O que há de errado com os 2 projetos sobre alimentos que tramitam no Congresso

do Brasil Debate

O que há de errado com os 2 projetos sobre alimentos que tramitam no Congresso

por Carolina Bueno, Lilian de Pellegrini Elias e Grazielle Cardoso

Há um modelo de desenvolvimento de agricultura no Brasil que privilegia o agronegócio e a exportação de commodities, que utiliza agrotóxicos, e desprestigia a agricultura familiar e a produção de alimentos saudáveis

Neste momento, dois projetos de lei estão em processo de votação no país: o PL 4576/2016, que trata da comercialização de produtos orgânicos, e o PL 6299/2002, que trata do uso de agrotóxicos (conhecida como PL do veneno). Os PLs dizem respeito à produção e comercialização de alimentos no Brasil.

Os projetos de leis representam um determinado posicionamento frente à discussão sobre o modelo de desenvolvimento da agricultura no Brasil. Para entender as implicações desses dois projetos de leis é preciso entender qual é o modelo de agricultura que o Brasil vem construindo nas últimas décadas.

No Brasil, 30 milhões de pessoas vivem no campo. Dentre estas pessoas – de acordo com o último censo agropecuário – 16,6 milhões estão ocupadas em estabelecimentos agropecuários e 74% estão distribuídas nos 5,2 milhões de estabelecimentos rurais vinculados à agricultura familiar. É a agricultura familiar que produz 44% da renda total da agropecuária em apenas 24% da área – menos de ¼ das terras utilizadas pela agropecuária. Ainda assim, é a agricultura familiar que produz 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros e 83% da produção orgânica é proveniente da agricultura familiar.

Esta disparidade na ocupação da terra vem aumentando, a agricultura familiar vem perdendo espaço para a produção de commodities feita por grandes propriedades rurais. Isso decorre da escolha de um modelo de desenvolvimento agrícola construído no Brasil que funciona pela lógica agroexportadora de commodities.

A principal característica desse modelo de desenvolvimento agrícola é a monocultura, que ocupa os outros ¾ das terras cultiváveis no Brasil. Isso significa dizer que a maior parte das terras são direcionadas para o uso do agronegócio. Esse modelo produz principalmente algodão, cana-de-açúcar, carne bovina, milho e soja, todas commodities direcionadas para a exportação. A economia brasileira hoje, funciona, em grande medida, baseada nas exportações dessas commodities agrícolas.

As exportações de commodities geram, portanto, boa parte do dinheiro estrangeiro que entra no país e é necessário para que o Brasil tenha algum equilíbrio na balança comercial. Este argumento é utilizado para justificar ações no Estado no sentido de fortalecer o modelo agropecuário baseado em grandes propriedades. E são estas ações do governo que tornam este modelo hegemônico. Assim é feita a escolha pelo modelo de desenvolvimento rural brasileiro.

As ações de apoio governamental emergem em forma de políticas públicas – como os projetos de leis – o PL 4576/2016 da comercialização de produtos orgânicos e o PL 6299/2002 do uso de agrotóxicos. São essas políticas que direcionam os financiamentos e os incentivos necessários para que esse ou qualquer outro modelo funcione.

Para se ter ideia, no ano passado, 75% dos créditos do governo foram destinados para o modelo de agricultura convencional, ou seja, o modelo de agricultura que usa agrotóxicos. Esse modelo de desenvolvimento agrícola (em nome da produtividade) tornou o Brasil o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Além disso, esses produtores que utilizam venenos não pagam IPI, PIS e Cofins e têm redução na base de cálculo do ICMS. Ou seja, estamos falando que o Estado brasileiro está optando por um modelo de desenvolvimento que favorece, em grande medida, a agricultura convencional e, por consequência, o uso de agrotóxicos.

Quando a decisão do governo brasileiro em apoiar uma agricultura baseada em agrotóxicos foi tomada, muitas das consequências deste modelo não haviam surgido. No entanto, os problemas se tornaram evidentes e, entre eles, dois se destacam:

i) Segurança alimentar e nutricional: teremos alimentos para todos? Teremos alimentos saudáveis para todos?

ii) Segurança dos seres humanos e da natureza: Os alimentos que consumimos são seguros? A nossa água corre risco de contaminação? O meio ambiente está em risco?

Segurança alimentar e nutricional: os problemas de usar agrotóxicos (o PL diz que agora o nome agrotóxico deveria mudar para defensivos fitossanitários)

Agrotóxico ou defensivos fitossanitários? O nome nesse caso não muda os princípios ativos dos produtos, ou seja, trata-se de venenos. Os agrotóxicos têm como intuito aumentar a produtividade e exterminar pragas que podem colocar as plantações em risco. Entretanto, no meio do caminho, problemas relacionados ao uso do agrotóxico começaram a surgir. Entre os problemas destaca-se a segurança à vida humana.

Hoje, três órgãos estão envolvidos na aprovação do uso de agrotóxicos no Brasil. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) é responsável por avaliar os perigos à saúde humana, à segurança do trabalhador rural e à segurança alimentar. O MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) verifica a viabilidade diante de aspectos agronômicos. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) analisa os perigos ambientais no que diz respeito ao solo, os ambientes hídricos e à vida animal.

Mesmo com o envolvimento dos três órgãos, muitos institutos de pesquisa, inclusive o INCA (Instituto Nacional do Câncer), apontam a incidência do câncer relacionado ao uso de agrotóxicos. Vários princípios ativos banidos na maior parte do mundo circulam impunemente no Brasil. Ou seja, muitos produtos que causam sérios danos à saúde são colocados na agricultura e levados à mesa do brasileiro.

Mesmo que o Brasil permita o uso de muitos produtos que são banidos em outros países, os autores do PL 6299/2002 consideram que o Brasil é muito restritivo e buscam uma “flexibilização”. O PL pretende “simplificar” o processo de regularização e uso tirando o Ibama e a Anvisa do processo. Excluindo entidades competentes no que se refere à saúde e ao meio ambiente da aprovação do uso de substância potencialmente nocivas à saúde e ao meio ambiente.

Quais seriam os problemas futuros de uma maior flexibilidade no uso desses produtos se hoje problemas graves já são observados?

Segurança ambiental: Ressalta-se ainda que as consequências do PL 6299/2002 não afetam “apenas” saúde e meio ambiente: até a nossa balança comercial pode sofrer as consequências

O uso intensivo e descontrolado de agrotóxicos também gera problemas ambientais graves. A terra e a água já estão, em boa parte, contaminadas pelo uso desses produtos.  Nos casos mais graves, os agrotóxicos podem desencadear a morte de várias espécies de plantas e animais, influenciando toda a flora e fauna.

Além disso, poderão impactar diretamente em nossa balança comercial. De acordo com o CEPEA (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), o mercado brasileiro se mostra como o principal exportador de frutas para a União Europeia. No ano de 2017, a receita cambial com exportação de frutas frescas alcançou mais de US$ 600 milhões, com perspectiva de alcançar a casa de US$ 1 bilhão em 2019. No entanto, o mercado europeu tem se tornado cada vez mais resistente aos alimentos produzidos com o uso de agrotóxicos.

O Brasil, país agrário de dimensões continentais, já apresenta grande dificuldade de regular e fiscalizar o uso dos agrotóxicos e seus impactos ao meio ambiente, e o PL agravará ainda mais o problema, caso aprovado. Na contramão disso, muitos países vêm incentivando a produção e comercialização de alimentos livres dos agrotóxicos, diante dos problemas que o uso dessas substâncias causam à saúde e ao meio ambiente.

No Brasil, o mercado de orgânicos cresce, isso decorre da procura da população por alimentos que não causem danos à sua saúde. O PL em tramitação no congresso vai na contramão disso, criando barreiras ao comércio de produtos orgânicos.

Enquanto se quer flexibilizar o uso de agrotóxicos, o PL 4576/2016 faz com que seja ainda mais difícil comercializar alimentos orgânicos

O PL que trata da comercialização de alimentos orgânicos foi aprovado pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, no dia 15 de junho. Agora, segue na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e, se aprovado, vai para votação dos deputados no Plenário.

A mudança que o PL promove é fazer com que os agricultores orgânicos tenham apenas duas opções de comercialização: ou buscar a certificação (um selo) ou vender seus produtos diretamente ao consumidor. Portanto, a existência do intermediário que compra produtos orgânicos do agricultor e revende nas cidades deixa de ser possível caso o agricultor não tenha certificação.

A medida não é necessariamente ruim. Existe um movimento que busca estimular o circuito curto de comercialização, a ligação direta entre produtor e consumidor, e os resultados são bons para ambos. No entanto, infelizmente o circuito curto não é de fácil acesso. A realidade hoje é a de que os agricultores possuem forte dependência em relação a intermediários. Hoje, muitos agricultores familiares não possuem estrutura logística, por exemplo, para escoarem sua produção, e os intermediários facilitam seu acesso a mercados e centros comerciais.

Neste sentido, o PL pode trazer benefícios àqueles que possuem melhores condições de distribuição de seus produtos, no entanto se torna uma barreira para aqueles que contam com o auxílio dos intermediários.

No entanto, existem imprecisões no PL e dois aspectos são importantes de destacar: i) o Projeto de Lei não passou por nenhum debate público, ou seja, não foi compactuado com as organizações que trabalham há décadas com alimentos orgânicos no Brasil. Ou seja, esse PL foi feito sem nenhum diálogo social; ii) segundo, o PL possui dois artigos. Há muitas imprecisões e está mal redigido, com pouco detalhamento e esclarecimento sobre a comercialização. Por exemplo, o inciso primeiro diz que a venda direta vai ser realizada exclusivamente por agricultores familiares. Mas, e aqueles que produzem orgânicos e não são encaixados nessa categoria? Eles vão estar vedados de fazer a comercialização direta?

O inciso terceiro diz que as vendas diretas estão relacionadas às propriedades privadas, feiras livres e espaços gerenciados pelo poder público. No entanto, o inciso está tão impreciso, que não aborda, por exemplo, a comercialização dos produtores com o governo a partir de políticas de compras institucionais como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos).

Essa falta de discussão e diálogo público criou mais obstáculos que irão prejudicar a expansão da produção de alimentos orgânicos. É preciso dar condições para que os agricultores orgânicos avancem e se organizem, antes de se criar uma nova restrição. É preciso evitar que isto se torne mais uma – entre muitas – barreiras à ampliação do acesso à população de produtos de qualidade.

Não é raro observar que há dificuldades imensas na comercialização de orgânicos. As dificuldades ganharam impulso com as denúncias de venda de produtos convencionais como se fossem orgânicos, ocorridos em 2016. O produtor de alimentos orgânicos tem que provar que está adequado. No entanto, o produtor convencional não precisa provar que segue a legislação quanto à quantidade e à forma de uso dos agrotóxicos.

Existe uma espécie de “caça” para provar que os produtos orgânicos não são orgânicos. No entanto, não existe uma preocupação similar em provar que o uso de agrotóxicos atende aos limites legais – enquanto isso os casos de contaminação com agrotóxicos e venda de produtos fora dos padrões se multiplicam.

O que fazer diante destes projetos de lei?

Projetos de lei com o intuito de desburocratizar para facilitar a produção e projetos de lei que garantam ao consumidor a qualidade do que estão consumindo são necessários e muito bem-vindos. No entanto, desburocratizar não pode significar diminuir a rigidez frente à saúde e ao meio ambiente. E garantir a qualidade não pode significar a exclusão de produtores – intensamente comprometidos com a qualidade dos alimentos – da possibilidade de participar dos mercados.

Agradecimentos: Fernando Marcel T. Martins, engenheiro ambiental, permacultor e fomentador da agricultura ecológica, e Associação de Agricultura Natural de Campinas e Região (ANC).

Carolina Bueno – É pesquisadora pelo Núcleo de Economia Agrícola e do Meio Ambiente da Unicamp e doutoranda pelo Instituto de Economia da Unicamp

Lilian de Pellegrini Elias – É economista pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutoranda em Desenvolvimento Econômico pelo Núcleo de Economia Agrícola e Meio Ambiente da Unicamp

Grazielle Cardoso – é economista pela Universidade Federal de São Carlos e mestranda em Desenvolvimento Econômico pelo Núcleo de Economia Agrícola e Meio Ambiente da Unicamp

Redação

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