Fascínios da Nigéria, por Alberto da Costa e Silva

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Mulheres dançam durante o festival Ofala, no estado de Anambra, na Nigéria/Foto: Akintunde Akinleye/Reuters/11-10-2014

Por Alberto da Costa e Silva 

De O Globo
 
Historiador Alberto da Costa e Silva escreve sobre os laços culturais entre Nigéria e Brasil
 
Semelhanças fascinam, mas diferenças são ainda mais apaixonantes, diz autor, que foi embaixador no país africano
 
Em 1º de outubro de 1960, a Nigéria tornou-se um país independente. Eu me encontrava lá, acompanhando o embaixador Negrão de Lima, representante do Brasil nas cerimônias. E estava fascinado com o que via, a confirmar ou desmentir o que recebera dos livros. Desde o momento em que desci do avião, fui tomado pela sensação de que havia entrado naquele desfile dos Reis Magos que Benozzo Gozzoli pintou na capela dos Medicis, em Florença. Com suas vestes amplas e esvoaçantes, de leses, sedas, veludos e damascos, e seus gorros e turbantes bordados, a comissão de boas-vindas humilhava nossos ternos cinzentos, que nos pareceram feiíssimos, e não só quando contrastados com essas roupas de gala, mas também com as de estampado de algodão das pessoas que enchiam as ruas, e falavam em voz alta, e trocavam abraços, em meio a estrondosas risadas. Lagos parecia ter saído toda de casa, porque ninguém queria perder a festa — pensei. Mas enganei-me, como verifiquei nas viagens que faria à cidade, nos anos seguintes: a gente de Lagos passava a vida na rua. Em azáfama e alegria. Vendendo e comprando. Na frente das lojas e das casas, nos espaços entre os edifícios, no correr das avenidas e nas travessas acumulavam-se as barracas com todo o tipo de mercadorias: do último tipo de motocicleta a garrafinhas com amendoim torrado, de sapatos a malagueta moída e seca. Quando, em 1979, fui morar em Lagos, as ruas estavam tomadas por multidões como nunca vira antes e para as quais — assim me parecia — comerciar era da essência do viver. A cidade era um enorme mercado, que chegava até as praias, onde os vendedores passavam entre os banhistas a oferecer camarões, champanhe, rádios portáteis, bolsas italianas, legumes e frutas.
 
A cidade era feia, mas o espetáculo que nela se desenvolvia, belo e estonteante. Nele mergulhamos, minha mulher e eu, de alma inteira. E logo percebemos que não nos tratavam como oibó, ou branco. Pertencíamos a outro grupo: o brasileiro. Um menino explicou-nos com candura: não cheirávamos a podre como um europeu e na vida diária nosso comportamento era semelhante ao dos seus. Durante quatro séculos, no Brasil, os africanos e seus descendentes se acaboclaram, e os europeus e seus descendentes se africanizaram. Nas várias vezes que percorri a estrada litorânea entre Lomé e Lagos, senti-me na costa do Nordeste brasileiro. A intensa troca de vegetais entre as duas margens do Atlântico e a migração forçada de africanos para o Brasil moldaram uma paisagem comum de coqueirais e casas de sopapo, na frente das quais, nos dois lados do oceano, podíamos ver senhoras curvadas a varrer o terreno com um feixe de gravetos. Para completar a semelhança, sucediam-se à margem da estrada as vendas de duas portas, os botequins, os albergues e as oficinas mecânicas estampando nas fachadas em letras grandes os nomes de seus proprietários. E alguns destes eram: Souza, Barbosa, Da Silva, Campos, Medeiros, Rocha, Martins e outros apelidos de família herdados de comerciantes que se instalaram na borda do golfo do Benim ou, na maioria dos casos, de ex-escravos que retornaram à África.
 
Já na breve estada em outubro de 1960, eu me emocionara ao visitar o bairro brasileiro de Lagos, o Brazilian Quarter, com seus sobrados e casas térreas que poderiam estar no centro antigo do Rio de Janeiro. Nas visitas seguintes, comoveu-me conhecer algumas dessas pessoas que, sendo nigerianas, se identificavam também como brasileiros, amarôs ou agudás, do mesmo modo que outras se afirmavam ibos, iorubás ou hauçás. Durante os três anos que passei em Lagos, aprendi que essa e outras cidades do golfo do Benim continuavam em Salvador e que a Bahia se prolongava na África Ocidental. Mas aprendi também que, embora tivéssemos tantos traços de semelhança, éramos diferentes. Se tomei tento nas parecenças, apaixonaram-me as diferenças.
 
Raro era o meu dia em Lagos sem surpresa, aventura ou descoberta. O espetáculo das culturas era fascinante, rico e complexo, mas exigia cuidados de quem dele quisesse participar. Diante de uma determinada situação, o comportamento recomendado por um edo podia ser tomado por um ijó como despautério ou grosseria. As gafes, quase sempre, não tinham, porém, maiores consequências porque os nigerianos, qualquer que fosse a sua língua e cultura de berço, perdoavam, às gargalhadas, os equívocos dos estrangeiros.
 
Não poucas vezes senti-me entrar na História ou puxei o passado para o meu arredor. A Nigéria tivera os seus costumes e valores recosturados pelo colonialismo britânico, mas os povos que a formavam se apegavam a seus dias antigos. As tradições persistiam ou ressurgiam com força nas circunstâncias mais inesperadas. Com a república federativa e os governadores dos estados eleitos, por exemplo, coexistiam emires, obás e outros reis, que exerciam formas de poder próprias e eram obedecidos e venerados por seus súditos. Visitá-los em suas cortes era experimentar sensação semelhante à que senti quando, em 1960, cheguei pela primeira vez à Nigéria: a de que era possível manter vivo, num mundo cada vez mais uniformizado, o que fazia cada povo diferente.
 
Alberto da Costa e Silva, ganhador do Prêmio Camões em 2014, é diplomata, poeta, ensaísta, historiador e africanista, ex-embaixador na Nigéria e no Benim, entre outros países. É autor de “A manilha e o libambo: A África e a escravidão, de 1500 a 1700”, entre outros livros
 
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. Nigéria

    Nassif.

    A descrição da Nigéria, com destaque para a capital Lagos, reflete a visão de alguém que pertence ao corpo diplomático, circunstância que facilita a vida em qualquer país que conviva com as principais organizações de política internacional.

    Para um turista normal, Lagos é um perigo desde momento em que o avião aterrisa até o momento em que o outro decola, levando o camara embora. A corrupção é desenfreada há anos, diversos grupos dominam as ruas, o nível de pobreza é fantástico, apesar da grande quantidade de petróleo que é exportada pelo país há anos.

    Recentemente o país conseguiu, com toda a $$$$ que tem, ficar reconhecido como um dos campeões do Ebola, copmpreensível, pois aquele governo está se lixando para os seus.

    Não conheço o país, mas conheço há muitos anos quem ganhou $$$$ a vida lá, e sabe perfeitamente sobre tudo o que acontece naquele país, só que agora morando no RJ. 

  2. Para os que se interesseram

    Para os que se interesseram por esse importante artigo do Embaixador Albero da Costa e Silva, gostaria aqui de transcrever as seguintes passagenss:

    “E logo percebemos que não nos tratavam como oibó, ou branco. Pertencíamos a outro grupo: o brasileiro. Um menino explicou-nos com candura: não cheirávamos a podre como um europeu e na vida diária nosso comportamento era semelhante ao dos seus. Durante quatro séculos, no Brasil, os africanos e seus descendentes se acaboclaram, e os europeus e seus descendentes se africanizaram. Nas várias vezes que percorri a estrada litorânea entre Lomé e Lagos, senti-me na costa do Nordeste brasileiro.” 

    “Não poucas vezes senti-me entrar na História ou puxei o passado para o meu arredor. A Nigéria tivera os seus costumes e valores recosturados pelo colonialismo britânico, mas os povos que a formavam se apegavam a seus dias antigos. As tradições persistiam ou ressurgiam com força nas circunstâncias mais inesperadas.”

    Transcrevo também comentário meu feito sobre a presença africana na formação brasileira e a repressão e o recalque dessa presença pelas elites tradicionais do Brasil:

    “Indo até a África outro dia li uma interessante entrevista do Prof. Luis Felipe de Alencastro (tá lá no ‘saite’ do Instituto Cidadania (de Lula) em que afirma (concordo com ele) que o Brasil é um país ocidental, mas é também um país africano (aliás, isto está claro já em Joaquim Nabuco, veja-se O Abolicionismo). E Alencastro chama a atenção para a importância de Angola na formação histórica do Brasil. E porque não se discute na mídia brasileira o impressionante crescimento econômico de Angola hoje, com grande participação de empresas e do governo brasileiro (aliás desde o governo Geisel, quando o Brasil foi o primeiro país a reconhecer Angola independente).

    E aliás, quanto à região e aos povos que formaram a Nigéria, porque não repercute a profunda e extensa importância dos africanos dali que vieram para cá, das etnias haussá e iorubá.

    Enfim, mas que resistência é essa que resiste em perceber e aceitar que o Brasil e os brasileiros temos histórica, cultural, social e – será que não? – econômica e politicamente possivelmente mais em comum com os  países do Sul que com os  do Norte (uso sul e norte no sentido mais sócio-político do que geográfico).

    Não seria a repressão e o recalque dessa percepção e dessa aceitação que se encontra no mal estar do parágrafo de abertura de “Raízes do Brasil’:

     

    “A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.”

     

    Uma questão para terminar: não já teria passado da hora para que seja superado essa repressão e esse recalque?

  3. Realmnte o grande diplomata é

    Realmnte o grande diplomata é um poeta, homem de vasta cultura e excelente obra literaria MAS a realidade é muito mais dura e não tem molduras, em 1980 quando o avião decolou de Lagos em uma missão de empresarios brasileiros organizada pela Interbras, trading da Petrobras, houve  estrondo de uma salva de palmas por ter saido daquele horror.

    É tudo muito ruim,achacam a cada dez minutos, se vc não der dinheiro a reserva do hotel não aparece, se alguem for atropelado e morto na avenida o corpo fica lá no chão até apodrecer, a coisa é realmente feia.

    Agora para completar aparece o Boko Haram que pretende tomar o poder, felizmente os EUA vão ajudaro Governo, Kerry acaba de passar por lá.

     

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