Ortega y Gasset e os bolsominions dos anos 20

Onde há opinião pública, como poderá faltar um poder público se este não é mais que a violência coletiva suscitada por aquela opinião? Ora bem, que há séculos e com intensidade crescente existe uma opinião pública européia e até uma técnica para influir nela - é incômodo negá-lo.

A livraria Leonardo da Vinci, no Rio de Janeiro, me pede um vídeo lendo trecho de algum livro que me impressionou. Escolho o prefácio de Ortega y Gasset para a edição francesa de seu clássico ˆA rebelião das massas”.

Sobre a banalização das opiniões

“Não deve estranhar, por outra parte, a preponderância dessa opinião confusa e ridícula sobre o direito, porque uma das máximas desditas do tempo é que, ao toparem os povos do Ocidente com os terríveis conflitos públicos do presente, se encontraram aparelhados com instrumental arcaico e ineficiente de noções sobre o que é sociedade, coletividade, indivíduo, usos, lei, justiça, revolução, etc. Boa parte da inquietação atual provém da incongruência entre a perfeição de nossas idéias sobre os fenômenos físicos e o atraso escandaloso das “ciências morais”. O ministro, o professor, o físico ilustre e o novelista (acrescento eu: os economistas) soem ter dessas coisas conceitos dignos de um barbeiro suburbano. Não é perfeitamente natural que seja o barbeiro suburbano quem dê a tonalidade do tempo?

Sobre a nova opinião pública

(…) Por exemplo: a forma de pressão social que é o poder público funciona em toda sociedade, inclusive naquelas primitivas em que não existe ainda um organismo especial encarregado de manejá-lo. Se a esse órgão diferenciado a quem se entrega o exercício do poder público se quer chamar Estado, diga-se que em certas sociedades não há Estado, mas não se diga que nelas não há poder público. Onde há opinião pública, como poderá faltar um poder público se este não é mais que a violência coletiva suscitada por aquela opinião? Ora bem, que há séculos e com intensidade crescente existe uma opinião pública européia e até uma técnica para influir nela – é incômodo negá-lo.

Em um momento em que a União Europeia é colocada em xeque, as análises de Gasset sobre os tormentos anos 20:

(…) Foi o realismo histórico que me ensinou a ver que a unidade da Europa como sociedade não é um “ideal”, mas um fato de velhíssima cotidianidade. Ora bem, uma vez que se viu isso, a probabilidade de um Estado geral europeu impõe-se necessariamente. A ocasião que leve subitamente a término o processo pode ser qualquer, por exemplo, a cólera de um chinês que apareça pelos Urais ou uma sacudida do grande magma islâmico.

Seria recair na limitação antiga não descobrir unidade de poder público apenas onde este tomou máscaras já conhecidas e como solidificadas de Estado; isto é, nas nações particulares da Europa. Nego redondamente que o poder público decisivo atuante em cada uma delas consista exclusivamente em seu poder público interior ou nacional. Convém cair de uma vez na compreensão de que há muitos séculos – e com consciência disso há quatro – vivem todos os povos da Europa submetidos a um poder público que por sua própria pureza dinâmica não tolera outra denominação que a extraída da ciência mecânica: o “equilíbrio europeu” ou balance of Power.

Esse é o autêntico governo da Europa que regula em seu vôo pela história o enxame de povos, solícitos e pugnazes como abelhas, escapados às ruínas do mundo antigo. A unidade da Europa não é uma fantasia, mas de fato a própria realidade, e a fantasia é precisamente a crença de que a França, a Alemanha, a Itália ou a Espanha são realidades substantivas e independentes.

Sobre o fenômeno dos bolsominions

Onde quer que tenha surgido o homem-massa de que este volume se ocupa, um tipo de homem feito de pressa, montado tão somente numas quantas e pobres abstrações e que, por isso mesmo, é idêntico em qualquer parte da Europa. A ele se deve o triste aspecto de asfixiante monotonia que vai tomando a vida em todo o continente. Esse homem-massa é o homem previamente despojado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas “internacionais”. Mais do que um homem, é apenas uma carcaça de homem constituído por meros idola fori; carece de um “dentro”, de uma intimidade sua, inexorável e inalienável, de um eu que não se possa revogar. Daí estar sempre em disponibilidade para fingir ser qualquer coisa. Tem só apetites, crê que só tem direitos e não crê que tem obrigações: é o homem sem nobreza que obriga – sine nobilitate – snob. (5)

 

 

 

Luis Nassif

5 Comentários

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  1. Discordo.
    O homem massa referido por Ortega y Gasset foi criado e existiu num contesto histórico determinado caracterizado pela produção, difusão e dominação das ideologias totalizadoras, fossem elas nacionalistas (nazismo e fascismo) ou internacionalista (comunismo).
    No mundo em que nós vivemos nenhuma totalização é possível. Nossa cultura fastfood e se caracteriza pela simplificação. Mas não vou critica-lo. Usarei apenas uma imagem para resumir uma antítese ao que você disse.
    Besouro Suco
    Besouro Suco
    Besouro Suco
    No Brasil um COVID-19 paciente tentou fugir do hospital mordendo médicos e enfermeiros. Nos EUA os estrategistas acreditam que porta-aviões e submarinos nucleares infectados podem ser armas zumbis estratégicas de projeção global do poder imperial.
    Os fantasmas se divertem.
    John Lennon não imaginou um mundo em paz porque um vírus microscópico infestou e inutilizou as máquinas de guerra. E Marx não pensou que a esquerda pudesse esfarelar em razão da falência das narrativas totalizantes num mundo que só consegue produzir e vender micro narrativas engraçadas ou enfadonhas.
    A revolução foi derrotada pela produção em massa do tédio e do ódio despolitizado. A organização política do amor está totalmente fora de questão. Uma pandemia infectou todos os sistemas ideológicos. E agora os marxistas e os fascistas estão todos condenados à repetir à exaustão para uma platéia totalmente distraída por fabulações:
    Besouro Suco
    Besouro Suco
    Besouro Suco
    Na Grécia a direita nazista chegou ao poder e esta semana celebrou rapidamente um acordo com o Eurogrupo fazendo questão de dizer que não agiria como Varoufakis. O ex-ministro da economia grego caiu porque defendia os interesses de seu país e rejeitava as propostas do Eurogrupo que endividavam mais e mais a Grécia (algo que continua ocorrendo). No Brasil, Jair Bolsonaro e seus minions se dizem nacionalistas. Entretanto, eles colocam os interesses dos EUA e de Trump acima dos lucros dos produtores rurais que vendem seus produtos para a China.
    O nacionalismo da extrema direita é fake. Ele é um produto da cultura fastfood que inviabiliza qualquer tipo de totalização.
    Besouro Suco
    Besouro Suco
    Besouro Suco

  2. Talvez haja complementariedade entre as “tiranias da intimidades”, de Richard Sennet, e a teoria do Gasset; vou atrás disso. Grato pela lembrança da Rebelião das Massas.

  3. “A Rebelião das massas” é a indignação elitista de um conivente do franquismo contra os movimentos populares. O livro foi uma das principais inspirações liberais para interessadas formulações teóricas do conceito de populismo, utilizado indistintamente para condenar qualquer forma de ação política que não procedesse das castas capitalistas. Embora Ortega y Gasset tente apresentar uma elite no meio da “massa”, o caráter rudimentar, ou incompleto do conceito, não permite distinguir socialismo, fascismo ou consumismo.

  4. Estamos hoje, no Brasil, com muito medo. Ao governo Bolsonero, que incute medo desde que notamos o jogo midiático dos poderosos, que não tinham candidato e resolveram amolecer para por no poder qualquer idiota exaltador do mercado financeiro, foi acrescentado o medo do novo coronavírus.
    Agora a situação tornou-se muito mais complexa. Cuidar das questões relacionadas à proteção da vida em razão do vírus e, ao mesmo tempo, lutar contra um déspota completamente imbecil, cujo histórico de ligação com as milícias está perfeitamente comprovado. Que trata-se de um maluco, qualquer pessoa com um pouco de bom senso já conseguiu perceber. O fato é que estamos diante de um vírus e de uma pessoa pró-vírus. E isso tudo tem provocado muito medo. Pois não sabemos, ao certo, o que poderá acontecer. Tomando o título do livro de Ortega y Gasset, a “Rebelião das Massas” somente ocorrerá quando sobrevier o medo num Congresso Internacional do Medo:

    Congresso Internacional do Medo

    Provisoriamente não cantaremos o amor,
    que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
    Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
    não cantaremos o ódio porque esse não existe,
    existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
    o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
    o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
    cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
    cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
    depois morreremos de medo
    e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

    Carlos Drummond de Andrade ANDRADE, C.D. Antologia Poética. 12ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio. 1978. p. 108 e 109.

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