A agricultura familiar e os famintos de 2050, por Rui Daher

Da Carta Capital

A agricultura familiar e os famintos de 2050
 
Empresários do agronegócio insistem que o sistema familiar é símbolo de atraso ao mesmo tempo em que publicações espalham teorias sobre como evitar falta de alimentos no mundo
 
por Rui Daher
 
Gramadinho é uma comunidade do distrito de Diamante, em Cascavel, Paraná. Vivem lá cerca de 60 famílias de agricultores que produzem principalmente grãos – soja, milho, trigo, feijão – em áreas médias de 70 hectares.

Mesmo que tenhamos uma vitória do Brasil na Copa do Mundo, o maior orgulho esportivo continuará sendo a taça do Campeonato Municipal de Futebol, levantada em 2010.

Troféus e fotos do time vencedor estão expostos no galpão da Academia de Todas as Idades, onde fomos recebidos para “janta, chope e bate-papo agrícola”. A ATI é um centro comunitário, construído pela prefeitura municipal em 2012, ao lado da escola e da igreja.

Se até aqui a cena se parece com agricultura familiar, que folhas, telas e empresários confederados (evito o termo ruralista, de que não gostam) insistem em mostrar como símbolo de atraso e pobreza, deem-me crédito os leitores: não é que parece, é agricultura familiar!

Da melhor, que se estabeleceu vizinha a um dos principais polos brasileiros de produção agrícola, o oeste do Paraná, lá herdaram, adquiriram ou arrendaram terras, puseram a família no cultivo, absorveram tecnologias divulgadas pelas cooperativas da região e, financiados pelo governo, colheram seus futuros.

Há muitas Gramadinhos por aí afora, na Federação de Corporações. Como também há assentamentos, aqui já comentados, caminhando, cantando e seguindo a canção triste e repleta de tropeços em modelos já falidos.

A agricultura familiar que constatei em Gramadinho, na levada de costelas e mandiocas macias, discute manejos agrícolas, tem sede de chope e inovações tecnológicas, usa produtos de baixos custo e impacto ambiental para recondicionar o motor-solo com matérias orgânicas, procuram reduzir os altíssimos gastos com agroquímicos.

Essa agricultura familiar, conforme a madrugada avançava e fazia a temperatura beirar os dois graus, sempre compensada (?) pelo chope a menos quatro graus, solenemente, anunciava futura adesão à agricultura de precisão.

Louvável presente, este. Tão ignorado, mas quando conhecido faz duvidarmos de um futuro sempre pintado cinzento.

Na eternidade do que pode vir a ser um voo Cascavel-Curitiba-São Paulo, na livraria do aeroporto, dou de cara com a edição de maio da revista National Geographic, que anuncia “O Futuro da Comida”. Na capa, uma representação gráfica do planeta em forma de maçã promete “os cinco passos para alimentar o mundo”.

Pensei: espero que não me venham com a conversa dos tais 9 bilhões de infelizes famintos de 2050, dentre os quais, felizmente, não estarei. Corri o risco e comprei a revista. Não deu outra.

Cinco passos para não nos tornarmos adictos do fim do mundo: 1) Impedir o desmatamento; 2) Aumentar a produtividade das plantações existentes; 3) Usar os recursos de forma mais eficiente; 4) Mudar a dieta; 5) Diminuir o desperdício.

Trecho conclusivo me impressionou. Passo a emoção aos leitores: “Temos de achar uma forma de conciliar a necessidade de produzir mais alimentos com a preservação do planeta para as gerações futuras”.

Ah vá. Mesmo? Para tanto, a matéria dá as deixas:

1)    Aumentar a produtividade, pois não temos mais condições de ampliar a área de cultivo;

2)    Aplicar fertilizantes e pesticidas de forma mais precisa graças a tratores dotados de equipa­mentos computadorizados;

3)    Diminuir a produção agrícola destinada aos biocombustíveis, produtos industriais e nutrição animal, reservando-a para a nutrição humana;

4)    Servir porções menores, reaproveitar as sobras e incen­tivar lanchonetes, restaurantes e supermercados a tomar medidas contra o desperdício.

Ora bolas, não apenas nas últimas décadas o aumento da produção tem sido obtido com taxas de produtividade superiores às de expansão de área, bem como ainda existem áreas agricultáveis em várias regiões do planeta, que permitiriam zonas rurais mais prósperas. O que se pensa estar acontecendo nos estados de Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia?

Racionalização dos manejos através de mecanização e inovação tecnológica? Até em Gramadinho se começa a usar. Acabar com bois, porcos e frangos agradaria adeptos do veganismo; reduzir o uso de biocombustíveis viria a calhar para o cartel petrolífero; a falta de certos produtos industriais lotaria os salões dos Alcoólicos Anônimos.

Quanto à necessidade de eliminar o desperdício temos aí uma obviedade, mas não diminuindo porções em restaurantes e lanchonetes, um X-Utopia dos mais gordos, e sim com melhor distribuição. Do contrário, faríamos apenas a população mais esbelta sem recorrer às caríssimas cirurgias bariátricas ou torturantes dietas.

Acredito, pois, que uma conversinha entre os editores da National Geographic e o pessoal de Gramadinho prepararia boa cama para os felizes 9 bilhões de 2050. Fora isso, vive-se a dizer que o sistema capitalista é o melhor modo de produção até hoje experimentado. Arrumem coisa melhor. Pedir proteção divina também pode ajudar.

 

Redação

3 Comentários

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  1. Excelente.A crise já

    Excelente.

    A crise já demonstrou que sem a divisão do bolo o mundo caminha para conflitos sérios.

    Em todos os setores.

    Da imprensa, às empresas, passando pelo campo.

  2. desperdício

    Estimo que 1/4 de toda produção agropecuária é desperdiçada (vira lixo) no trajeto colheita até chegar a boca das pessoas.

  3. A urbanização é o vilão
    O avanço da urbanização é talvez um problema mais sério do que o crescimento populacional. Por fatores culturais, o tamanho médio das famílias tem diminuído constantemente e a expectativa é de que a população do mundo alcance um máximo por volta de 2050, passando a declinar daí em diante, quando o número de filhos por mulher tende a ficar inferior à taxa de reposição (nível de fertilidade que iguala o número de pessoas que nascem ao das que morrem). Ocorre que cada vez mais gente quer morar na cidades, onde atualmente o trabalho é menos extenuante e a vida mais interessante do que na roça. E é aí que o bicho pega: nós urbanos não produzimos nada do que comemos, e então os “da roça” precisam produzir excedentes muito maiores em relação ao que precisam para comer. Ao longo do tempo e dado o modo de produção vigente, isso nos trouxe ao mundo atual das imensas monoculturas, do agronegócio de megaescala industrial e do espantoso aparato logístico planetário que transporta gigantescas quantidades de grãos e carnes por toda parte neste mundão besta sem porteiras. A questão, ao meu ver, é que a vida no campo poderia ser menos extenuante, além de mais atraente e compensadora, e o avanço tecnológico poderia perfeitamente tornar a agricultura familiar tão eficiente quanto o agronegócio empresarial, reduzindo ou até revertendo a tendência à urbanização. Isso tudo nos faz voltar à velha questão da política, única dimensão possível para tratar de temas como a concentração da posse da terra e as prioridades de política agrícola e ambiental. A engrenagem contra é grande e poderosa, mas o movimento da agricultura familiar está se fortalecendo no Brasil. Espero que no resto do mundo também.

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