Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Desatento ao planeta, o Brasil recria “Romeu e Julieta”, por Rui Daher

Por Rui Daher

Publicado originalmente em CartaCapital

“O capitalismo está morrendo de overdose” (Paulo Arantes, em “Caros Amigos”)

Enquanto “dormia a nossa pátria mãe tão distraída sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações” (Chico Buarque), as elites da Federação de Corporações trabalhavam em nova adaptação da tragédia shakespeariana, “Romeu e Julieta”.

Título definido, “Grampo e Delação”, procura-se apenas final feliz, diferente da desgraça que o bardo inglês reservou aos filhos das famílias Capuleto e Montecchio.

Sugiro submissa Delação, ajoelhada aos pés do Grampo, implorando: “Oh amor, dê-me logo o prêmio. Grampeie-me quanto quiser, mas cuidado com os vazamentos”. Cogitado para o papel masculino, Alexandre Frota se disse muito ocupado com seus afazeres no Ministério da Educação.

Parece que brinco? Brinco não. Se não perceberam o cheiro da podridão de fossas humanas revolvidas por um sistema econômico em estridente decomposição, acreditem-se corretos e felizes como os avestruzes. Diz a lenda que diante do perigo, mesmo sendo as maiores aves do planeta, eles enfiam a cabeça num buraco do solo para não ver o que vai dar. É provável que o rami-rami golpista no Brasil está a tirar-nos a atenção do que se passa no planeta.

Declínio e concentração no setor manufatureiro, encolhimento das classes médias, aumento da pobreza, violência criminal e tráfico de drogas, lutas e êxodos étnicos, atentados terroristas, cidadãos invisíveis para o bem-estar em aglomerados urbanos.

Se ainda não o perceberam, escolham melhor suas leituras e audições. Há pelo menos três décadas, historiadores e cientistas sociais já vaticinavam o mau caminho. Um porvir onde não mais trataríamos somente da polarização entre a hegemonia dos países ricos e a penúria em regiões de pobreza. Afora quem se dedicasse à especulação financeira, generalizar-se-ia (desculpem, a interinidade da mesóclise) a perda da soberania dos Estados, em suas preocupações com o bem-estar social e a cidadania.

Antes de sua morte, em 1994, aos 62 anos, o historiador norte-americano, Christopher Lasch, acabara de publicar “The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy” (W.W. Norton & Company, New York – London). Para a língua portuguesa, caberiam duas traduções: uma literal, A Revolta das Elites e a Traição da Democracia; outra premonitória, O Golpe Brasileiro de 2016.

Vinte e dois anos atrás, Lasch já sentia o crescente fedor da podridão do sistema dominante, invertendo o sentido da obra maior do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), “A Rebelião das Massas”, de 1926.

Em extenso estudo, Lasch via as elites financeiras e que produzem e manipulam informações, diferentemente de seus predecessores, fora do contato com o povo, pensando dele não precisarem mais. Ao povo restaria entregar-se às religiões e tecnologias, a elas agradecendo prendas e implorando perdão.

No mesmo sentido, em “Globalização, Democracia e Terrorismo” (Cia das Letras, 2008), outro excepcional historiador, nascido em Alexandria, Egito, mas de nacionalidade britânica, Eric Hobsbawm (1917-2012), advertia para final semelhante.

Em seus extremos escritos pós-1980, sempre viu a globalização como expansão imperialista que resultaria em concentração de renda, aumento da pobreza, desemprego e conflitos étnicos. Neoliberais o desconsideravam, por marxista.

Pulo, então, para a área que penso entender pouco mais. A agropecuária e seus desdobramentos nos agronegócios. É por aí que gira meu mundo profissional, em semanais Andanças Capitais através de produção familiar, segurança alimentar, preservações ambiental e social, potências produtoras e exportadoras.

Infelizmente, nem todos concordam, mas nosso produtor de commodities agropecuárias é uma mosca tonta que a um peteleco certeiro morre. Seu funesto destino poderá ser determinado pela queda das cotações nas bolsas internacionais, pelos escandalosos subsídios e barreiras tarifárias nos EUA e Europa, a manipulação das tradings, as grandes fabricantes de sementes, fertilizantes e agrotóxicos, ou mesmo por países emergentes que não sabem fazer valer seus biomas e recursos naturais, como os iludidos “Berrantes Caiados”, encastelados na casa-grande brasileira.

Qualquer desses desastres, cada vez mais iminentes no planeta, fará os produtores rurais contarem apenas com o Tesouro de um país ora quebrado e protetor de quem aplica ou “aplica” no mercado rentista.

Disso não escapará nem mesmo o agricultor familiar voltado aos produtos para o mercado interno. O novo modelo econômico não mais apostará no consumo das famílias e nos programas sociais. Os arrochos que virão ser-lhes-ão fatais. Vocês, patos amarelos, pediram.

Poucos de meus leitores, caboclos, campesinos, sertanejos e ruralistas, parecem entender o que está acontecendo com seus tradicionais indutores de produtividade.

Desde as décadas de 1980/1990, os movimentos contracionistas da oferta começaram a se aproximar do setor de insumos para as produções animal e vegetal. Desnacionalização e concentração.

No plano interno, sempre em estado de perrengue econômico, aceitou-se a falácia de que o Estado não tinha capacidade de bem gerir o setor de adubos. Mesmo tecnicamente quebradas, as empresas do setor, com o auxílio luxuoso do pandeiro BNDES, privatizaram a produção estatal. Nada investiram em aumento de capacidade. Quando o consumo explodiu, a importação voltou a predominar (hoje, perto de 80% de dependência), e a competitividade internacional os fez devolverem tudo para o domínio do Estado e de multinacionais.

O setor agrícola, beneficiado por conquistas tecnológicas, boa demanda asiática e preços, absorveu o golpe. Continuou aumentando o consumo a taxas aceleradas. Aos produtores de alimentos para o mercado interno coube continuar acompanhando a gangorra cíclica que faz William e Renata, no Jornal Nacional, tomarem ar de grave preocupação.

É ruim, mas nada perto do que virá. Tanto fora como no Brasil, ocorre batalha acirrada para dominar a produção e distribuição de tecnologias de sementes geneticamente modificadas, novas moléculas para controle de pragas e doenças de incidência cíclica, e vantagens no comércio exterior.

A norte-americana Monsanto quis comprar a suíça Syngenta. Veio a chinesa ChemChina e com US$ 42 bilhões a arrematou. A Dow Chemical e a Dupont fizeram fusão. A Monsanto tentou a Bayer. A germânica devolveu com US$ 62 bilhões e deverá levar seus ativos, mesmo arriscando-se à carapuça da vilania. Negócios menores, mas estrategicamente importantes, se multiplicam no jogo da dominação da venda de tecnologias agrícolas. Canadenses, marroquinos, chineses, indianos, holandeses, nos últimos anos, adquiriram participação em empresas nacionais de insumos.

Por quê? Simples. Casas, pontes, veículos, minérios, internet, trilhos, energia fóssil, e tantos outros itens, podem ser valiosos, mas não enchem o pandulho das massas, fidalgos e cortesãs.

Um bom bacalhau, com receita do Márcio Alemão, supera qualquer fome, dá prazer e sobrevivência. Vinhos, desde que você goste, mesmo sem pontuação RP, ele também recomenda.

Comer é para sempre. Fome mata. Vale a disputa. A quem produz restará escapar das armadilhas. Estudem alternativas naturais e orgânicas. Temos aos montões.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

9 Comentários

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  1. Nada mais me espanta

    Atualmente já não me assusto com determinadas coisas. Talvez pelas bordoadas que a vida nos oferece ao longo do caminho. Hoje recordo com uma certa nostalgia o espanto que me causou quando da leitura do livro do Pat Mooney “O Escândalo das Sementes”, lá pelos idos de 1986, onde ele mostrava a concentração do setor de sementes, desde o início desta indústria, passando pela criação dos híbridos, com a constante eliminação de pequenas empresas familiares e a consequente concentração. Mas ainda estávamos na era pré-transgênica. Imaginem hoje, quando o oligopólio é formado por tão poucas empresas que acho ser impossível preencher os dedos de uma mão.

  2. Uma pergunta

     Prof. Daher,

      Meu ramo é outro, não tem muito a ver com agricultura, mas nestes dias temertosos, alguns conhecidos ( mais de um ) do mercado financeiro, vieram com uma, diria  “sondagem” , sobre a possivel privatização direta ou indireta ( por projetos ou em pedaços ), da EMBRAPA .

       O sr. que é do ramo, já ouviu algo sobre isto, de empresas internacionais chinesas ( foco EMBRAPA Africa ), alemãs, americanas, querendo a EMBRAPA ? E se tal, a luz da legislação, é possivel ?

       Um deles até disse que a EMBRAPA pode ser mais valiosa que a própria Petrobrás.

       Pode ser especulação, mas onde tem fumaça…………..

    1. Caro Júnior,

      A Embrapa é muito valiosa, talvez nem tanto quanto a Petrobras. Muito já se falou em privatizar a Embrapa, o que seria um grande erro. A pesquisa pela iniciativa privada tem objetivo de lucro, não pode, pois, ser completamente isenta. Deve ser desenvolvida e depois, mediante pagamento de royalties, ser fabricada e comercializada por empresas privadas. Assim, ganham Estado, empresas e sociedade. Já escrevi sobre isso, citando que em desenvolvimentos tecnológicos, como os da Apple, Microsoft, e outras gigantes, o embrião das inovações foi de empresas estatais, como a Embrapa. Abraços. 

  3. desatento ao planeta….

    Não estou entendendo esta defesa pelo cafetão atual. Este é muito pior que o anterior. O anterior, sabíamos não tinha caráter algum, jogaria a moça no bordel no 1.o dia. O atual prometeu casamento, moradia, anel no dedo, vida nova. Enganou toda a família, viitimas da condição anterior acreditaram cegamente no conto do “bom moço”. Santo vira dono de zona? Quanto ao agronegócio, a fonte econômica mais competente criada nestas terras, queremos mudar o resultado da partida sem estarmos no jogo? Continuaremos “anões” querendo que nos enxerguem? A China, que não existia há 20 anos atrás, está mudando o planeta. O Brasil não muda nem sua realidade. Cria problemas a partir das novas soluções apresentadas. Era o problema do Brasil, o agronegócio há 20 anos? Neste tempo atrás onde hoje é agropecuária, existia miséria. Muito pior que a de hoje. Na Ilha do Bananal, grilagem de terras e corpos boiando no Tocantins. Repetir velhos problemas e velhas estórias não mudará nossa realidade. Assim como repetir velhos golpes como os de Getulio, de Jango  só nos manterá no mesmo lugar. Mas “cachorro correndo atrás do rabo” já deveria ser lema nacional na inscrição da bandeira. Só que agora os golpistas são tão polidos, não é mesmo FHC?!

  4. Rui,
    não tenho procuração pra

    Rui,

    não tenho procuração pra defender esse ou aquele governo. Afinal, não concordo nem com o anterior, nem com o atual. Focando na área de fertilizantes, que lhe é mais cara, convém analisarmos especificamente um fato – a nacionalização da minha de Cloreto de Potássio, da Vale, na Argentina.

    A mina era um projeto de 4milhões de ton/ano de KCl que seriam, majoriatariamente, exportados ao Brasil, por uma empresa nacional. Importante ressaltar que a importação atual giram em torno de 10milhões de ton/ano e a produção de nossa maior mina, na Paraíba, só vem declinando, não chegando as 800mil ton/ano. Dito isso, sabemos que essa nacionalização foi mais uma espetacularização de um governo populista e incapaz que o fez como uma medida desesperada pra ter ganhos políticos. O projeto, obviamente, se encontra parado e destivado. Ainda no governo Kirchner, foi oferecido novamente a Vale, que declinou, devido às poucas perspectivas no mafioso mercado de fertilizantes. Afinal, melhor sofrer no mercado de minerio de ferro, onde comanda com inacreditáveis 350 milhões de ton  do que sofrer num mercado de potássio, majoritariamente controlado por empresas pouco republicanas. No entanto, no meu ponto de vista, ao invés de insistirmos numa diplomacia bolivariana que pouco nos trouxe, deveríamos ter sido mais pragmáticos e enfiado o rabo entre as pernas e assumido, através de ngociações, o controle e a produção dessa mina. É um absurdo o que fizeram!!! Ela nos supriria em quase metade de nossa demanda atual por Cloreto de Potássio. E o governo, o que fez? Se calou.

    Portanto, ao invés de tanto criticarmos a globalização e seus efeitos nefastos, que realmente têm, deveriamos focar em obter resultados reais aos problemas que, de fato, nos afetam. Afinal, as oportunidades se apresentam e quando não são transformadas em ações reais para nosso prooblemas internos, se tornam apenas retóricas furiosas. Que é o que mais temos hoje. 

     

    Isso, caro amigo, pra não entrarmos no caso da planta de Uréia em Três Lagoas, 95% concluída. Está correndo, a boca miúda, que deve acabar nas mãos dos chineses. Antes nas mãos deles do que virando sucata como está. Afinal, independente de quem seja o dono, necessitamos do insumo. Lastimável.

    Esses dois fatos, pra mim, são crimes contra a economia agrícola, que deveriam ser melhor analisados e ninguém os conhece. Mas, enfim… 

    1. Olá Fernando,

      bom voltar a trocar ideias com você.

      Dois graves erros, meu caro. Mesmo que a planta de potássio em Sergipe estivesse aumentando a capacidade, e não o contrário, o déficit ainda seria monstruoso, criado e justificado por um produto de fabricação altamente cartelizado. O populismo foi do lado argentino e não do  governo brasileiro. Lula fez de tudo para induzir a Vale a esse investimento. Aqui, não se trata de defender governo A ou B, nem a resistência, na época do senhor Roger Agnelli (que Deus o tenha), que depois de 2008 saiu desembestado desinvestindo e demitindo – aliás típico de empresário brasileiro que não entendeu a globalização. Além da diminuição da dependência, o investimento na Argentina era importante pelo fator logístico. O mercado da região Sul, e a concentração nos portos de Rio Grande e Paranaguá.

      Quanto às fábricas de amônia e ureia, em Três Lagoas, a Biocampo realizou, entre 2004 e 2006, quatro estudos para a Petrobras mostrando suas viabilidades de demanda e posicionamento logístico. Imagina que até o uso de ARLA foi previsto e a localização tão explícita, que se sobrepôs à luta política entre governadores.

      O motivo de terem paralisado o projeto é inconcebível e já devia ser consequência do que estava ocorrendo lá dentro.

      Nos dois casos, quem pagará a conta será a agricultura. Abraços. 

      1. Rui, não entendi os erros

        Rui, não entendi os erros mas, tudo bem. Claro que o populismo foi da Argentina. O que o Brasil deveria ter feito, na diplomacia, era não ter deixado isso acontecer. Essa é minha crítica!

        Quanto ao Lula pedir pra Vale investir, depois do estrago feito pela desapropriação, é oportunismo puro dele. Me desculpe mas essa não cola. Não deveria ter deixado acontecer, defendendo um interesse estratégico do Brasil. 

        É óbvio que Sergipe é insignificante. Errei quando disse Paraíba :). E a Argentina seria uma forma de reduzirmos esse déficit, tendo uma empresa nacional produzindo no nosso vizinho. Mas, enfim, é melhor a retórica de dizer que o Agneli não quis mais investir quando pôde. Óbvio que ele nao quis investir em KCl, ninguém quer!!

        grande abraço, caro amigo

        1. me expressei mal, Fernando,

          graves erros de nosso governo. Concordamos, pois. Os complementos que citei (Agnelli, etc.) eram atenuantes. Abraço

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