Do “pior do que está não fica” ao governo da estupidez, por Gabriel Antunes

Jornalismo fraco, irresponsabilidade pública e ignorância prepotente são fenômenos correlacionados.

Salvador Dali

Do “pior do que está não fica” ao governo da estupidez

por Gabriel Silveira de Andrade Antunes

Quando o Tiririca foi eleito pela primeira vez, no ano de 2011, eu aceitava sem reflexão que seria uma manifestação legítima e inofensiva, ainda que ineficaz, de revolta contra o mal funcionamento e vícios de nosso sistema político. Na época, eu estava com a cabeça bem abastecida de pequenezas dos jogos de poder de Brasília difundidas pelo jornalismo raso das redes de televisão. O bordão “pior do que está não fica” parecia funcionar como denúncia do que incomodava a milhões de brasileiros. Estávamos cansados de carências nos serviços públicos, de dificuldades em garantir o sustento e de insegurança quanto ao futuro enquanto os políticos pareciam se ocupar somente dos próprios interesses. Na pior das hipóteses, eleger Tiririca me parecia um ato sem maiores consequências do que rir dos problemas políticos nacionais

É difícil até imaginar que os brasileiros não estivessem certos em constatar, àquela época, que os serviços públicos tinham graves deficiências. E faz sentido que desejem a superação desses problemas. Porém, só essa constatação e esse desejo não produzem debate. E a ausência de debate acomoda as opiniões no nível mais baixo. Afinal, para avaliar as deficiências dos serviços públicos e daí produzir pensamento capaz de transformá-los em algo melhor é preciso um esforço de discernimento, isto é, um trabalho sério de contextualização que considere esses serviços no tempo e no espaço, assim como as particularidades de suas condições de acesso e as nuances de seu funcionamento. O tio do pavê, pretensamente informado pelo jornalismo raso ou por sua evolução nas redes sociais, diz que “a educação no Brasil não melhorou, como mostram os dados do Pisa e como todos de minha geração sabem”. Infelizmente, ele não tem nem como saber em que a educação do Brasil precisaria melhorar. Ele ignora, por exemplo, que parte da rede de ensino básico pública no Brasil – os institutos federais à frente – tem bons resultados no Pisa. O tio do pavê também não sabe (ou finge não saber) que a boa escola pública em que estudou era para poucos comparada à atual. Ele tenta pensar por si mesmo sem acessar as referências necessárias para não repetir irrefletidamente suas impressões e os seus desejos. Assim, exatamente por sua ignorância ele vai apostar em fórmulas sem eficácia comprovada, como a volta no tempo ou a disciplina militar. Exatamente porque sua ignorância é partilhada, ele se sente seguro com sua opinião rasa como se fosse conhecimento suficiente dos fatos. A ignorância partilhada, sustenta socialmente o diagnóstico negativo sem aprofundamento e o receituário de soluções sem fundamento. 

O mais triste disso tudo não é, ainda, que grande parte da sociedade ignore que quem debocha da situação ou arrota indignação não demonstra com isso nenhuma competência. O conjunto de jornalistas no Brasil que construíram carreira sobre esse tipo de atitude mereceria, talvez, menção aqui. De uma forma dissimulada, alguns deles cultivam um menosprezo que evoca um fundo racista. E o mais triste é que esse deboche ou essa indignação cega se desenvolva num prepotente julgamento, pretensamente sério, de que não é possível piorar. Acho que eu não fui o único a escutar o bordão do Tiririca, na última eleição, como última linha defensiva da candidatura do capitão aposentado. O “pior do que está não fica” coloca a perder o que se pôde construir de política pública no país, mesmo quando precário. E é preciso frisar: nem tudo é precário! Assim, votar em alguém porque supostamente pior do que está não fica é estúpido e perigoso para todos, ainda que não seja proibido ao indivíduo. O que está ruim fica pior: trocando carência por inexistência dos serviços públicos, trocando dificuldade por impossibilidade de garantir o sustento e trocando insegurança por inexistência de futuro. 

O tipo de oposição entre fazer todo o necessário pela saúde pública ou garantir os empregos dos trabalhadores, que vem repetindo o governo Bolsonaro durante a atual crise sanitária, é uma chantagem que supõe uma sociedade feita de estúpida. Pois as únicas possibilidades de saldo da crise atual não são 1) menos mortes e mais desemprego ou 2) mais mortes e menos desemprego. Nesses termos, há claramente mais duas possibilidades. Uma delas é 3) reduzir as mortes e o desemprego, promovendo os direitos constitucionais à vida e ao emprego, que é a única possibilidade que atende à responsabilidade do poder público. A última possibilidade é 4) mais mortes e mais desemprego, que é o resultado mais atroz possível da incompetência ou sadismo do Estado. Como a organização, o planejamento e a eficiência são fundamentais para reduzir mortes e o dano econômico da crise, não há nenhuma razão para esperar o melhor do governo da estupidez, mas, por sua imperícia, há evidentemente muitas razões para esperar o pior dele.

Efetivamente, com as notícias das últimas semanas, ficamos com a forte impressão de que as ações e omissões do poder executivo já aumentaram mortes e desemprego. É o que se espera quando, além de toda bizarrice, não temos notícias do funcionamento e das políticas propostas por comissões em cada um dos ministérios para a crise sanitária desde os primeiros alertas da OMS. O atraso do governo na elaboração de políticas para diminuir o impacto da crise custa vidas, dinheiro do contribuinte e empregos. A balbúrdia continuamente produzida pelo presidente parece estar sendo bem sucedida em tirar a atenção disso. De qualquer forma, não poderia ser pedir demais que este ou qualquer governante e seus auxiliares, com toda a assessoria que dispõem, fossem capazes de atentar aos alertas de uma organização internacional da qual o Estado é membro. Tampouco deveria ser pedir demais que fossem capazes de ter relações adultas e produtivas com cientistas e especialistas em epidemiologia e políticas públicas. Por último, não poderia ser pedir demais que o foco do presidente fosse a melhor execução das ações planejadas pelas equipes sob suas ordens. Politicamente, a crise abria a possibilidade de Bolsonaro assumir plenamente sua responsabilidade institucional contra o vírus que é inimigo de todos e não sofrer no período da oposição de virtualmente ninguém. Um assentimento racional, no entanto, nunca foi buscado por ele. Em última instância, Bolsonaro repete um único gesto, o apelo à força das armas, a tentativa de afirmar-se por coação. Fica claro que a racionalidade em funcionamento quando esses “erros” são sistemáticos só pode ser de outro tipo: uma criminosa na qual o aumento das mortes é simplesmente um problema menor ou até um macabro propósito. Se o inimigo não é o vírus, então será o próprio povo?  

Pode parecer conveniente olhar para Bolsonaro e nele localizar o governo da ignorância prepotente, da estupidez. Afinal, sem nenhuma surpresa ele já vem sendo colocado entre os piores líderes do mundo a lidar com o coronavírus. No entanto, aqui também se exige um esforço de contextualização. Primeiramente, a ignorância e a mistificação já deram sustentação a outros líderes políticos, como no caso tenebroso, porém bastante instrutivo, da poderosa Alemanha nazista. Depois, o poder de Bolsonaro passa pelo fato de que, sem disfarces, foi a opção majoritária entre os que votaram no segundo turno nas últimas eleições e ainda tem apoio de fração relevante da sociedade brasileira. Desse modo, ele cristaliza e, até certo ponto, conduz um fenômeno social: a vergonhosa e (esperamos) instável soberania político-social da estupidez, que acomete e engaja muito mais gente do que o outrora simpático meu tio do pavê. Sendo assim, seria novamente um otimismo ingênuo achar que essa soberania é o mesmo que o mandato de Bolsonaro. Ela não começa nem termina seus efeitos neste mandato, há algumas décadas ela se insinua e se reproduz no espaço público continuamente com a mídia rasa de pensamento único e com o imaginário neoliberal de um mundo todo feito só de indivíduos… Um sociólogo não teria dúvidas em detectar que até aquele pensamento e essa imaginação são fenômenos socialmente localizados, interessados e correlacionados. De fato, como Jessé Souza não cansa de demonstrar, jornalismo fraco, irresponsabilidade pública e ignorância prepotente são fenômenos que se retroalimentam realizando o projeto de uma elite que é, fundamentalmente, atraso.

Gabriel Silveira de Andrade Antunes é doutorando em Filosofia Política pela Universidade de Paris.

Redação

1 Comentário

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  1. A ignorância como arma de manutenção do status quo, cuidadosamente explorada pela grande mídia, nos seus jogos de indução de opinião, e despudoradamente usada pelos políticos profissionais, agora está amplificada e disseminada pelo ogro que ocupa a chefia do poder executivo. Eis uma grande ironia: o ogro usa, abusa e se farta da ignorância generalizada, roubando esta arma de seus antigos detentores. É a ignorância despudorada, sem freios e orgulhosa de si mesma. Ser tosco vira sinônimo de ser autêntico no meio da massa já saturada pela hipocrisia perfumada dos pseudo representantes do povo. A fronteira entre real e surreal desaparece, é tudo uma coisa só. Dentro de uma miscelânea insana de fatos e fakes, o despudor avança na completa falta de compromisso de ser coerente, de esperar ao menos 24 horas para desdizer tudo o que foi dito antes. Porque? Porque o orgulho de ser ignorante suplanta qualquer necessidade de ser racional, porque a “cola” que une a corja é o sentimento de ódio ao inimigo, ao diferente, ao comunista/venezuelano/petista ou qualquer adjetivo para o bode expiatório da vez. E o ódio é extremamente sedutor, ele se basta e preenche um vazio nunca compreendido pelos intelectuais de esquerda. Então as implicações do que for dito pelo Ogro mor e cia. pouco importa, é menor e irrelevante frente a satisfação causada pela cultura do ódio e a ilusão de superioridade alicerçada na ignorância generalizada. O Brasil está num processo de overdose de radicalismo.

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