Taxa de letalidade é denúncia sobre o presente e alerta para o futuro, por Arnaldo Cardoso

Dentre as estratégicas adotadas, o maior consenso é o da importância do isolamento social como forma de contenção do avanço da curva de contágio e consequentemente do risco de colapso dos sistemas hospitalares. 

Taxa de letalidade é denúncia sobre o presente e alerta para o futuro

por Arnaldo Cardoso

Na condição de espectadores e atores de uma mesma tragédia global temos acompanhado os números da pandemia do Covid-19 se alastrando pelo mundo e, com algum lapso de tempo, as notícias sobre os esforços de pesquisadores e médicos testando medicamentos e buscando novos métodos de diagnóstico e tratamento como a infusão de plasma de infectados recuperados, em doentes em fase aguda da infecção.

Também já se esboçam análises sobre a evolução da pandemia e de diferentes resultados de estratégias de combate ao vírus em diferentes países, gerando um intercâmbio internacional de informações e experiências entre profissionais da saúde e autoridades de governo, de especial interesse para países onde a curva de contágio ainda se encontra em evolução, como é o caso do Brasil.

Nas referidas análises tem se firmado quatro fatores como de alto poder explicativo, sendo eles: 1) testes, 2) capacidade do sistema de saúde, 3) evolução do contágio e 4) diferenças culturais.

Embora a presença do vírus já seja uma realidade em cerca de 180 países, em cada um deles os fatores se combinam com pesos e resultados diferentes. Dentre as estratégicas adotadas, o maior consenso é o da importância do isolamento social como forma de contenção do avanço da curva de contágio e consequentemente do risco de colapso dos sistemas hospitalares. 

Entretanto, tem sido no tocante às taxas de letalidade do vírus que se concentram as maiores preocupações e de onde se busca extrair lições, especialmente da experiência de países onde a curva de contágio já atingiu estágio elevado.

Mesmo com os números se modificando diariamente e não sendo ainda possível qualquer resposta conclusiva, algumas evidências já ganham poder explicativo e além de servirem para a atualização e revisão de ações na linha de frente de combate ao vírus, se prenunciam como tópicos inescapáveis de uma futura e necessária revisão dos sistemas nacionais de saúde e dos mecanismos de cooperação internacional sobre segurança sanitária num mundo intensamente interligado.

Da dramática experiência da Itália que, depois da China, passou a ocupar a posição de epicentro da pandemia, com o maior número de casos e de mortes, pode-se extrair um conjunto de informações que combinadas ajudam na interpretação do impacto da doença no país.

No tocante aos testes, a Itália não adotou a estratégia de testes massivos, o que tem sido apontado como um de seus fatores de vulnerabilidade. Quanto a capacidade hospitalar, o número de leitos em UTI por mil habitantes (indicador utilizado pela OCDE) na Itália é de 2,6 (menos da metade da taxa da Alemanha). Sobre a evolução do contágio, a Itália sofreu com a falta de experiência/aprendizado precedente pois teve seu primeiro caso diagnosticado duas semanas antes de outros países europeus como a Alemanha. Um elemento que integra o fator “diferença cultural” é a organização familiar; na Itália a média do número de membros da família que habitam a mesma residência e, com pessoas acima de 60 anos (principalmente avós) é muito superior ao de países como França e Alemanha. 

Na última semana a Itália foi superada pela Espanha e pelos EUA em número de casos, mas ainda registra o maior número de mortes.

Tomando como base as informações da OMS de 06/04/2020 temos os seguintes números dos países abaixo selecionados, de total de casos, ativos, mortes, taxa de letalidade, recuperados e taxa de recuperados:

PAÍS Casos Ativos Mortes % Recuperados %
China 81.708 1.299 3.331 4,07 77.078 94,23
Itália 128.948 91.246 15.887 12,32 21.815 16,84
Alemanha 100.123 69.839 1.584 1,58 28.700 27,11
França 92.839 68.578 8.078 8,70 16.183 17,16
Espanha 131.646 80.925 12.641 9,60 38.080 29,12
Brasil 11.281 10.667 487 4,31 127 1,20
EUA 336.851 309.254 9.620 2,85 17.977 5,08

Tabela elaborada pelo autor com dados da OMS de 06/04/2020

Na comparação de evolução da epidemia, os casos de França e Alemanha tem suscitado debates especialmente pelo contraste entre as taxas de letalidade registradas em cada um dos países vizinhos. Se a proporção de casos em relação a população total é bastante semelhante, a proporção de mortes em relação ao número total de casos (taxa de letalidade) é marcadamente diferente. Enquanto na França registra-se a taxa de 8,7 % (mortes em relação ao total de casos) na Alemanha a taxa é de 1,50%. Embora esses números ainda sofrerão mudanças, pesa também a favor da Alemanha uma taxa atual bem superior à da França no que diz respeito a doentes que já se recuperaram, 27,11% contra 17,16%.

Assim tem sido repetida a inevitável pergunta: por que o número de mortos na França é tão maior? Alguns fatores combinados ajudam a responder essa indagação.

Quando em 1º de abril a França contabilizou 4032 mortos, o total na Alemanha era de 732, correspondendo a taxas de letalidade de 7% na França contra 1% na Alemanha.

Como já se evidenciou que os idosos são o principal grupo de risco, algumas análises simplistas e apressadas buscaram explicar a taxa de letalidade de um país em função da média de idade de sua população. Isso chegou a ser dito sobre a Itália, mas se revelou uma forma insuficiente de explicação. Isso pode ser demonstrado nos casos de França e Alemanha. A idade média da população alemã é de 47,1 anos e da França 41,4 anos.

Constatar que a epidemia começou primeiro na França que na Alemanha também não explica muita coisa pois, em 1º de março a França contava 100 casos e a Alemanha 111.

Mas certamente é significativo o fato da Alemanha dispor de 6 leitos de UTI para cada mil habitantes e a França dispor de 3,1.

Em recente conversa com uma amiga brasileira, jornalista radicada em Paris, ela apontou alguns fatores como importantes para uma interpretação dos números da pandemia na França, em comparação com os da Alemanha. Os bolsões de pobreza onde faltam leitos de UTI são fatores de vulnerabilidade da França no enfrentamento da doença. A falta de indústria biomolecular e de produção de materiais laboratoriais é outro fator apontado pela experiente jornalista. Ela lembrou ainda que os gastos anuais per capita em saúde na França são de US$ 4.931 contra US$ 5.847 da vizinha Alemanha. Citou ainda a diferença no total anual de investimento em pesquisa que na Alemanha são de 90 bilhões de euros contra 50 bilhões de euros da França.

Outro fator muito significativo diz respeito a estratégia de realização massiva de testes do Covid-19 na Alemanha, coisa que não foi adotada na França e também não nos vizinhos europeus Itália e Espanha. Na Alemanha essa estratégia permitiu adotar medidas de isolamento mais eficazes e assim, diminuir a velocidade de expansão das cadeias de contágio.

Nesse particular, preocupa bastante a situação do Brasil onde faltam materiais para testes e a capacidade de análise de resultados tem se mostrado até o momento bastante débil.

Vale aqui salientar que, podendo ser o número de casos notificados inferior ao número absoluto de casos num país essas taxas divulgadas perdem poder de explicação. Também o número de mortes por Covid-19 sendo subnotificado afetam as taxas.

Ainda no que se refere a capacidade do sistema hospitalar a Alemanha apresenta também melhores números. Dados da OCDE de 2018 mostravam que a Alemanha dispunha de 4,3 médicos por 1 mil habitantes, na França eram 3,4 e o mesmo se observa no número de enfermeiros, 12,9 na Alemanha e 10,8 na França.

De modo geral em todos esses países há escassez no mercado de trabalho de médico(a)s, enfermeiro(a)s e demais profissionais de saúde.

Em conversa com um amigo italiano, Giancarlo Cremonini, morador de Ímola, cidade da Emília Romagna e arguto analista da política italiana, ouvi a avaliaçlão de que uma série de reformas econômicas e trabalhistas realizadas nos últimos anos precarizaram as relações de trabalho no setor da saúde, dentre outros, debilitando assim a capacidade para o enfrentamento de crises como a presente.  

A redução nos últimos anos do número de vagas nas universidades italianas em cursos de medicina também é apontada por Cremonini como fator de debilitação do sistema de saúde italiano. Ele critica também uma série de privatizações na área da saúde, que resultaram no fechamento de unidades de saúde em pequenas cidades.

Ainda no tocante aos insumos para laboratórios e hospitais, a existência de uma industria química e farmaceutica instalada em território nacional, num contexto como o desta pandemia, se afirma como um fator de sensível importância estratégica. Hoje quase todos os países sofrem com a falta de máscaras médicas, testes, reagentes, respiradores, chegando a desencadear tensões entre produtores (sobretudo a China) e compradores (resto do mundo). Práticas desleais como as praticadas e defendidas pelo presidente dos EUA para obtenção de materiais essenciais para salvar vidas tem revelado o lado mais perverso do livre mercado.

Sobre o futuro pós-pandemia na Itália, Cremonini acredita que mudanças políticas ocorrerão e manifesta o desejo de que partidos políticos com história de defesa dos interesses dos trabalhadores e comprometidos com a justiça social se reorganizem e programaticamente ocupem o espaço que a cena política necessitará para o enfrentamento de problemas que já afligiam o país antes da pandemia e que agora se apresentarão agravados.

Num olhar sobre o espaço europeu, o pós-pandemia demandará mais do que já vinha sendo demandado, uma revisão sobre os princípios e modus operandi das instituições e órgãos do bloco europeu que em função da orientação adotada para o enfrentamento da crise econômica de 2008 produziu mais fraturas que união e fragilizou o sentimento de pertença das sociedades nacionais em relação ao bloco. 

A pandemia tem castigado o continente europeu e ainda se encontra distante de seu fim. A recuperação das nações no pós-pandemia será mais um teste radical para a experiência integracionista originalmente inspirada por princípios de cooperação e fraternidade.

Np hemisfério americano os desafios não serão menores e, pelos danos que o vírus vem causando nos Estados Unidos, nação mais rica e desenvolvida da região, lança mais temor sobre como a pandemia evoluirá e com quais consequências sobre os demais países, dentre os quais o Brasil onde, pela sua extensão, população, desigualdade social e atual contexto de crise política e institucional, os danos poderão ser severíssimos.

Para o Brasil, o espaço de tempo que nos distanciou da propagação do vírus possibilitando um aprendizado pela observação do que se deu em outros países poderá ser convertido em vantagem, mas o tempo para isso corre velozmente contra nós. A experiência anterior em epidemias como a do zika virus em 2015 também poderá nos ajudar.

Diante de tanta incerteza o que se pode afirmar é que, além dos recursos da ciência, o senso de responsabilidade e a coragem serão essenciais para que a ação política em toda a sua potencialidade ponha em curso as  mudanças necessárias para o bem dos cidadãos, e ainda mais, da humanidade, que transcende as fronteiras nacionais e que se viu ameaçada nessa pandemia.

Arnaldo Cardoso, cientista político

Redação

3 Comentários

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  1. Pelas audiências do Roda Viva no youtube, com relação a programas dos últimos meses se nota o peso e atenção do público aos temas da ciência e de política. E os cabeças tortas querem chegar ao público apostando nas crendices e na anti-diplomacia:

    Atila Iamarino | 30/03/2020 (uma semana atrás)
    3,3 mi de visualizações

    Sérgio Moro | 20/01/2020 (2,5 meses atrás)
    2 mi de visualizações

    Ciro Gomes | 16/03/2020 (duas semanas atrás)
    1,4 mi de visualizações

    Yuval Harari | 11/11/2019
    514 mil visualizações

    Drauzio Varella | 10/02/2020
    434 mil visualizações

    Joice Hasselmann | 21/10/2019
    429 mil visualizações

    Mario Sergio Cortella, Leandro Karnal e Luiz Felipe Pondé | 16/12/2019
    319 mil visualizações

    Gustavo Bebianno | 02/03/2020
    301 mil visualizações

    Armínio Fraga | 23/03/2020
    206 mil visualizações

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