Jornal GGN – “Para a África, o estado de direito e os conceitos relacionados oferecem esperança e cautela num ambiente repleto de extrema complexidade e trauma histórico”, analisa o pesquisador queniano Makau Mutua.
Estudando a necessidade da eficiência de um Estado de Direito regendo o país, atrelado ao contexto histórico da África do Sul, Mutua lembra que o experimento do país com a democracia foi difícil, levando a conclusão de que o discurso da preservação dos direitos individuais precisa, antes, de uma profunda reestruturação da economia e da política e que, sem isso, o preço é pago pelas populações mais vulneráveis.
“Nem a lei e nem a linguagem dos direitos por si só podem transformar a sociedade. Mas é indiscutível o fato de que sociedade alguma poderá alcançar o desenvolvimento sustentável sem infundir em sua íntegra a cultura de justiça baseada nas normas fundamentais do Estado de Direito”, analisou.
Por Makau Mutua
RESUMO
O Estado de Direito é muitas vezes visto como uma panaceia para assegurar uma democracia bem-sucedida, justa e moderna, que permita o desenvolvimento sustentável. No entanto, como Makau Mutua destaca, isto não é verdade. Usando o caso dos países africanos, ele descreve como nenhum deles conseguiu de fato se livrar dos grilhões do domínio colonial e emergir como um Estado-nação verdadeiramente justo – embora muitos tenham o Estado de Direito no coração de suas constituições. Isto, argumenta ele, deve-se ao fato de que o conceito ocidental do Estado de Direito não pode simplesmente ser transplantado para a África. O conceito deve ser adaptado para ter em conta as peculiaridades culturais, geográficas e econômicas de cada Estado. A fim de conseguir isso, Mutua oferece sete valores fundamentais a respeito dos quais o Estado de Direito deve refletir, a fim de alcançar o desenvolvimento sustentável em todo o continente.
Introdução
Poucos conceitos foram tão cativantes quanto o Estado de Direito. O conceito se remete à antiguidade e à Carta Magna. Sua genialidade reside na subordinação dos governantes à lei e ao devido processo. A democracia moderna – que não é possível sem o Estado de Direito – está ancorada no liberalismo, no projeto do Iluminismo e nas tentativas de universalização da sua moralidade. Em um continuum histórico, o liberalismo é anterior e dá à luz a democracia política que por sua vez é universalizada nos direitos humanos. A linha comum que os perpassa é o Estado de Direito. Mas o Estado de Direito não existe sem complicações e controvérsias. Da mesma maneira que a democracia política e os direitos humanos, o Estado de Direito tem vivido uma história instável e sido objeto de críticas profundas sobre sua incompletude normativa, cegueira cultural, cumplicidade imperial anglo-saxônica e contexto histórico. Para a África, o Estado de Direito e os conceitos relacionados a ele oferecem esperança e advertência em um ambiente repleto de extrema complexidade e trauma histórico.
Deve ser feita distinção entre a “lei” e o “Estado de Direito”. Os dois termos são frequentemente confundidos. Charles Dickens em Oliver Twist popularizou a expressão em inglês “a lei é um asno – idiota”. A referência feita por Dickens dizia respeito à rigidez da aplicação da lei, e não à própria lei per se como um artefato. A questão é que da mesma maneira que um asno, a lei é rigidamente estúpida e obstinada em sua aplicação. Despojado ao seu mínimo – e espoliado de significados mais modernos que imputem os direitos humanos em seu núcleo – o Estado de Direito assegurou fidelidade e certeza à sua aplicação. A questão não é se a lei era justa ou correta. É o Estado de Direito – e não a própria lei – que precisa ser questionado. Em outras palavras, é a linguagem dos direitos – interpretada como o Estado de Direito – que requer escrutínio.
Este artigo aceita a visão comum de que nenhuma sociedade viável pode existir hoje sem um regime jurídico digno, legítimo e largamente aceito. Em outras palavras, tanto a lei quanto o Estado de Direito são pivôs indispensáveis de qualquer sociedade política legítima. Sistemas de governo privados arbitrários, ou cleptocracias não têm lugar no mundo moderno. Mas este artigo argumenta que tal visão é apenas anti-catastrófica e não responde aos desafios apresentados pela impotência que continuam a causar e agravar a privação humana. Um sistema governado pelo Estado de Direito é mais propenso a evitar o colapso da ordem social e política, mas não é capaz de abordar as desigualdades profundamente enraizadas. Ele pode fornecer a justiça processual, mas nega a justiça social fundamental. Na verdade, os regimes liberais e até mesmo os não liberais são regidos pelo Estado de Direito. Mas isso não é capaz de evitar a opressão, a exclusão e a marginalização. Este artigo argumenta que praticamente todos os países africanos experimentam grandes lacunas de legitimidade que o Estado de Direito não é capaz de resolver a menos que uma transformação social profunda seja realizada. O suporte de direitos não é um instrumento adequado para a libertação humana. O texto identifica déficits que o Estado de Direito poderia enfrentar, mas adverte contra a euforia de depender exclusivamente da lei para desfazer distorções sociais profundas. Em última análise, o artigo questiona a viabilidade do projeto liberal na construção de uma sociedade justa e humana. Conclui-se que as soluções de mercado juntamente com a desigualdade de renda e a impotência geradas pela alienação social, exclusão e outras distorções pós-coloniais deveriam dar uma pausa às comunidades de Estado de Direito globais. É preciso repensar o lugar do Estado de Direito em uma África ressurgente, mas os modelos fracassados de outrora não devem ser replantados. O renascimento do liberalismo na África – se é isto que os africanos desejam – deve ser problematizado. Mas esse renascimento deve aprofundar a democracia para liberar o potencial humano de cada africano.
A História de Traumas da África
A África tem países jovens, embora seja um continente velho. Talvez nenhum outro continente tenha sofrido mais traumas do que a África ao longo dos últimos 500 anos. O comércio árabe e europeu/americano na África escravizada se destaca por sua brutalidade e legado sobre os povos do continente. O comércio de escravos foi seguido pela Partilha da África, em que as sociedades africanas, instituições e normas foram destruídos pelas potências imperiais europeias. A pilhagem e o roubo dos recursos da África para o benefício do Ocidente se destacam na era do colonialismo. A independência do domínio colonial iniciada na década de 1950 trouxe pouco alívio quando as esperanças de um ressurgimento foram consumidas no caldeirão da Guerra Fria e por uma ordem econômica internacional escandalosa. Estados com partidos únicos obscuros e opressores e ditaduras militares proliferaram no continente. As elites dirigentes africanas não foram capazes de implantar a promessa da constituição liberal e aderirem ao Estado. A transição do colonialismo para um Estado independente, viável e pós-colonial provou-se extremamente desafiadora. As elites escolheram primeiramente consolidar seu próprio poder. Elas sufocaram a dissidência, desmantelaram as constituições liberais, refugiaram-se nas lealdades étnicas, reforçando o estado patrimonial. Corrupção e capitalismo de compadrio tornaram-se uma cultura. Infraestruturas em colapso, sociedades fragmentadas, conflitos religiosos, civis e étnicos tornaram-se muito comuns. Muitos países entraram em total colapso. A transição do regime colonial para um estado pós-colonial viável provou ser mais desafiadora do que o esperado. A construção e o sustento de instituições do Estado – inclusive dentro do setor da justiça – foi prejudicada pela falta de coesão interna, rivalidades étnicas, dissonância cultural e intervenções externas.
Cada braço do Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário – vivenciou contração, disfunção ou colapso. A responsabilidade, muitas vezes, era de um Executivo autoritário. Os homens no poder geralmente encurralavam a legislatura e a transformaram em um carimbo. A africanização e a indigenização do Judiciário não conseguiram fazer a transformação do setor da justiça tirando-o de sua instrumentalidade colonialista, racista, contrária à população e opressiva. Os juízes tornaram-se extensões do Executivo e serviram aos seus caprichos. Em vez de se tornarem fontes de justiça, os tribunais foram usados para instilar o medo na população, a mando do Executivo. Os tribunais foram usados para esmagar a dissidência política e restringir a sociedade civil. Sob esse clima era impossível sequer pensar em conciliar regimes legais antagônicos dentro do Estado. Sistemas de justiça formais e informais – direito civil e comum, a lei muçulmana e a sharia, os regimes de resolução de litígios e de justiça africanos, e o direito Hindu – coexistiram sem coordenação. O resultado foi uma miscelânea confusa, um guisado de regimes legais em que a vítima era muitas vezes a justiça. O pluralismo jurídico, antes fonte de força e diversidade vibrantes, subordinou os cidadãos a um tratamento muitas vezes desigual e discriminatório. Isto foi especialmente verdade no caso das mulheres e meninas. Como resultado, os tribunais e o setor jurídico mais amplo raramente eram vistos como instituições legítimas onde os cidadãos podiam buscar justiça. Os juízes eram vistos com desdém, desprezo, ou medo na maioria dos Estados africanos. É por isso que hoje a lei, tribunais e o setor jurídico são vistos com desconfiança pela maioria dos africanos. Os judiciários não são vistos como os guardiões da legalidade ou imparcialidade. E da mesma forma, a ilegitimidade do setor de justiça se estendeu a todos os outros braços do Estado.
Mesmo com esses desafios, a África tem sido um continente resiliente. Os estragos da Guerra Fria começaram a recuar com o colapso do bloco soviético no final de 1980. Os africanos levantaram conjuntamente para exigirem sociedades mais livres em todo o continente. A sociedade civil renasceu. A oposição política encontrou sua voz e se mobilizou para tomar o poder. Todo o continente, com exceção do Norte da África, onde há predomínio de população árabe, foi atingido por uma onda de liberalização política não vista desde a Década da Independência. Não seria até a queda da cleptocracia Ben Ali, seguida dos protestos de massa na Tunísia, que os fenômenos conhecidos como a Primavera Árabe derrubariam um ditador após o outro no Norte da África. Um caldeirão de protestos revolucionários consumiu déspotas que estavam há muito tempo no Egito, Iêmen, Líbia e cercou os outros na Síria e no Bahrein. Na África, praticamente todos os Estados sucumbiram às reformas políticas. Na África, em particular, novos pactos sociais, geralmente sob a forma de uma constituição nova ou reescrita, tornaram-se a norma. Central aos novos pactos entre o Estado e os cidadãos foram os princípios fundamentais da tradição liberal. A isso se resumiu o Estado de Direito, a democracia política através do multipartidarismo, eleições abertas e disputadas, o controle do poder Executivo, a independência judicial, a separação de poderes e a garantia dos direitos individuais. Essa onda de reconstrução do Estado africano ficou conhecida como a segunda libertação. A África do Sul se livrou do Apartheid. Para sinalizar uma nova era, em 2001, os Estados africanos transformaram a Organização de Unidade Africana, um órgão criado para finalizar a descolonização, na União Africana (“UA”). Um dos principais objetivos da UA defendia esse novo pacto. Ele afirma claramente que a UA deve “promover os princípios e as instituições democráticas, a participação popular e a boa governança.”
As duas últimas décadas têm visto um aumento constante no crescimento da África em praticamente todos os setores – justiça, econômico, social e político. A África de hoje tem algumas das economias que mais crescem no mundo. Sem dúvida, houve reversões horríveis em alguns Estados, e uma teimosia às crises em outros. Os casos mais desesperadores são movidos pelo colapso da ordem social, o fracasso da governança, bem como a persistência de privação. Mas a negação aos cidadãos do direito de mapear seu próprio destino tem estado no centro da miséria nos poucos Estados que ainda não aderiram à caravana de liberdade. Mesmo naqueles países que optaram por um retorno à democracia política nas últimas duas décadas, muitos problemas persistem. As desigualdades sociais, a privação econômica, a discriminação ao longo de cada clivagem, além da falta de justiça social são manifestos. Ou a democracia não foi aprofundada ou a cultura de justiça não penetrou na medula óssea. Os desafios para os sistemas consolidados de governança que dão sentido à cidadania permanecem. Muitas populações ainda estão excluídas da participação política e das oportunidades econômicas. Claramente, escrever grandiosas constituições e promulgar boas leis não é o suficiente. Nem Legislativos e Executivos eleitos inauguram automaticamente uma cultura de justiça, ou criam um Estado de direitos humanos. Os Judiciários permanecem em dívida com interesses poderosos e escusos na política e na economia. O poder ainda está concentrado em poucas mãos, regiões e grupos. O Estado de Direito – entendido como a adesão às boas leis – não é panaceia suficiente para dar conta dos complexos problemas da África. Não há dúvida de que os africanos devem descompactar o conceito de Estado de Direito dentro de uma política democrática para responder a esses desafios.
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Em pleno século XXI
Onde o Golpe se da pelo Judiciário. …
É num Blog de esquerda, o que eu leio…
Que o Judiciário é a solução para algo.
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Solução é a volta da chibata em praça pública e PENA DE MORTE!