Agricultura urbana corre riscos com políticas do governo Bolsonaro

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Horta urbana em Salvador garante alimento e renda para muitas famílias (RITA MARTINS/AGÊNCIA IBGE)

hortas urbanas podem ser afetadas por políticas conservadoras

da Rede Brasil Atual

Agricultura urbana corre riscos com políticas do governo Bolsonaro

Desenvolvimento da prática agrícola sustentável, que coloca na mesa alimentos mais baratos e saudáveis encontrarão barreiras impostas pela defesa dos interesses do agronegócio e do setor imobiliário

por Cida de Oliveira, da RBA

São Paulo  – O plantio de hortaliças, legumes, frutas, raízes, temperos e ervas medicinais em chácaras, quintais, praças, terrenos abandonados e escolas, nas cidades ou bem perto delas, tem papel cada vez mais importante para a segurança alimentar em todo o mundo. Desses canteiros, cultivados por mais de 800 milhões de pessoas, saem 20% de todo alimento produzido no planeta, segundo estudo da organização internacional Worldwatch Institute (WWI).

Fonte de renda para milhões de famílias – milhares delas no Brasil – é também alternativa sustentável de ocupação de espaços vazios nas cidades. O cultivo, geralmente livre de agrotóxicos e de outros agroquímicos, utiliza resíduos orgânicos extraídos de grande parte do lixo doméstico produzido nas cidades. E as sementes, flores e frutos das plantas atraem pássaros e abelhas, contribuindo para o aumento da biodiversidade local.

A atividade, que pode ser individual ou coletiva, para consumo próprio ou comercialização, proporciona o acesso a alimentos frescos, mais saudáveis e com preço mais baixo, já que a distância entre a produção e o mercado consumidor é bem menor. Para completar, o engajamento social e político com a aproximação das comunidades fazem dessa agricultura um espaço solidário e de resistência ao modelo de agricultura hegemônico. 

Dificuldades

Entretanto, diante da atual conjuntura política e econômica brasileira, com forte presença de ruralistas no governo, tudo isso deverá enfrentar grandes dificuldades para ter prosseguimento.   

“Com o Legislativo conservador e a ruralista Tereza Cristina como ministra da Agricultura de Bolsonaro, não vejo perspectiva de avanço de propostas que respeitem o meio ambiente, que diminuam custos e democratizem o acesso a alimentos orgânicos. Não no âmbito federal, onde essas políticas são coordenadas. Ali a perspectiva é outra, diferente do fortalecimento da agricultura urbana e agroecológica”, avalia o deputado federal federal Nilto Tatto (PT-SP), relator da proposta de Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara) aprovada em comissão especial no final do ano passado. O substitutivo está pronto para ser avaliado pelo plenário da Casa.  

Conhecida como “musa do veneno“, a atual ministra Tereza Cristina (DEM-MS) presidiu a comissão especial que aprovou o substitutivo do deputado federal Luiz Nishimori (PR-PR) para projetos de lei apensados que na prática revogam a atual Lei dos Agrotóxicos. Conhecido como Pacote do Veneno, tem o objetivo de facilitar ainda mais o registro, produção, comercialização, importação e estocagem para aumentar o uso desses produtos no país, que já é o maior consumidor mundial.

“A aprovação, mesmo na comissão, pode ser considerada uma vitória se for levada em consideração a configuração da Câmara. Por isso, mais do que nunca, a agenda da agricultura ganha importância fundamental a partir desse período, em que as perspectivas são ruins para a agricultura brasileira do ponto de vista da qualidade dos alimentos, do impacto ambiental e até da balança comercial. Porque as ideias que este governo defende são as das empresas de agronegócio, dos agroquímicos, e não da sociedade brasileira e mundial. Além do âmbito institucional, essa pauta tem de continuar mobilizando os movimentos sociais e toda a sociedade. Afinal, estamos falando do alimento que vai para a mesa de todos nós”.

Disputa pela terra

Outra barreira para o desenvolvimento e ampliação da agricultura urbana é a disputa pela terra e por espaços, que pode ser agravada, entre outras coisas, pelas mudanças na regularização fundiária urbana e rural trazidas pela Lei 13.465/2017, proveniente da MP 759/2016. “Há muita insegurança no uso de áreas utilizadas”, afirma o integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e do Fórum Catarinense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, o agrônomo Marcos José de Abreu. 

Mais conhecido como Marquito, o vereador eleito pelo Psol em Florianópolis já viveu experiências desse tipo. “Das cinco hortas comunitárias que nós acompanhávamos de 2006 a 2010, três acabaram desmobilizadas por esse motivo. Uma em Biguaçu, outra em Itajaí e a terceira, em Florianópolis, na área da usina de compostagem da (chamada) Revolução dos Baldinhos. A de Itajaí era em um loteamento em área de periferia, que tinha um terreno disponível perto de uma torre de alta tensão. De um dia para o outro, a área tornou-se privada. Um documento de legalização foi apresentado e a horta foi desfeita”, conta.

A de Biguaçu, segundo ele, estava em terreno de uma igreja católica. “Articulado com a prefeitura, surgiu um proprietário que acabou com a horta e desmobilizou todo o grupo. E a área utilizada na Revolução dos Baldinhos pertencia à Companhia de Habitação (Cohab). Quando a horta tinha dois anos, sem aviso prévio, a Cohab passou com com uma máquina sobre os canteiros, levando 60 toneladas só de composto orgânico”, lembra Marquito.

Revolução dos Baldinhos a que ele se refere é a gestão comunitária de resíduos orgânicos articulada à agricultura urbana. Idealizada e implementada com a participação do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro) na comunidade Chico Mendes, no bairro Monte Cristo, Florianópolis, consiste na gestão de resíduos orgânicos e compostagem de toneladas de resíduos que até 2008 ficavam espalhados pelas ruas da comunidade,  aumentando a população de ratos e os casos de leptospirose. Esses resíduos orgânicos passaram a ser acondicionados em baldinhos com tampa. A população local teve ganhos nutricionais e se livrou do lixo e dos roedores.

“A maioria dos consumidores de produtos agroecológicos são os de maior poder aquisitivo ou com outra compreensão de mundo. O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad ganhou prêmio internacional justamente pela sua visão sistêmica de agricultura, alimentação e gestão de resíduos. Incluiu na merenda escolar a obrigatoriedade de ter pelo menos uma parte preparada com alimentos orgânicos. Foi na escola que o pobre passou a ter acesso ao alimento agroecológico. Isso é poderoso. E incomodou a indústria dos alimentos, que aceita a agricultura urbana enquanto nicho de mercado, para um fatia da população. Mas quando a gente coloca como garantia de acesso a uma alimentação adequada para todos, a coisa muda de figura”, conta o agrônomo.

Para ele, a agricultura urbana que permite à população mais pobre o acesso a alimentos de melhor qualidade é também o caminho para a superação crises. “Cuba conseguiu sair de uma grande crise de alimentação causada pelo embargo econômico a partir de uma política de agricultura urbana, produzindo perto das casas. A prática, que sempre existiu, emerge em tempos difíceis, como no pós guerra na Europa. A cidade norte-americana de Detroit, que foi capital da indústria automotiva, hoje é grande referência de agricultura urbana e ocupações. Pouco se fala a respeito, mas é a saída para nossa sobrevivência”.

Regulamentação

Em novembro, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara aprovou o Projeto de Lei (PL) 906/15, de autoria do deputado Padre João (PT-MG), que cria a Política Nacional de Agricultura Urbana e estabelece ações que devem ser empreendidas pelo governo federal em articulação com estados e municípios.

A proposta define a agricultura urbana como a atividade agrícola e pecuária praticada nos limites da cidade e integrada ao sistema ecológico e econômico urbano, para produção de alimentos e de outros bens para consumo próprio ou para a comercialização em pequena escala. Como tramita em caráter conclusivo, segue para o Senado sem ter de ser submetido ao plenário da Câmara.

Na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado está em discussão projeto do senador Eduardo Braga (MDB-AM), que regulamenta a produção orgânica de alimentos, plantas ornamentais e medicinais em terrenos urbanos desocupados de propriedade de particulares ou da União (PLS 353/2017). Aprovada na Comissão de Meio Ambiente, a proposta visa ainda permitir ao agricultor urbano acesso ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), com taxas de juros reduzidas, de até 2,5% ao ano, bem como ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

“Toda legislação que trata de agricultura considera o produtor pertencente a áreas rurais. No entanto, com a expansão das cidades, alguns estão em áreas periurbanas. Com essa proposta podem vir a ser incluídos em programas de fomento também. Esse é um eixo. Outra possibilidade é reconhecer espaços urbanos vazios, abandonados, como espaço para cultivos de alimentos e estabelecimento de hortas coletivas e comunitárias”, opina sobre o PLS a antropóloga Mônica Birchler Vanzella Meira, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Gestão Alternativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Membro do coletivo A Cidade Que Queremos (CCQQ) e dos Hortelões Urbanos, a ativista é voluntária em hortas urbanas comunitárias, como a Horta da Lomba do Pinheiro, do Centro Lupicínio Rodrigues, em Porto Alegre, ela conta que o governo gaúcho aprovou em agosto passado uma lei semelhante.

“Há de se tomar cuidado com a legislação para que um ‘projeto de horta’ não seja justificativa para impedir o uso social do imóvel. No caso da população em geral, penso que a promoção de canteiros e hortas urbanas pode despertar o interesse em relação à produção de orgânicos e incentivar a proximidade com os agricultores, reduzindo a relação de intermediários nessa cadeia. Há muitos benefícios que a prática do cultivo pode trazer para aqueles que se interessam pelas hortas comunitárias.”

Mônica observa que o projeto de lei deve estar articulado com os municípios quanto ao uso do solo. Ou seja, deve estar contemplado nos respectivos planos diretores, já que são os estados e municípios legislam sobre a ocupação do solo. E que a permissão para a criação de pequenos animais em áreas urbanas pode ser barrado, com razão, pela Vigilância Sanitária municipal.

“O uso de agrotóxicos nas áreas urbanas e periurbanas também merece atenção. Alguns defensivos, que embora sejam aprovados para uso na agricultura orgânica, são danosos e tóxicos para polinizadores. Mas a proposta, apesar de só falar em área urbana, ajuda muito aqueles produtores que, por uma razão ou outra ficaram estabelecidos nessa franja entre a área urbana e a rural e tem problemas em relação ao cadastro de produtor e, consequentemente, acesso aos programas de fomento.” 

Outros pontos positivos, segundo ela, são a promoção do uso de áreas urbanas abandonadas para cultivo e o acesso à assessoria técnica, que ajuda muito iniciativas populares e comunitárias em torno de uma horta que cada vez mais atrai o interesse da população em geral.

 

 

Lourdes Nassif

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