Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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E “Deus Digitalis” quer reinventar o campo, por Rui Daher

na CartaCapital

Junto ao meu nome e à qualificação de colunista desta CartaCapital, anunciam-me como consultor de agronegócios, atividade que faz uns construírem altares e se incensarem e outros, como eu, não se levarem muito a sério.

Depois de intermináveis e torturantes 30 anos empregado da indústria agroquímica e algumas infrutíferas iniciativas como pequeno produtor agrícola, nos últimos dez anos, achei justo me desvencilhar do jeito patronal brasileiro e virei consultor de poucos consultantes.

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Ainda assim, dou palpites aqui e ali com relativo sucesso. Consigo, por exemplo, ser convidado a fazer Andanças Capitais pelo país para alertar sertanejos, caboclos e campesinos de como serem menos enganados. Ou informar empresários rurais sobre novidades que os fariam gastar menos se ousassem mais.

Depois da farra financeira, grandes consultorias puseram olhos na agricultura, pecuária e no que acontece antes e depois dos plantios e pastoreios. Conglomerados industriais, tradings, organizações solo, e mesmo governos, passaram a perguntar o que diziam os búzios. A partir daí, empavonados placebos puderam ser administrados aos doentes agrários.

A empresa The Boston Consulting Group (BCG), fundada em 1963, desde 1997 com escritório no Brasil, é grande, respeitada e, claro, se leva a sério. Sua missão: “Trabalhar com os clientes para construir capacidades que permitam às organizações vantagens sustentáveis, e darmos forma ao futuro”.

Não resisto notar no final da frase um sinal de deificação.

Pois não é que veio à minha lupa um estudo recente da BCG (abril 2015), “Agricultura em 2030 – A reinvenção do setor”.

Para intuir “reinvenção”, os leitores menos pacientes poderão parar na ilustração inicial do trabalho: senhores em vestes comuns a farmers do hemisfério norte, diferentes de latino-americanos ou africanos, são mostrados em uma cabina envidraçada, computadores às mãos para controlarem o processo produtivo agrícola, enquanto lá fora robôs, drones, tratores lunares, radares, satélites, fazem as plantinhas crescerem fortes, fartas e sadias. Para sugerir o agro, analisam campo verdinho esquadrinhado, um celeiro com silo e o céu azul.

Já sacaram, né? Foi assim que no oitavo ou nono dia, não se sabe ao certo, Deus Digitalis reinventou o setor.

A nova religião propõe, a partir de 2030, cinco promessas para que pessoas, companhias e governos sejam competitivos e sobrevivam na agricultura.

Nossos produtos terão alta qualidade; atenderemos às novas prioridades sociopolíticas; mudaremos práticas e estruturas atuais; adotaremos novos modelos de negócios, desenvolvendo biotecnologia.

Contaram quatro? Esqueci a quinta? Nada. Vem aí a oração: O Como.

“Ó Senhor das digitais habilidades, ajudai-nos a identificar os nichos que atrairão maior valor e determinarão os melhores modelos de negócios e perfis de produtos. Sabemos ser a nossa tarefa muito difícil, mas, dispostos aos sacrifícios, nos esforçaremos para construir renovadas capacidades internas e implantar novos modelos operacionais”. Amém!

Reinventem-se, pois, fiéis agricultores. Segundo a BCG, vocês têm apenas 15 anos para atender aos desígnios do Senhor das Digitais Habilidades.

O estudo foi baseado em mais de 16 mil patentes agrícolas registradas no mundo, entre 2010 e 2014, e num painel de entrevistas com agricultores e especialistas dos Reino Unido, França, Alemanha e Polônia. Do Velho Continente, pois.

Bem, pelos dados que colho de institutos oficiais sobre a agricultura e a pecuária da região nos últimos anos, apesar de fortemente subsidiadas, as atividades veem estagnados ou com baixos crescimentos áreas plantadas, volumes produzidos e produtividades, o que denota negligência naquilo que deveria ser forte reza.

Da mesma forma, pelo que preveem tais institutos, chegarão a 2030 do mesmo jeitão ou ainda piores.

Segundo o USDA, nos próximos dez anos, as produtividades do milho e do trigo crescerão na base de 0,4% ao ano e do algodão, 0,7%. A da soja é ínfima e pródiga de zeros. O complexo de carnes, na prática, ficará estagnado.

Perspectiva assim, digitalizada ou não, é a realidade de agricultores cada vez mais aboletados em bolha temporizada e biotecnológica, distante do amassar barro que fizeram, fazem e farão regiões, como o Brasil, crescerem em produtividade 4% ao ano e, a cada ano, tirar de um hectare de terra o que a Europa precisa de mais de dez anos para fazê-lo.

Que a sociedade procura o dolce far niente é fato. Mas que isso não basta também é.

Atenção

Pode ser cedo para alarmes, mas em Andanças Capitais ouço queixas de que os bancos não estão liberando contratos de financiamento para pré-custeio. Por onde passo, constato pânico de crise geral, conversa exclusiva alardeada em folhas e telas cotidianas, desproporcional à realidade, sobretudo do agronegócio.

Matem a galinha dos ovos de ouro e vejam que delas só sobrará a titica. Se isso se confirmar, na próxima coluna, volto para matar a pau. Governo ou quem estiver pela frente. 

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

2 Comentários

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    1. Sérgio,

      se ainda damos de 10 a zero na Europa, um dos motivos é a Embrapa. Imagine se a ela dessem recursos. O segredo não está em automatização de controles poupadores de mão de obra, mas no desenvolvimento de novas variedades, insumos mais baratos, menos agrotóxicos. Isto, a Embrapa sabe. Não sei se quer ou pode fazer. Abraço

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