A luta continua, principalmente em caso de vitória, por Márcio Venciguerra

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

A luta continua, principalmente em caso de vitória

por Márcio Venciguerra

Os que participaram do chão de fábrica dos governos Lula e Dilma sabem que a velha frase da companheirada, dita a cada derrota, vale também para as vitórias. “A luta continua” é ainda muito mais verdade quando se ganha alguma posição a ser usada em favor das mudanças pregadas nos carros de som.

Fui um desses a ocupar cargo de confiança durante os anos Lula e Dilma e venho narrar parte da experiência aqui por dois motivos: (1) é preciso deixar claro o que realmente significa ganhar uma eleição e (2) apontar qual será o adversário mais difícil pela frente. A julgar pelo plano de governo de Lula – Haddad & Manuela, esta eleição será apenas um passo de uma briga muito mais profunda a ser travada na Esplanada dos Ministérios.

Apesar da urbanização, atualmente há um claro protagonismo do conflito agrário nos embates pela democracia ou sua eliminação. Não é a oposição entre rentistas e a cidadania que só se cria com serviços públicos. Ou o antagonismo entre o povo e a TV Globo. Ou a banca contra o sistema financeiro público e o bolso dos pobres. Nem a permanente guerra civil no Rio de Janeiro. Ou a luta mortal do Judiciário contra a Justiça.

A força que comove as ruas vem da roça. Além da animação da bancada ruralista para derrubar Dilma, os tiros contra a caravana de Lula não vieram de banqueiros ou de sedes de industriais. Vieram de um ruralista. Outro ponto importante é que a imagem do agronegociante é motivo da principal campanha de propaganda lançada depois do golpe. “Agro é a indústria do Brasil”, diz a Globo todos os dias.

Do outro lado, não são greves gerais parando fábricas e cidades para barrar a redução do salário mínimo. São os agricultores familiares que encabeçam a greve de fome e saem a pé em marcha pela volta do bem estar no campo – onde a miséria foi reduzida com mais eficiência durante os governos petistas e voltou rápido sob um regime conservador.

Mesmo na parada geral dos caminhoneiros, o campo teve um papel fundamental. A cidade apenas ficou a ver navios nos postos de gasolina. Os petroleiros souberam aproveitar a deixa, mas não controlaram o movimento.

Os sem terra até alimentaram alguns piquetes de estrada, porém, quem mais fez churrascos foram os fazendeiros, que aproveitaram para expor suas bandeiras pedindo ditadura militar. O apoio foi forte até porque os agronegociantes são dependentes de diesel e gostam de correr de moto nas estradas do interior. Enfim, pagaram o preço da participação das petroleiras no golpe que tanto tramaram.  

 

Agronegócio X tudo – Uma das funções que ocupei nos governos Lula e Dilma era a de coordenar grupos de gestão de crises de comunicação, que eram quase sempre momentos de agitação nas fraturas internas da aliança. Agora, depois que tudo já passou, ficou claro o quanto lidamos com um ninho de serpentes, quase impossível de conciliação: os agronegociantes encastelados no Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).

Da mesma forma que hoje o conflito não é monotemático, havia outras disputas políticas internas durante os governos passados. Os técnicos do Ministério das Cidades, por exemplo, viviam às turras com os ministros conservadores herdeiros da pasta. Certa vez, uma assessora de um desses ministros me pediu desculpas por não feito o que havia combinado comigo porque estava ocupada com o pessoal petista dificultando a vida dela.

Mas nada se comparava aos atritos do Mapa com setores progressistas, uma constante fonte de calor. O mais comum era com o Desenvolvimento Agrário (MDA), classificado por pesquisador da Embrapa como “um bando de cepalistas dos anos 70” – um artigo com esse tom foi escrito e causou na época um mal estar dentro do governo difícil de resolver.

Não raro, o Mapa levava a várias outras brigas internas – como contra os “cereal killers” do Meio Ambiente; contra os fiscais do Trabalho, que reprimiam a escravidão; e contra a Saúde, cuja Anvisa teima em querer controlar o uso de veneno.

Um dos episódios mais dramáticos foi quando o Mapa importou um veneno polêmico contra a larva helicoverpa armigera e a Anvisa barrou o uso. Esse gosto por tóxicos faz com que o Brasil, como aponta o plano de governo de Lula-Haddad & Manuela, consuma 6.1kg/ha/ano de veneno (remédio, diria Alckmin). Mais que o dobro dos 2.6kg/ha/ano usados nos Estados Unidos.

“Para mudar essa situação, o governo Lula vai instituir um programa de redução de agrotóxicos, com medidas específicas e imediatas, entre as quais destacam-se o estímulo aos biopesticidas e a atualização da legislação nacional às recentes recomendações da FAO”, diz o plano de governo. E propõe uma bandeira bombástica: revisar os incentivos tributários dos insumos químicos proibidos em outras partes do mundo. Isso vai aproximar os preços dos orgânicos aos envenenados – especialmente hortifrúti.  

Pela experiência anterior, sabe-se que isso não vai ser fácil entrar em prática.

O Mapa não aderia nem mesmo a políticas que favoreciam os agricultores de cereal. Um momento engraçado que testemunhei no corredor do Bloco A, foi ouvir um quadro técnico do Mapa criticar a política de crédito para construção de armazéns e silos. Ele teceu as loas ao heroico produtor rural que quer colher e despachar tudo ao porto rapidamente porque já vai plantar a outra safra. Não quer saber de milho guardado.

No ultimo ano do governo Dilma, foram oferecidos R$ 25 bilhões, a 3,5% ao ano e o prazo de pagamento é de até 15 anos, para produtores, cooperativas e cerealistas estocarem. A política seria boa para o produtor, que não precisa vender no momento de maior oferta. E melhor ainda para os brasileiros em geral, pois (a) evitaria a correria nas estradas e no acesso ao porto e (b) pouparia a quantidade de dinheiro em asfalto necessária para atender o impacto do pico de carga. Mas mesmo assim o pessoal do Mapa ficou contrariado. Ou porque pensava apenas da porteira para dentro ou ficou preocupado com a possível perda de poder de barganha das tradings – vai saber a quem serve quem?

 

Seca de solidariedade –  Até mesmo ações aparentemente tranquilas eram pontuadas por tensões. “Como uma reacionária dessas pode estar no nosso governo?” – perguntou certa vez, uma assessora do MDA, ao sair de uma reunião sobre o envio emergencial de milho ao Nordeste durante a seca. Ela ainda não estava habituada à cordialidade agressiva de quem se acha o último biscoito transgênico e ficou indignada com o desdém da assessora do Mapa – que insinuara a perda de tempo e recursos com as ações de apoio às 1,6 milhão de famílias agricultoras do Semiárido.

As condições climáticas durante os anos de Lula e Dilma eram semelhantes às descritas em O Quinze por Raquel de Queiroz sobre a estiagem prolongada do início do século XX. No entanto, Bolsa Família e outras políticas públicas impediram as cenas de calamidade e retirantes definhando ao sol, como retratou Portinari. Não houve pessoas a pé, como nas Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Nem, como cantava Luiz Gonzaga, num último pau de arara. Essas imagens, corriqueiras na arte produzida nos anos anteriores ao governo Lula, não existiram.

No último ano de Dilma, as famílias agricultoras tiveram R$ 7 bilhões para estimular cultivos e a criação de animais mais adaptados à seca. O roçado do João não sofreu o mesmo impacto, como nunca antes na história desse País, devido ao investimento em tecnologias do tempo dos Sumérios (como barragens enterradas e cisternas), porém, sempre negadas aos mais pobres. Entre junho de 2011 ao final de 2013, cerca de 500 mil cisternas de consumo (o suficiente para matar a sede da família) e cerca de 40 mil com capacidade para produção foram instaladas em sítios do Semiárido.

Hoje, o povo está em marcha a pé pelo Sertão em protestos. Talvez em pânico, na GloboNews, Ciro Gomes chamou essas marchas de “romarias” para desqualificar tanto as famílias (esses pobres que seguem quem promete tanto para o Sertão) quanto Lula (que seria o santo no andor). Mas, na verdade, a procissão é passeata. Eles estão apenas e tão somentemente querendo de volta o dinheiro. Neste ano, segundo a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), o corte no orçamento da agricultura familiar chega a R$ 5 bi.

O orçamento público do período petista não se limitava a apoiar as roças. Também gerou demanda à indústria. Os 1.440 municípios do Semiárido receberam com um kit de cinco máquinas (retroescavadeira, motoniveladora, caminhão-caçamba, pá-carregadeira e caminhão-pipa) para abrir estradas vicinais e fazer obras de enfrentamento à seca, como pequenas barragens, poços e barreiros (não dá mais fazer na mão como os Sumérios).

Mas não é só disputa por verba, os agronegociantes odeiam intromissões em sua cultura, como as que estão no Plano de Governo da campanha de Lula. O PT teima em falar em investir na recuperação de campos exauridos pelo cultivo intensivo, no Programa Nacional de Redução dos Agrotóxicos, em agricultura de baixo carbono. Os agronegociantes tendem a resistir a qualquer avanço civilizatório, como este do Plano Lula, Haddad & Manuela:  “O crédito rural terá mudanças. Além de não financiar práticas produtivas ofensivas ao meio ambiente e aos direitos trabalhistas, serão valorizadas as boas práticas ambientais na agricultura”.

Esse maior adversário que se levanta nunca foi um aliado leal, apesar de ter sido bem tratado. Teve crédito, apoio para investir e ainda uma revolução logística ansiada havia décadas. Gostam do que ganhavam, mas não dialogavam. 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador