O bolivarianismo venezuelano: dificuldades, derrota eleitoral e vitória moral

Por Roberto Bitencourt da Silva

A oposição conservadora venceu as eleições parlamentares na Venezuela, com ponderável diferença.

De um total de 167 cadeiras para a Assembleia Nacional, foram confirmados 99 assentos para a oposição (Mesa da Unidade Democrática – MUD) e 46 para o bloco governista Grande Pólo Patriótico – GPP.

O GPP é formado, entre outros, pelo Partido Socialista Unido de Venezuela – PSUV, de inspiração chavista, e pelo Partido Comunista – PCV.

Resta definir a distribuição de 22 cadeiras parlamentares (17 nominais, duas em lista fechada e 3 indígenas).

O presidente Nicolás Maduro, imediatamente após a divulgação dos resultados eleitorais, reconheceu, com absoluta dignidade e emocionado, a adversidade política.

Definiu os resultados como “um tapa” no seu governo, frisando a necessidade de “retificar” os rumos do socialismo bolivariano. Conclamou os imperativos do diálogo e da paz política para superar os sérios problemas econômicos enfrentados pelo povo venezuelano.

Contudo, não deixou de salientar a pressão financeira-midiática internacional sofrida pelo bolivarianismo. Denunciou a sabotagem empresarial, que estoca alimentos e paralisa a produção.

Com isso, fez referências históricas importantes, situando a trajetória do bolivarianismo venezuelano em uma cadeia de vítimas de golpes de Estado na América Latina: Arbenz, na Guatemala de 1954, o nosso João Goulart, em 1964, e Allende, no Chile de 1973.

Os conglomerados internacionais e brasileiros de comunicação, durante dias, alegavam inúmeros receios com a lisura da eleição.

Proclamavam a vigência de uma “ditadura bolivariana”, que perseguia a oposição e censurava a “imprensa”. No momento, a tônica do noticiário dessas empresas gira em torno do “fim do chavismo”.

Uma nota sequer de autocrítica foi feita pelos conglomerados, sobre o enquadramento noticioso terrorista usualmente adotado. O cinismo é marcante.

Com maioria parlamentar oposicionista a situação do governo Nicolás Maduro, é claro, ficará mais complicada.

A solicitação do referendo revogatório do seu mandato, dispositivo democrático e chavista previsto na Constituição, está flagrantemente no horizonte.

As direitas do Brasil e de demais países do continente deveriam aprender com a altivez e o espírito democrático do presidente Maduro.

Dificilmente isso ocorrerá, pois o cinismo e a veia antipopular e antidemocrática encontram-se no DNA das burguesias sul-americanas, que não escondem suas origens oligárquicas e escravistas.

Por outro lado, prevalece a indiferença entre amplos setores das esquerdas brasileiras, em relação ao que ocorre na Venezuela.

Infelizmente, se às forças conservadoras se pode atribuir uma mentalidade colonizada, parcela significativa das esquerdas também não escapa a uma reverência e a uma referencialidade exógena, especialmente eurocêntrica.

A América do Sul é tida como uma estranha e o Brasil, sabe-se lá porque, concebido como uma ilha, uma flor exótica em um continente cuja formação histórica, social e econômica é similar, incidindo em um presente dotado de importantes e convergentes dificuldades, como o legado primário-exportador das economias sul-americanas.

Pouco importam as célebres recomendações de pensadores latino-americanos de proa: Simón Bolívar, José Martí, Oliveira Vianna, Manoel Bonfim, José Carlos Mariátegui, Guerreiro Ramos, Darcy Ribeiro, entre outros.

Pensar o Brasil e o continente a partir das suas especificidades e necessidades não é prática política e intelectual das mais recorrentes. À direita e à esquerda.

Isso posto, o caráter revolucionário e democrático da experiência bolivariana, com seu nacionalismo, anti-imperialismo e distributivismo, é inegável. Mas, o momento político e econômico é demasiadamente delicado.

Por um lado, abre-se a janela a uma conciliação com setores conservadores, cuja implicação pode ser a retração de direitos sociais e certa submissão aos desígnios do grande capital e da política externa norte-americana.

De outro, a aceleração de medidas de nacionalização econômica, para eventualmente esquivar o governo do boicote empresarial.

A adoção de mais iniciativas econômicas nacionalizantes longe está de ser uma medida trivial, haja vista, por exemplo, restrições internacionais, que asseguram, junto à OMC, inúmeras garantias indenizatórias aos investimentos externos.

A cena internacional contemporânea diferencia-se bastante do período da Guerra Fria, em que um bloco socialista servia de alternativa às nações dissidentes do unilateralismo norte-americano do mercado.

Com efeito, não eram gratuitos os esforços de Hugo Chávez pela construção de fóruns multilaterais e alternativos nas relações internacionais. Na ordem mundial prevalecente, graves bloqueios e retaliações econômicas sempre assombram aos dissidentes.

Realmente, uma equação difícil para o governo e o povo venezuelanos, a quem cabem legitimamente as escolhas a serem feitas, sem ingerências de potências que desrespeitam o princípio da autodeterminação dos povos e se arrogam os senhores do mundo.

Em todo caso, após contínua, histérica e desrespeitosa promoção de um terrorismo midiático internacional, não seria exagero afirmar que a derrota eleitoral pode traduzir-se em uma vitória moral, nas atuais circunstâncias.

Assim, concluo com as palavras do pronunciamento do presidente Nicolás Maduro: “Com essa derrota, valeu a pena a dignidade, a transparência, a honestidade? Claro que sim! Estamos construindo uma nova sociedade, uma nova ética política, uma nova moral (…). Estamos construindo o socialismo do século XXI”.

As esquerdas e, principalmente, as nossas direitas golpistas e fascistas, têm muito que aprender com a Venezuela.

Roberto Bitencourt da Silva – doutor em História (UFF), professor da Faeterj-Rio/Faetec e da SME-Rio.

Publicado no Diário Liberdade.

 

Redação

11 Comentários

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  1. “Por outro lado, prevalece a

    “Por outro lado, prevalece a indiferença entre amplos setores das esquerdas brasileiras, em relação ao que ocorre na Venezuela.”

    Claro. Somente sendo um completo alucinado para defender Maduro e seu catastrófico (des)governo. 

    P.S. – Criticar Maduro não implica, de forma alguma, em defender Capriles e a horrorosa elite venezuelana, de longe a pior e mais predatória da América Latina (tem que explicar direitinho pros militontos entenderem)

      1. Não estou falando nenhuma

        Não estou falando nenhuma mentira.

        A militância petista se acredita “dona” da esquerda. Quem não defende Dilma, Maduro etc automaticamente é tucano, coxinha, direitista, leitor da Veja etc.  

    1. Em Cuba existe eleição, na

      Em Cuba existe eleição, na URSS exista eleição, ate na Coréia do norte existe eleição, Saddam Russiem foi “eleito”, na Alemanha Nazista existiu eleições etc..

       

        1. Perder ate perde, mas a

          Perder ate perde, mas a fraude corre solta.

          E as vezes não dá para sustentar o regime como foi na Birmãnia ou ” “Myanmar. Os socialistas perdem as eleições desde 1990 mas somente agora largaram o osso.

  2. Maduro não está em posição de cantar de galo

    Maduro reconheceu dignamente a derrota, mas é verdade que não está em posição de cantar de galo. De resto, essa história de conspiração empresarial-midiática é conversa. Quem tira a esquerda do poder, pela via eleitoral, é o mesmo povão que a colocou no poder, a partir do momento em que percebe que a fonte secou e as promessas não são mais cumpridas. O tal “pensar a América Latina” não passa de embromação intelectual que se esfrangalha em contado com a realidade: o modelo econômico dos populistas não funciona. A receita é sempre a mesma: raspar até o fundo do cofre para comprar o apoio do povão, e depois que o dinheiro acaba, baixar o cacete. Se não consegue implantar uma ditadura, a derrota eleitoral é certa.

    Nosso continente só vai sair da pobreza no dia em que parar de pensar a América Latina e começar a pensar o mundo globalizado, como fizeram os países da Ásia que eram mais pobres do que nós e hoje nos fazem comer poeira.

  3. Um pouco de Venezuela

    A América Latina como um todo, e é algo a se lamentar, passou por décadas de desmandos: com golpes militares de direita financiados pelos EUA e 

    Ocorre que a contrapartida, a alternativa ao modelo vigente, infelizmente, foram os governos populistas, ditos socialistas, que se instalaram por aqui. Não houve tempo suficiente para os países amadurecerem como democracias. Não foram preparadas as bases para que desmandos de lado a lado fossem evitados. O que tivemos aí, na verdade, foi meramente a inversão de pólos, que parece se anunciar novamente com essas eleições.

    Quem pensa que a Venezuela se resume a Chavez, Maduro ou o que eles representam, mostra, no mínimo que desconhece ou ignora história. Os seguidos governos militares títeres, a instabilidade política a Democracia mentirosa e interesseira que reinou desde a década de 60 e as figuras escolhidas a fim de manterem o status quo não podem ser ignoradas.

    O problema está em se analisar a situação olhando só os eventos imediatos, sem se ater aos pregressos. Não se jogue fora os desmandos e os interesses externos no país. A Venezuela, e exemplo em questão, como o pais com a maior reserva de petróleo do mundo não pode ser analisada com uma lupa, mas com um telescópio. Há muito mais em jogo que meramente a defesa da Democracia, por aqueles que consideram Chavez e Maduro como párias da humanidade faz evidenciar seu estrabismo e a miopia em analisar a história.

    E, lá como cá, a imprensa se encarrega de malhar diariamente governos que não são a ela simpáticos.

    O fato da vitória conservadora ocorrer por lá, evidencia que o chavismo, com seus inúmeros erros, era não muito mais que propaganda difamatória. A ditadura que muitos afirmavam existir por lá, talvez tenha que ser repensada.

  4. Maduro precisa entender que

    Maduro precisa entender que não se pode forçar democracia para proteger o estado do capital. A democracia tem que ser de direito, ou seja, com a escolha do povo! O que se pode, é se caso o capital esteja destruindo o estado de direito, ser processado pelos meios democráticos e constitucionais. Mas forçar a democracia é um atentado contra a própria democracia, por mais que o político tenha boas intenções para com a democracia e o povo. Entendo que há, no meio político e capital, há aqueles com más intenções, ou seja; aqueles que para ter algo em seu poder compromete o direito básico dos outros e portanto a democracia. Mas para isso temos os meios jurídicos e constitucionais, não necessitando tomar a força o que se tem por direito inalienável.

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