Protestos expõem crescente descontentamento contra presidente paraguaio

Enviado por José Carlos Lima Spin

Da Carta Maior

Paraguai: rebelião estudantil e descontentamento popular

O governo de Horacio Cartes, envolvido com narcotráfico e fraudes bancárias, eleito depois do golpe contra Fernando Lugo, enfrenta resistências populares.
 
Rafael Salinas

“O Paraguai é como uma mulher fácil e bonita, com a qual poderão fazer o que queiram. Poderão repatriar quase tudo o que ganharem, os impostos que deverão pagar serão mínimos, e sobretudo, não terão que arcar com o lastro dos sindicatos”. (Horacio Cartes, presidente do Paraguai, falando com investidores estrangeiros ao assumir seu cargo, Última Hora, 20/082013). 
 
“Usem e abusem do Paraguai porque este é um momento importante de oportunidades”. (Horacio Cartes falando com uma centena de empresários brasileiros, Última Hora, 18/02/2014)
 
“Uma vaca ou um cachorro são iguais a qualquer estudante”. (Froilán Peralta, reitor da Universidade Nacional de Assunção, Paraguay.com, 21/09/2015)
 
O Paraguai vive atualmente uma situação política que desperta sinais de interrogação sobre o futuro de seu narco-presidente, Horacio Cartes, e também do regime autoritário-policial que ele encabeça. Um regime que sua base política já não consegue dissimular nem a brutalidade, nem a corrupção.  
Isto começou há uns dois meses com um feito que nenhum meio de comunicação noticiou. Os estudantes do colégio de Salesianos, em Assunção, fizeram um enorme protesto. Normalmente algo assim não transcendia as paredes de um colégio ou uma faculdade. Mas agora esta faísca encontrou a quantidade necessária de pólvora que estava acumulada. 
 
O protesto foi crescendo cada vez mais, com ocupações e manifestações massivas nas ruas. Dos colégios de ensino fundamental públicos e privados, o incêndio passou para a Universidade Nacional de Assunção (UNA), a principal e mais atinga do país. 
 
Na UNA, em 22 de setembro, milhares de estudantes tomaram as 12 faculdades e os reitores ficaram presos até a noite, fechados em uma sala sem ar condicionado sob um calor de 40ºC. Antes que passassem mal, os estudantes deixaram que saíssem da universidade. Mas, ao sair, a situação piorou para eles, tamanha era a multidão hostil que os esperava com gritos de “delinquentes”, “canalhas”, “crápulas”, “ladrões”, “ignorantes”. Só uma intervenção de estudantes foi capaz de salvá-los de um linchamento durante a fuga. 
 
Froilán Peralta – veterinário, reitor da UNA e famoso por sua inspirada frase: “uma vaca ou um cachorro são iguais a qualquer estudante” – se salvou de ser capturado por não ter ido neste dia à universidade. Passou imediatamente à clandestinidade e logo abandonou o cargo, enquanto um juiz investiga seus roubos. 
 
Mais setores se unem aos protestos, o que demonstra um descontentamento geral 
 
O notável é que o movimento tende a prolongar-se depois do impulso dos secundaristas e da UNA e agora abarca também outros setores. 
 
Na segunda-feira 5 de outubro, houve grandes mobilizações de estudantes e trabalhadores da educação em Assunção em outras cidades, com manifestações, fechamentos de avenidas e ocupação do prédio do Ministério da Educação e Cultura (MEC). As principais reivindicações são aumento do investimento em educação para 7% do PIB e fim do autoritarismo e da corrupção educacional e estatal. 
 
Mas a história vai muito além. Uma pesquisa do Ibope-Paraguai de agosto deste ano revela que 64% da população desaprova o governo Cartes. Passados dois anos, o descontentamento crescente e generalizado com a quadrilha do Partido Colorado é arrasador… mas também afeta a falsa “oposição” do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), que tenta fazer o jogo. A questão é que em muitos casos, por exemplo na Universidade, há uma divisão negociada de cargos, privilégios… e oportunidades de roubar a quatro mãos, e aos liberais também toca uma parte. 
 
Este descontentamento generalizado – como dizíamos – tem um conteúdo político que objetivamente vai além dos “educadores” que consideram seus alunos vacas ou cachorros, e do escândalo de “professores” que cobram salários exorbitantes por sete cátedras que nunca cumprem. O movimento questiona potencialmente todo o cenário político, incluindo o presidente Cartes. 
 
As consequências de uma derrota
 
O atual governo é produto de uma derrota popular, o golpe “brando” que derrubou sem grande resistência o governo de Fernando Lugo, em 2012. Esta derrota se combina com os recursos de autoritarismo brutais dos aparatos políticos e estatais, herdados de décadas de ditaduras. 
 
Esta séria derrota política (agravada pela vergonhosa atitude de Lugo) e as ilusões semeadas em Cartes (que assume a presidência em agosto de 2013) abriram expectativas em setores da classe média urbana (cujos filhos iniciaram agora este movimento de protestos), mas também nos meios mais populares. 
 
Porém, o neoliberalismo selvagem e entreguista, encarnado por Cartes, burlou suas ilusões. Não trouxe nenhum benefício a estes setores, tampouco à classe trabalhadora. Cartes se orgulha em afirmar que o PIB do Paraguai, segundo estatística oficiais, havia crescido em 2014 a notável cifra de 4,4%. Mas isso – e muito mais – foi para os bolsos dos empresários, em grande parte estrangeiros, que aplicam ao pé da letra sua consigna: “usem e abusem do Paraguai”! A maioria da população não notou melhoras e está em uma situação pior. 
 
Os festejos pelos “êxitos” da economia na verdade provocaram raiva nos que não foram afetados com nenhuma fatia. Como acontece em boa parte do mundo, o “crescimento” econômico neoliberal arrecada uma distribuição cada vez mais desigual e polarizada. 
 
No caso do Paraguai – como temos visto recentemente também em Honduras – a raiva surge também contra a corrupção exacerbada de políticos e funcionários 
 
Uma alternativa política dos trabalhadores, da juventude e dos setores populares contra Cartes
 
As manifestações e protestos têm levantado exigências democráticas e econômicas, desde o rechaço ao autoritarismo, até a questão do investimento na educação (e seu saqueamento pelos colorados ou liberais). Isto é um grande avanço desde a situação de retrocesso e derrota provocada pelo ex-bispo!
 
Mas só isso não basta. Este primeiro passo exige seguir adiante… sob pena de retroceder. Há algo que poderão mudar em Cartes, que governaria até 2018 com a linha de que o “Paraguai é como uma mulher fácil e bonita com a qual poderão fazer o queiram”?
 
Hoje este governo desfruta de forte rechaço de dois terços do povo paraguaio. Há que lutar para que este repúdio generalizado, esse amplo descontentamento, se materialize em um movimento que dê uma alternativa política democrática. Isto tem dois aspectos principais: o primeiro é que Cartes se vá agora; o segundo é que o povo paraguaio decida democraticamente – por exemplo em uma Assembleia Constituinte imposta com mobilizações – se quer que o Paraguai siga submetido aos exploradores nacionais e estrangeiros, ou se é necessária uma mudança revolucionária.  
 
Neste panorama seria decisivo que a juventude e os educadores que estão se mobilizando se relacionem com outros setores da classe trabalhadora, que podem estar dispostos a lutar, como por exemplo os motoristas de ônibus. 
 
Transformar o descontentamento geral em mobilização da juventude e dos trabalhadores é o meio de acabar com Cartes e abrir uma nova perspectiva. 
 
Sem “o lastro dos sindicatos” nem sua “chantagem social” 
 
“A crucificação dos motoristas é uma chantagem social, pois apelam à compaixão para recuperar seus empregos… As empresas têm todo o direito de demitir seus trabalhadores”. (Guillermo Sosa, ministro do Trabalho. Jornal Hoy, 22/07/2015)
 
Já vimos como o presidente Cartes, ao assumir, prometeu aos capitalistas que no Paraguai “não terão que arcar com o lastro dos sindicatos”. Através, principalmente, do Ministério do Trabalho se aplica uma política de “terra arrasada”, na qual sequer são tolerados os sindicatos burocráticos. Cartes quer impor à força o modelo ianque de “open shop”; ou seja, fábricas e empresas sem nenhuma organização dos trabalhadores. 
 
Mas esta política também começa a ser contestada. Ainda que não seja de forma massiva, alguns casos já estão causando impacto. 
 
Em junho deste ano começou um conflito na empresa de ônibus La Limpeña, propriedade do deputado Celso Maldonado do Partido Liberal, que é “a leal oposição de sua majestade” ao presidente Cartes. 
 
As condições de trabalho são horrorosas. A jornada “normal”, sem pagamento de horas extras, é de 18 horas, os trabalhadores devem pagar os reparos dos ônibus que dirigem, a empresa sonega a contribuição para as aposentadorias, entre outros abusos. Finalmente fartos, os motoristas começaram a organizar um sindicato. A resposta do deputado foi despedir 57 funcionários. O Ministério do Trabalho se aliou, obviamente, ao setor patronal. 
 
Em meio a este retrocesso, e ainda sem as manifestações estudantis consolidadas, os trabalhadores despedidos resolveram chamar a atenção: se instalaram em barracas em frente à empresa e ao Ministério e seus dirigentes começaram a se crucificar (literalmente) semanalmente. 
 
Isto começou a ter certo impacto, inclusive internacionalmente. No final de agosto foi realizada uma marcha de solidariedade de diversos sindicatos até o Ministério do Trabalho. Ao se aproximar do prédio foram brutalmente reprimidos com cassetetes e balas de borracha. Como disse o ministro, ele não vai tolerar “chantagens”. 
 
Breve resumo sobre Cartes & Family Corp. 
 
A calamidade que foi o golpe contra Lugo deixou uma desmoralização e confusão política bem aproveitadas pela direita. Horacio Cartes foi “vendido” no “mercado eleitoral” como um “homem jovem” na política (ele se filiou ao partido em 2009). Era a “renovação” necessária que teria um “jovem empresário exitoso”. 
 
Igual a Mauricio Macri – com quem se parece em alguns aspectos, em primeiro lugar no neoliberalismo raivoso – Cartes deu o salto à política desde o futebol. Isso porque era presidente do clube Libertad, um dos principais do Paraguai. Isto lhe rendeu uma “popularidade” convenientemente vazia de definições políticas. 
 
Mas Cartes também tem uma trajetória “empresarial” peculiar. Ele e sua família pertencem a essa burguesia que tem peso relevante no Paraguai e em outros países latino-americanos. 
 
Assim, depois de estudar nos Estados Unidos, enviado por sua família – a concessionária  de aviões Cessna – o “jovem empreendedor” Horacio Cartes fundou, em 1989, a casa de câmbios Amanbay (logo Banco Amanbay)… que em meados dos anos 90 protagonizou uma fraude de US$ 34 milhões para o Banco Central. Por este primeiro “empreendimento”, Cartes esteve foragido por quatro anos, até que a Corte Suprema, bastante cúmplice, o ajudou. 
 
O negócio familiar dos aviões teve também seus rentáveis desenvolvimentos. Segundo documentos da DEA revelados pelo Wikileaks, os Cartes estão envolvidos em operações e lavagem de dinheiro provenientes de contrabando de cigarros e drogas nas aeronaves. Em 2000 foi capturado um dos aviões na fazenda Esperança, pertencente a Horacio Cartes, com 343 quilos de maconha e 20 de cocaína. Seu tio, Juan Domingo Vivero Cartes, passou seis anos detido no Brasil por narcotráfico. O sobrinho teve mais sorte: pousou na presidência do Paraguai. 

Tradução de Mariana Serafini

 

Redação

9 Comentários

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  1. O governo de Horacio Cartes,

    O governo de Horacio Cartes, envolvido com narcotráfico e fraudes bancárias, eleito depois do golpe contra Fernando Lugo, enfrenta resistências populares.

    Pensei imediatamente em Aécio, o helicóptero dos Perrela e as contas “da família” no Liechtenstein…

  2. “Esta séria derrota política

    “Esta séria derrota política (…) e as ilusões semeadas em Cartes (…) abriram expectativas em setores da classe média urbana” . Sempre a iludida e facilmente manipulável classe média… e se acham inteligentes.

  3. Narco presidente? Nossa,

    Narco presidente? Nossa, quanta coincidência com o golpe que estão tentando dar no Brasil! Viva o Helicoca do amigo do Aécio e os aeroportos em propriedades familiares.

  4. E os defensores do golpe tupiniquim que frequentam este blog?

    Vão dizer que é efeito colateral de uma decisão democrática. São patéticos, os de lá e os de cá.

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