Fernando Horta
Somos pela educação. Somos pela democracia e mais importante Somos e sempre seremos Lula.
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O consenso dos coveiros, por Fernando Horta

O fortalecimento de Bolsonaro na demissão de Mandetta tem um tom ainda mais preocupante e até cadavérico para o Brasil.

O consenso dos coveiros

por Fernando Horta

O que ocorreu na última semana no Brasil passou despercebido da maioria dos analistas. A disputa Mandetta-Bolsonaro que terminou na nomeação de Teich não foi uma ruptura na base bolsonarista a partir de uma cisão interna. Diferentemente do que todo mundo torcia, a saída de Mandetta não enfraqueceu Bolsonaro. Ao contrário, o fortaleceu. O fortalecimento do fascista-presidente não se deu, entretanto, por alguma estupenda capacidade política sua ou por alguma jogada de mestre que não fora prevista pelas outras forças no tabuleiro político. O fortalecimento de Bolsonaro na demissão de Mandetta tem um tom ainda mais preocupante e até cadavérico para o Brasil.

Não se duvide que Mandetta era um canalha. Votou pelo impeachment de Dilma Rousseff, fez propaganda enganosa dos “crimes” imputados a ela, votou pela lei do teto, defendeu o fim da saúde pública, a precarização dos hospitais e toda sorte de maldades que o neoliberalismo têm lançado ao Brasil desde o fatídico impeachment. Seu histórico de votos é bastante demonstrativo do tipo de personalidade que o ex-ministro tem. Não bastasse isto, a própria aceitação para participar do governo Bolsonaro não é fruto de um sacrifício para “proteger” a saúde do Brasil frente aos desmandos e desvarios do chefe do executivo. Mandetta concorda com quase tudo que Bolsonaro faz e fez.

Porém, há alguns canalhas que têm limites, enquanto o chefe do executivo brasileiro não tem nenhum.

A saída de Mandetta marca um acerto nos ponteiros entre o grande capital, a classe média, os políticos de centro direita e Bolsonaro. Um acordo político silencioso que deveria render prisões e processos multimilionários a todos os envolvidos.

Por mais abjeto que Mandetta seja, ele é médico. As instituições que formam o indivíduo quase sempre deixam marcas que não podem simplesmente ser apagadas na personalidade de alguém. A vida de um médico, ainda que possa ser orientada ao lucro e ao interesse pessoal, é indiscutivelmente marcada pela presença constante da morte. E todo médico aprende a respeitá-la, temê-la e conviver com ela. Para Mandetta, como para 99% dos médicos, a vida é sagrada e há que se lutar por ela até o fim. Mesmo os convencidos a colocar o dinheiro em pé de igualdade com a vida, não deixam de respeitá-la.

No mesmo momento, Dória lutava pela vida da classe média paulistana. E só por ela. Em nenhum momento Dória lutou pelos trabalhadores, senão na percepção de que se precisa deles para sustentar a elite paulistana da qual ele faz parte. TODA a planificação de Dória para enfrentar o COVID tinha a elite no seu centro, e os trabalhadores que mereceram algum cuidado foram os que eram compreendidos como necessários à sobrevivência dos mais ricos. Ou, ao menos, que poderiam colocar a vida destes em risco com sua “precariedade” e “falta de cuidado”.

No plano de Bolsonaro e Guedes, o Brasil pode perder cem ou cento e cinquenta mil pessoas. Se este for o preço para “segurar a economia”, Bolsonaro está disposto a pagar sem qualquer drama de consciência. Especialmente porque, como Bolsonaro sabe, os estudos mostram que os grupos que mais morrem são os negros, os pobres e os mais idosos. É claro que este cenário de mortes é bastante acalentador para o fascista presidente. Na verdade, não morrendo qualquer dos seus filhos, Bolsonaro não derramará uma lágrima que seja. Mas sendo o negro “ladino” – nas palavras de Mourão – tanto melhor.

Assim, a diferença entre o projeto de Dória (e de Eduardo Leite no RS, Witzel no RJ, Ibaneis no DF e etc.) e o de Bolsonaro era simplesmente decidir qual grupo deveria morrer e qual deveria receber esforços do Estado para ser salvo. Toda a disputa daqueles governadores era simplesmente até que Bolsonaro reconhecesse que a elite velha e urbana PRECISAVA ser salva também. Para isso era preciso algum investimento nas emergências do SUS, alguma aquisição de respiradores, EPI e testes. Algum. Suficientes para atender TAMBÉM os brancos de classe média urbana e já com alguma idade. E só.

A questão ali era apenas que se formasse um consenso entre os coveiros.

Bolsonaro cedeu um pouco. Aceitou – sob muita pressão – que seu ministro da economia fosse obrigado a oferecer alguma ajuda do Estado. Exigiu, porém, que os que recebessem esta ajuda soubessem ler, tivessem acesso a computadores, celulares, algum estudo e passassem por uma triagem. E isto são exatamente as barreiras e exigências do tal “auxílio de 600 reais”. Ele não atinge as camadas mais pobres da população, mas atinge em cheio os pobres que orbitam as elites urbanas e, com isso, aproximou-se da segurança que Dória e aqueles governadores queriam.

Vários mandatários estaduais cederam também. Falam em abertura imediata ou em “até uma semana” dos comércios, com o retorno das atividades urbanas sem muito controle. Exatamente no momento que TODOS os estudos informavam que o Brasil estaria passando pelo pico de contágio: no final de abril e início de maio. No DF, por exemplo, fala-se inclusive em reabrir escolas. A disputa velada e indecorosa que se dá nos bastidores é que escolas devem ser abertas. Ibaneis sugeriu as militares e militarizadas como “experiência”, os militares e policiais militares já reagiram e não aceitam expor seus filhos ao risco. Tal qual o consenso que se formou nacionalmente, é muito provável que em pouco tempo sejam escolhidas escolas de periferia, com a maioria dos alunos negros e pobres.

A verdade é que uma parte da população brasileira serviu de moeda-de troca no acordo tácito que fortaleceu Bolsonaro. Aliás, a morte destas pessoas foi a exigência para que os ponteiros políticos fossem acertados. Os fascistas e os neoliberais voltaram a compactuar sobre quem deverá ser encomendado para pagar as exigências de corpos que o COVID faz. A diferença entre eles era, afinal, pequena. Os pobres, os negros e a população de periferia sempre esteve no prato dos “dispensáveis”. A questão era apenas proteger o entorno da classe média urbana e evitar o caos nas cidades. Uma vez isto resolvido, Bolsonaro se fortaleceu.

Mandetta era o problema. Sua formação e a classe médica que lhe suportava não conseguia fazer a escolha de quem morre e quem vive da forma ignóbil como Bolsonaro e Dória fizeram. Não sei se por uma chispa moral ou por pressão dos médicos a que chefiava, o ex-ministro da saúde mantinha a ideia de salvar o maior número de pessoas. Pessoas, indiferente a sua cor, posição social, econômica ou posição política.

O acerto dos coveiros satisfaz a Bolsonaro que crê que as mortes vão cobrar um preço maior dos “inimigos”. Matando pobres, negros e periféricos, quem se enfraquece – na visão do fascista – é a esquerda. Dória e os governadores conseguiram, também, afastar a chance do caos social nas cidades, e marcaram posição narrativa de oposição à monstruosidade inicial de Bolsonaro. Um ativo político que pode vir a ser útil, e que esconde o fato de que, no final das contas, os governadores não estavam “do outro lado” de Bolsonaro. Tinham apenas pequenas arestas como diferenças.

Os grupos que foram deixados para morrer, à sorte do vírus, compõem o “dispensável” aos olhos dos governos federais, estaduais e municipais. Aqueles que já não tinham o que comer, o que vestir ou no que trabalhar. Os enjeitados do neoliberalismo agora são dados como oferenda ao COVID para aplacar sua ira e formar a tal “imunidade de rebanho”. O acordo era que morressem negros, pobres e velhos. Nesta ordem. Nestas intersecções.

“Voltem a trabalhar, vagabundos” será a ordem em uníssono, depois do consenso dos coveiros.

E o exército já se certificou qual é a capacidade de enterro e sepultamento de cada município. Sem velório ou missa porque pobre não merece e o vírus estará lá.

Fernando Horta

Somos pela educação. Somos pela democracia e mais importante Somos e sempre seremos Lula.

4 Comentários

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  1. Texto fundamental para quem pretende conhecer melhor o Brasil de hoje e o que teremos, passada a pandemia. Uma lição definitiva sobre o caráter de uma classe dirigente canalha e de um País destruído por uma base ignorante, fanática, estúpida mesmo, que contribuiu para a ascensão de um abjeto ignorante e despreparado presidente da República. A fatura vai cair sobre as futuras gerações.

  2. Se fosse pela formação profissional nada teria mudado, pois o substituto de Mandetta também é médico. Mas essa é só uma das bobagens do texto.

  3. “As instituições que formam o indivíduo quase sempre deixam marcas que não podem simplesmente ser apagadas na personalidade de alguém”
    Parece que com o substituto do Mandetta estas marcas foram apagadas e escritas outras por cima.
    O mesmo podemos dizer de vários dos seus sinistros, destacadamente para o vagabundo da justiça.
    Sempre digo que o Bozo consegue piorar aquilo que já está horrível
    Lembram do sinistro da educação do início do governo?

  4. Bom texto, apesar de alguns exageros e avaliações precipitadas. Mas é exato que as decisões se baseiam nisso mesmo: salvar o status quo administrando os “danos colaterais”, ou seja, escolhendo quem deve morrer.
    Sobre o Mandetta, ser médico não o faz um ser humano melhor. As decisões que tomou foram motivadas por cálculo político, não por humanitarismo. O atual ministro-igualmente médico – é bem explícito nas escolhas sobre quem salvar. O discurso de Mandetta é cínico, pois visa alavancar a sua carreira política. Já a fala do Treich, cuja ambição não é política e sim voltar a faturar na iniciativa privada, é mais autêntico (quando se manifesta, porque, espertamente, fala pouco).

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