruturas coletivas, direitos decorrentes do fato de serem reconhecidas como partes componentes do povo, da nação. No Brasil, Jessé Souza (2017) é um dos que vinculam a falta de cidadania à escravidão – traço dominante de nossa sociedade. Mas, como falar em desenvolvimento da cidadania se o que temos observado é um processo de retirada de direitos, de desfazimento da própria cidadania? Convivemos com o trabalho análogo à escravidão e respiramos a paulatina diminuição de direitos trabalhistas e da aposentadoria. Os sistemas públicos de Ensino e de Saúde possuem muitas falhas de gestão, é certo, mas nada se compara à precária direção política e ao financiamento muito aquém do necessário. Permite-se enorme concentração de renda, a ponto de 6 pessoas possuírem a mesma renda que 100 milhões de brasileiros6, enquanto metade da população brasileira não tem acesso à rede de esgoto7. Enfim, é sobre essas condições que devemos pensar o esforço sobre-humano que as famílias que vivem em favelas precisam fazer para se proteger da COVID-19.

Agora, convenhamos: dizer que ‘o mundo é pequeno’ é uma frase que não cabe no Brasil. O Brasil é um país com 8,5 milhões de KM quadrados e no qual a distribuição de terra ocorre de forma muito desigual8. Por um lado, 2% dos estabelecimentos rurais ocupam 55% da área rural. Por outro, mais de 50% ocupam apenas 2% da área rural. Desconcentrar é preciso! Não ignoramos as dificuldades políticas em torno do assunto. Entretanto, algum caminho precisa ser encontrado. Por exemplo, estudo realizado pela OXFAM conclui que “com as terras que estão em nome dos maiores devedores da União seria possível atender todas as 120 mil famílias que estavam acampadas em 2015, demandando reforma agrária no Brasil9”.

Contudo, as dificuldades de se praticar o isolamento social no contexto da pandemia da COVID-19 demonstra que esse esforço de desconcentração deveria ser feito não apenas para aquelas famílias que já se reconhecem como sem-terra. Ele deveria ser proposto também para as famílias que moram nas favelas e para os sem-teto. A vida na zona rural pode oferecer uma tranquilidade inexistente nos territórios de grandes aglomerações e o trabalho com a produção agrícola pode oferecer um novo começo para quem não consegue os meios para viver dignamente nas cidades.

Sabemos que a pandemia ferirá de morte as economias nacionais mais frágeis e que a retomada do investimento necessitará do engajamento do Estado. Nesse sentido, um programa nacional de reforma agrária com redistribuição de terra é excelente oportunidade de organizar e dinamizar a retomada da atividade econômica, calcada num projeto de investimento de longo-prazo em infraestrutura, que criaria as condições para o surgimento de pequenas cidades com habitações dignas em todos os sentidos.

Ademais, a magnitude global da COVID-19 trouxe à tona, em toda sua potência, a oportunidade de refletirmos sobre nossos padrões agroalimentares. Rob Wallace (2016) já alertava há algum tempo: Grandes fazendas criam grandes gripes. Quer dizer, o crescente modo de produção e consumo agroalimentar – baseado nos complexos grãos-carne, com super aglomeração de animais e dependente do comércio internacional – é uma das principais causas das epidemias respiratórias que vêm surgindo desde os anos 1990. Assim, a desconcentração da população, que ocuparia os mares de monocultura de soja, por exemplo, poderia levar a novos padrões agroalimentares, também mais desconcentrados, que fossem mais ecológicos e que privilegiassem circuitos curtos de produção e consumo: desglobalizar também é preciso (Patnaik, 2018)!

Como dizia Maquiavel, não há quem defenda melhor um território do que um colono. Este colono do mundo pós-COVID-19 poderia ser aquele intrinsecamente interessado no desenvolvimento – em sentido de ampla justiça social – de seu território. Afinal, são os mais pobres que precisam de escolas e hospitais públicos. São eles também que precisam de um meio ambiente limpo e equilibrado, onde realizariam sua produção e de onde abasteceriam boa parte dos mercados locais. Para isso, precisam de espaço. Essa não é uma questão só do Brasil. Ela pertence ao mundo periférico.

Thiago Lima é professor do Departamento de Relações Internacionais e Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB.

 

Referências bibliográficas:

DAVIS, Mike. Planeta Favela: São Paulo: Boitempo, 2006.

FONTES, Virginia. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010.

PATNAIK, Prahbat. (2018). Globalization and the Peasantry in the South. Agrarian South: Journal of Political Economy, 7(2), 234–248.

SOUZA, Jessé de. A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato. Leya, Rio de Janeiro: 2017.

WALLACE, Rob. Big Farms Make Big Flu: Dispatches on Infectious Disease, Agribusiness, and the Nature of Science. New York: Monthly Review Press, 2016.

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1 https://www.nytimes.com/pt/2020/03/31/espanol/opinion/a-maior-tragedia-do-coronavirus-pode-ser-nas-favelas-brasileiras.html

2 https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-01/moradores-de-favelas-movimentam-r-1198-bilhoes-por-ano

3 https://congressoemfoco.uol.com.br/direitos-humanos/tres-pessoas-por-quarto-e-sem-home-office-as-dificuldades-do-isolamento-nas-favelas/

4 https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-01/moradores-de-favelas-movimentam-r-1198-bilhoes-por-ano

5 https://nacoesunidas.org/onu-mais-de-70-da-populacao-mundial-vivera-em-cidades-ate-2050/

6 https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/22/politica/1506096531_079176.html

7 https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/12/10/metade-da-populacao-brasileira-nao-tem-acesso-a-rede-de-esgoto-diz-ministerio.ghtml

8 https://oxfam.org.br/publicacao/terrenos-da-desigualdade-terra-agricultura-e-desigualdade-no-brasil-rural/?gclid=CjwKCAjw4pT1BRBUEiwAm5QuRymGqbkzmxjcW-oV4KiGUoMiX78yRRnu6SEDpo_NcMMSxlJpVZRTjRoCCw4QAvD_BwE

9 https://oxfam.org.br/publicacao/terrenos-da-desigualdade-terra-agricultura-e-desigualdade-no-brasil-rural/?gclid=CjwKCAjw4pT1BRBUEiwAm5QuRymGqbkzmxjcW-oV4KiGUoMiX78yRRnu6SEDpo_NcMMSxlJpVZRTjRoCCw4QAvD_BwE

 

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