Izaias Almada
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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Venezuela: Povo e Forças Armadas (II), por Izaías Almada

Na experiência venezuelana, alguns pontos de reflexão que possam nortear ou abrir uma trilha para a resposta de algumas das questões levantadas em relação às Forças Armadas em geral e as brasileiras em particular.

Foto Agência Brasil

Venezuela: Povo e Forças Armadas (II)

por Izaías Almada

II – O propósito

Meu velho pai, mineiro da Zona da Mata, na sua sabedoria matreira e de poucas letras, costumava repetir, em muitas das conversas que tivemos, que “tudo na vida tinha que ter um propósito”.

Ao pensar escrever sobre a Venezuela do século 21, para além dos motivos já expostos, lembrei-me do axioma paterno: qual seria, então, o meu propósito, o meu objetivo?

Livros e artigos já trataram do tema na tentativa de entendê-lo, de explicá-lo à luz de algumas teorias clássicas dos movimentos sociais e também das rebeliões militares latino-americanas, seja para aceitá-lo ou para criticá-lo.

A maioria dos livros conhecidos no Brasil, em sua cronologia, fala desse processo até o início ou meados de 2004, mas a Revolução Bolivariana tem avançado muito rapidamente em suas conquistas de caráter econômico, político e social. Nesse trabalho ao qual me dediquei, procurei avançar até o final do ano de 2005, início de 2006, na sua abordagem.

Desde então, os nossos jornais diários, rádios e emissoras de televisão, em sua maioria, têm procurado uma vez mais – em defesa de seus interesses corporativos e de classe, bem como no interesse de seus principais anunciantes – desacreditar as mudanças propostas pela revolução bolivariana de Chávez. No que foram muitas vezes, inclusive, acompanhados por pensadores e militantes de esquerda, diga-se de passagem.

Para além da vontade de conhecer o processo em sua plenitude, de tentar argumentar contra os eternos críticos dos que lutam por mudanças sociais, dos que escrevem teses acadêmicas distantes da realidade das ruas, dos preconceitos ideológicos, havia um ponto específico que atraía e ainda atrai a minha curiosidade até os dias presentes:

Que fatores objetivos e subjetivos teriam possibilitado a um grupo de jovens militares se colocarem decididamente ao lado de seu povo e defender, pelo voto e pelas armas, a sua incipiente democracia, na contracorrente desse neoliberalismo que se procura impor hegemônico pelas armas e pelo voto? Ao buscarem a independência econômica de seu país, a se levantarem contra a miséria, a ignorância e a exploração da maioria de seus compatriotas, numa atitude – se não original nas suas intenções – inédita quanto aos resultados práticos de sua ação?

Afinal, muito já se sabe da lavagem cerebral que os militares sul-americanos e não só sofreram e sofrem por parte das políticas específicas ministradas em cursos e estudos feitos em academias militares norte-americanas, em especial com a proposta que veio no bojo da “redemocratização” do continente (décadas de 80 e 90) e consequente imposição do neoliberalismo econômico, com uma de suas estratégicas decorrências: a “profissionalização” (leia-se empobrecimento) das Forças Armadas.

Em outras palavras: encerrado o ciclo de ditaduras que marcaram profundamente a vida política de países como o Chile, Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Peru, a própria Venezuela, na segunda metade do século 20, todas sustentadas por suas Forças Armadas, a política a se vender pelo tão decantado Consenso de Washington era a de que o progresso desses países se faria agora pelo retorno da democracia representativa, através do voto dos cidadãos, com as Forças Armadas de volta às suas missões constitucionais de defesa das fronteiras de seus respectivos territórios nacionais.

Enfim, que se recolhessem todos aos quartéis e que deixassem as questões políticas e econômicas para quem soubesse enfrentá-las, numa posição – a meu ver – preconceituosa, ofensiva e ingrata ao próprio estamento militar que possibilitou durante muitos anos que as elites oligárquicas desses países mantivessem os seus privilégios de classe.

A abertura política, os processos de anistia, a volta da liberdade de imprensa, o retorno às eleições “democráticas” em alguns países, a substituição do Estado fiscalizador pela economia de mercado, tudo deveria contribuir para o apaziguamento das consciências, do perdão incondicional dos contestadores e da punição de seus algozes e torturadores (o que não aconteceu no Brasil, diga-se a bem da verdade), do predomínio da sociedade civil (entendendo-se aqui o conceito de civil como sendo uma categoria superior, mais elevada) em substituição aos inúmeros governos militares (aqui entendidos como grosseiros, violentos, incivilizados), numa divisão maniqueísta e muito ao gosto de certo pensamento conservador, favorecedora de um preconceito que extrapolou o dia-a-dia da luta política entre as organizações militantes de esquerda e os governos militares que se alinhavam com os Estados Unidos durante e mesmo depois da vigência da Guerra Fria.

Ao preconceito ideológico, juntou-se também o preconceito de casta. O pensamento dominante dos arrivistas da social democracia brasileira, esquerdistas arrependidos e aliados agora à chamada direita “civilizada”, uma vez chegada aos cargos de mando em vários Estados e em Brasília, poderia assim ser resumido: “Agora que vocês já nos livraram dos comuno-terroristas, podem voltar aos quartéis e deixem a política em nossas mãos, o governo em nossas mãos, o Estado (suficiente) em nossas mãos, as eleições em nossas mãos, a liberdade de imprensa em nossas mãos. Em troca, cuidaremos para que eventuais exageros e zelos repressivos cometidos nos ‘anos de chumbo’ não sejam denunciados, investigados e sequer punidos”. Embora muitos desses “exageros” tenham sido insuflados, apoiados e desejados pela própria classe dominante civil, particularmente pela sua vertente ruralista, católico-fundamentalista, sua mídia conservadora e pelos donos do capital financeiro improdutivo, os banqueiros em particular.

O inimigo já fora contido, abatido e, apesar de muitas vozes de oposição se levantarem contra a “ditadura militar”, pela anistia, pela volta das eleições diretas, eram vozes de nova sonoridade democrática, de uma Nova República, de novos pretendentes ao poder político, muitas delas depuradas de seu “ranço” marxista-leninista, dessas teorias “pré-históricas” tão em desacordo com os tempos pós-modernos. Partes consideráveis do PMDB e do PSDB contam bem essa história.

Conquanto o preconceito tomasse formas e cores diferentes, consoante o momento político, o pano de fundo de toda essa disputa e falácia se mantinha incólume: os mesmos interesses que viabilizaram e sustentaram as chamadas ditaduras militares (com suas prisões, mortes, desaparecimentos, torturas, exílios) exigiam agora a redemocratização com eleições livres e o respeito aos direitos humanos fundamentais.

O encanto e o charme do neoliberalismo traziam a marca da modernidade e dos brandos costumes. E uma boa dose de corrupção, como se constatou logo nos primeiros anos da década de 80…

Assim, após a utilidade da ditadura (com os militares), a imposição da democracia e da civilização através de eleições (com os civis). Passava-se a ler pela cartilha do desenvolvimento econômico com maior participação do mercado em detrimento do Estado, baseado em instruções do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, em decisões da OMC e afins. Rumo ao Primeiro Mundo, foi a palavra de ordem, tão ao gosto das elites caipiras e antinacionais: modernas e democráticas. “Civilizadas”, agora sem a presença direta e incômoda dos governos militares.

O cientista social e escritor José Murilo de Carvalho, estudioso das Forças Armadas brasileiras, no capítulo de conclusão da sua obra Forças Armadas e Política no Brasil, escreve o seguinte à página 1972: “Mesmo excluindo a probabilidade de intervenções políticas, como redefinir o papel das Forças Armadas em regime democrático e em cenário de grandes mudanças internacionais?” (…) O fenômeno histórico dos Estados-nacionais, dentro do qual surgiram as modernas Forças Armadas, passa por rápidas mudanças. Torna-se difícil separar o que é interesse nacional do que é interesse de blocos, de áreas de comércio comum, de federações de nações. Reduzem-se os graus de liberdade dos governos nacionais.

Os Estados-nacionais, enquanto ainda estados e nacionais, têm que aprender a navegar nessas águas revoltas e incertas. Um ponto central dessa navegação tem a ver com o papel que se deve atribuir às Forças Armadas. Devem ser preparadas para a guerra externa? Contra quem? Contra vizinhos? Contra o Império? Devem tornar-se forças auxiliares das Nações Unidas na tarefa de policiamento do mundo? Devem dedicar-se a tarefas policiais de combate ao narcotráfico nas fronteiras e nas rotas internas? Devem preparar-se para o papel de guarda nacional para substituir as polícias nacionais em eventuais explosões de violência nas grandes cidades? Ou devem dedicar-se a tarefas sociais, como o combate à pobreza, ao analfabetismo, às desigualdades?(CARVALHO, José Murilo, Forças Armadas e Política no Brasil. Jorge Zahar Editor, 2005, Rio de Janeiro).

Nessas indagações, embora de espectro mais amplo e merecedoras de longa discussão para os interessados no assunto, julguei encontrar o meu propósito, ou boa parte dele: o de procurar na experiência venezuelana alguns pontos de reflexão que pudessem nortear ou abrir uma trilha para a resposta de algumas das questões levantadas em relação às Forças Armadas em geral e as brasileiras em particular.

Uma ousadia civil? Talvez, mas alicerçada na convicção sincera de que o caminho para o progresso, a independência e a soberania de uma nação como o Brasil de hoje começa, entre outras iniciativas, pela quebra de eventuais preconceitos e comportamentos de lado a lado e que não mais se coadunam aos anos que já nos separam da Guerra Fria, à satanização das questões ideológicas e muito menos aos novos desafios da humanidade no despertar de um novo milênio.

Desafios que passam pela sobrevivência da espécie humana e que têm muito a ver com a superação de um sistema econômico que se mostra esgotado e requer urgentemente a construção de suas alternativas.

O capitalismo em sua fase atual, neoliberal e globalizante, está superado, embora ainda vá viver durante alguns bons anos. Sobretudo agora com a inestimável ajuda do mundo digital e suas redes sociais. Ao pensar o mundo para nossos filhos e netos, há que se considerar toda e qualquer das alternativas a esse sistema perverso e desintegrador.

CONTINUA

Leia a primeira parte aqui.

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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