Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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A Venezuela que Celso Furtado analisou, por César Locatelli

A Venezuela que Celso Furtado analisou

Ele alertou, em 1957, para os riscos da sobrevalorização do bolívar e da concentração de renda

por César Locatelli

Imaginemos um país assentado sobre montanhas de combustível fóssil. Ou, explicando melhor, montado sobre a maior reserva de petróleo do mundo. Se estivermos em dúvida vejamos que país é aquele representado pela cor laranja no gráfico divulgado pela Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) em 2018. Percebamos que suas reservas do óleo cru superam aquelas da Arábia Saudita, segunda colocada, em mais de 36 bilhões de barris.

Nós brasileiros sabemos bem o que significa a carência de moeda estrangeira. Em 1974 não produzíamos uma gota de petróleo, o preço do barril saltou de US$ 3,70 para mais de 10 dólares. Como estávamos endividados em dólares até o pescoço, por todos os empréstimos que os governos militares tinham tomado, precisávamos buscar mais dinheiro emprestado para continuar a comprar petróleo. Pata piorar ainda mais nossa agonia, as taxas de juros, que estavam entre 4,5% e 6% ao ano em 1972, praticamente dobraram para algo entre 10% e 12% em 1974. Sofremos anos e mais anos de recessão de baixíssimo crescimento por termos sido pegos nessa armadilha: alto endividamento e mudança nos preços do dinheiro e do petróleo.

Estaríamos livres de problemas se fôssemos ricos de dólares? Bem, aqui começamos a contar as avaliações que Celso Furtado fez da Venezuela. Em seu primeiro estudo, pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) em 1957, Celso Furtado já entendia que o dólar barato em relação ao bolívar era o principal entrave ao desenvolvimento venezuelano.

Sublinhemos que a Venezuela era uma ditadura desde 1952 quando militares se instalaram no poder por “evidências de fraude eleitoral”, afirma Rosa Furtado na introdução dos Ensaios sobre a Venezuela. O governo do general Marcos Perez Gimenez não autorizou a divulgação do estudo. Afirma Celso: “Comunicou-se à Cepal que o governo venezuelano considerava o trabalho com não existente para qualquer fim.”

Voltando. A Venezuela gerava muitos dólares. Os dólares eram comprados por empresas venezuelanas que os usavam para a compra de bens importados não produzidos no país. Como a relação dólar e bolívar era bastante favorável à moeda venezuelana, os bens importados entravam no país a preços bastante baixos. A economia venezuelana não tinha, desse modo, como competir com esse bens importados. E não se desenvolvia. Como a indústria de petróleo não conseguia sozinha empregar a força de trabalho venezuelana, gerou-se uma divisão profunda na sociedade venezuelana em que a maioria era empregada em atividades de baixíssima produtividade e uma pequena parcela concentrava a renda por se beneficiar do petróleo e das importações.

Aqui Celso Furtado explica a razão do subtítulo do livro Ensaios sobre a Venezuela ser Subdesenvolvimento com Abundância de Divisas:

A Venezuela é a economia subdesenvolvida de mais alto nível de produto per capita que existe atualmente no mundo. Seu produto bruto territorial por habitante se aproximou, em 1956, de 800 dólares, isto é, um nível similar à média dos países industrializados da Europa Ocidental. Mesmo medindo o produto pelo gasto realizado no território nacional – o que implica excluir a saldo positivo do valor das exportações sobre a das importações – chega-se a um montante em torno de 650 dólares, o que é comparável à renda de países altamente desenvolvidos como Alemanha Ocidental, e superior em mais do dobro à média da América Latina.

Contudo, a Venezuela apresenta todas as caraterísticas estruturais de uma economia subdesenvolvida. Pode-se afirmar que essas características são, na economia venezuelana, mais acentuadas que em muitos outros países latino-americanos de nível de produto per capita muito inferior. Tais características dizem respeito à estrutura da produção e ocupacional da força de trabalho, às grandes disparidades de produtividade entre diferentes atividades produtivas, à muito desigual distribuição de renda entre zonas urbanas e rurais e entre grupos sociais em uma mesma zona, aos baixos padrões de consumo das grandes massas da população, aos índices de analfabetismo e culturais em geral etc.

E como um recado aos economistas de pensamento neoclássico que sempre advogam as qualidades insuperáveis  do livre mercado e acusam os governos de atrapalharem o desenvolvimento, Celso Furtado denuncia:

Se se permitisse o jogo espontâneo das forças de mercado, a Venezuela tenderia a se transformar numa economia principalmente monoprodutora, com grande parte da sua população desempregada ou subempregada e com uma moeda ainda mais sobrevalorizada; os recursos provenientes do setor petroleiro seriam transferidos para os consumidores através de um forte subsídio cambial oculto; os salários monetários excessivamente elevados tornariam impraticável qualquer invetimento destinado a substituir importações; a falta de investimentos nesse importante setor reduziria a necessidade de investimentos de infraestrutura; os recursos financeiros disponíveis tenderiam a emigrar e o desenvolvimento do país seria muito lento ou nulo,

Celso Furtado volta à Venezuela em 1974 e revela suas impressões sobre os desdobramentos econômicos. Diferentemente do otimismo que transparece em seus escritos de 1957, o economista revela, aqui e ali, seu desencanto pelo caminho trilhado pelo país:

Atualmente, a ação do Estado está condicionada pelas exigências de uma estrutura econômica que, em grande medida, reflete a forma como foi utilizado o excedente petroleiro no último quarto de século (…)

Em primeiro lugar, cabe assinalar a baixa produtividade do sistema econômico, se se exclui o setor que utiliza recursos não renováveis, vale dizer, petróleo (…)

O segundo ponto a assinalar diz respeito ao baixo nível da carga fiscal. Comparando-se o valor dos impostos efetivamente pagos pela população com a sua renda, depreende-se que a carga fiscal é menos da metade ou da terça parte da que se observa em outros países da América Latina com renda per capita muito inferior à da Venezuela (…)

Outro aspecto que merece referência é a elevada concentração de renda (…)

É um sistema econômico-social fundamentalmente orientado para o consumo e o desperdício e no qual a renda é muito concentrada e provavelmente tende a se concentrar de forma permanente.

Ele, que vislumbrava a Venezuela como o primeiro país da América Latina a ultrapassar a barreira do subdesenvolvimento, expunha, no texto de 1974, sua preocupação com a concentração de renda. A indústria local só se viabiliza se grande contingente da população tiver uma renda que circule e se multiplique. Caso contrário a indústria preferirá importar a produzir e, ao fazer isso, contribuirá para diminuir a renda e o multiplicador. O que equivale a dizer que aqueles recursos que poderiam circular e se multiplicar na economia interna gerando renda e mais produto “vazam” para o exterior, agravando o excedente estrutural de mão de obra, ou seja, empregando menos. Conclui ele que: “Sendo assim. A maior riqueza trazida pelo boom petroleiro fará da Venezuela um país socialmente instável.”

“A única coisa certa era que a oportunidade de saltar por cima do subdesenvolvimento se perdera”, escreveu ele em Ares do Mundo, em 1991.

Notas:

1 As citações foram extraídas de FURTADO, Celso. Ensaios sobre a Venezuela: subdesenvolvimento com abundância de divisas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

2 FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991

 
Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

1 Comentário

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  1. O colonialismo
    Hoje podemos perceber como funcionam o colonialismo e o neocolonialismo: colônia não pode ter tecnologia, indústria, nem educação pra todo povo.
    Colônia tem que produzir comodities e escravos, acho que a Venezuela, Brazil e demais colônias são provas disso.
    Petróleo é a pior descoberta que se pode ter, pois aí é que o imperialismo impõe o que de pior que existe contra essa país.
    A elevação dos juros americanos nos anos 70 e 80 foi uma “maracutaia” que espalhou hiperinflação para o terceiro mundo… inclusive pra quem tinha petróleo. Observe que colônia que produz petróleo não pode refina-lo. Observe o brazil pós golpe…refinar petróleo aqui ficará a cargo de estrangeiros e seguindo as regras do mercado.
    Os EUA ainda tem como maior produto de exportação, a inflação. Eles a exportam e pra que isso valha é necessário ter essa formatação de economia lá e aqui.

    http://www.patrialatina.com.br/eua-estao-pagando-ao-diabo-com-petroleo-venezuelano/

    https://br.sputniknews.com/americas/2019012913207805-ouro-venezuelano-bancos-ocidentais/

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