Izaias Almada
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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Venezuela: Povo e Forças Armadas (III), por Izaías Almada

O que podem fazer os povos pobres e desarmados em relação ao Império e seus asseclas? Alternativas existem, é claro. Não se pode cruzar os braços e entregar o problema aos céus

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Venezuela: Povo e Forças Armadas (III)

por Izaías Almada

III – As dificuldades

Na apresentação do livro A Esquerda Militar no Brasil (Ed. Expressão Popular, 2005), de João Quartim de Moraes, o professor de teoria política da UNESP, Paulo Ribeiro da Cunha, ao discutir a proposta do autor sobre a existência ou não de uma esquerda militar no Brasil, chama a atenção para o fato de que ainda existe um preconceito no tratamento dessa e de outras questões ligadas à vida castrense em nosso país.

Distante da vida acadêmica comecei a perceber, por essa e outras leituras, que os preconceitos existentes entre civis e militares não se colocam apenas no campo ideológico ou no exercício das atividades que possam ter os cidadãos, armados ou não, neste ou naquele campo de trabalho, nesta ou naquela função social, onde o confronto livro versus fuzil se me permitem o simplismo, adquire por vezes o contorno de um preconceito visceral entre as categorias sociais envolvidas.

Preconceito este, insisto, que não mais se justifica nos dias atuais, particularmente em países que buscam o seu desenvolvimento econômico, político e social em bases mais justas.

Nas atuais circunstâncias, e em particular na América Latina, serão louváveis todas e quaisquer iniciativas que procurem por uma integração entre civis e militares em defesa do país, de suas riquezas naturais, de sua gente e de sua soberania, hoje inteiramente entregue à sanha de um capitalismo cada vez mais devastador e apátrida.

Sobre o preconceito em nível acadêmico, diz ainda o professor Ribeiro da Cunha que, na retomada das pesquisas sobre os militares no Brasil, surgiram inúmeros novos trabalhos que coabitam com os já considerados clássicos, como a antológica História Militar do Brasil, de Nelson Werneck Sodré.

Essas novas obras pioneiras e fecundas em suas teses despertam polêmicas ao abordar determinados temas e frequentemente atraem contra si uma oposição crítica e por vezes reacionária: “Essa convivência dialética não é incomum nos meios acadêmicos e universitários, mas, muitas vezes, resulta em equívocos, podendo até mesmo refletir preconceitos ou desonestidade intelectual”.

Como, por exemplo, ignorar a existência de uma esquerda militar no Brasil, negar a existência da ditadura de 64 e dentro dela a prática da tortura ou ainda obstinar-se num confronto ideológico que insiste em perpetuar, quer à direita ou à esquerda, que militares e civis representam o bem e o mal conforme o ponto de vista assumido numa determinada questão. E, se o preconceito existe entre aqueles que fazem do pensar a sua principal atividade, por que dar ouvidos a um civil, não acadêmico, que tem a ousadia de invadir seara alheia, de tentar com algum cuidado “botar o dedo na ferida”?

Contudo, se as dificuldades existem, se o preconceito procura escamotear a discussão de temas mais sensíveis, isso não impede que as necessidades de vencer tais óbices possam ser levantadas por todo e qualquer cidadão que compartilhe o espírito da transformação e do progresso.

No mesmo livro de Quartim de Moraes, à página 22, o autor escreve: “Com o fim da ditadura, as Forças Armadas mantiveram ainda por alguns anos, em cumplicidade com José Sarney, a postura de ‘Estado dentro do Estado’”. Ao longo dos anos de 1990, porém, enquanto os dois ‘fernandos’ (Collor de Mello e Henrique Cardoso) sucateavam o Estado brasileiro, a burguesia logrou recuperar o controle político e, com a criação do Ministério da Defesa, o pleno controle institucional do aparelho militar… Mas o chamado retorno à democracia só foi efetivo no referente às liberdades públicas. Com efeito, no concernente à defesa da soberania nacional contra o rolo compressor do imperialismo estadunidense e de seus sócios, muitos militares, embora longe de serem de esquerda, situam-se à esquerda daqueles governantes neoliberais.

Surge aqui a ponta do iceberg, do meu “propósito” ou de parte dele, pelo menos. Militares, que, mesmo sem serem de esquerda, se situam à esquerda dos governantes neoliberais e seus fiéis amos ou servidores. Os patriotas, que com certeza não são poucos, os nacionalistas, defensores da nossa soberania, das nossas riquezas naturais, intransigentes no combate à corrupção e que – quero acreditar – constituem a maioria silenciosa dentro de cada uma das Armas.

Cabe aqui levantar, como curiosidade, uma questão para todos aqueles que, não afeitos aos embates cotidianos das questões políticas e ideológicas, militares ou civis, àqueles que combateram (ou ainda combatem) as ideias socialistas ou comunistas, pelas mais diversas razões. Aos que, por desinteresse ou mesmo ignorância, temiam o nivelamento social pela pobreza, que temiam a lavagem cerebral e o pensamento único, a obediência cega a um internacionalismo mal definido e dominado por uma nação poderosa como a União Soviética.

Aos que profetizavam a falta de liberdade de expressão ou, mesmo nas interpretações mais ingênuas e comezinhas, anunciavam que todos os cidadãos seriam obrigados a andar vestidos da mesma maneira, comerem a mesma comida e assistirem aos mesmos filmes e lerem os mesmos livros, dividirem suas casas e apartamentos com os mais pobres, em nome de uma ideologia imposta por um poder hegemônico, no caso estatal, o que era tomado como a falta suprema de liberdade individual em nome de um coletivo impessoal e repressor. Aos que temiam os gulags, as prisões e as torturas pela simples razão de discordarem ou de pensarem de maneira diferente, deixo aqui alguns pontos de reflexão, ingênuos, se quiserem, mas que mesmo assim merecem ser avaliados:

– No atual estágio de progressos e conquistas do capitalismo neoliberal e globalizante, está o mundo nivelado pela distribuição da riqueza acumulada ou em vias de?

– O que fazem as emissoras de televisão, o rádio, o cinema, as agências de notícias, a publicidade, os grandes jornais e revistas pertencentes a fortes grupos capitalistas, senão proceder a uma gigantesca lavagem cerebral que nos induz a um pensamento único de aceitação da ideologia que sustenta o próprio capitalismo?

– Por que tentam nos exigir agora uma obediência cega a um internacionalismo comandado por uma nação poderosa como os Estados Unidos da América, sob a ameaça de um poder militar que conta com armas nucleares, com armas de destruição em massa, químicas e biológicas, mas negadas àqueles que discordam do seu pensamento único, da “sua” democracia em particular?

– Por que temos todos que comer hambúrgueres e pizzas Hut, beber Coca-Cola, usar tênis Nike e assistir a filmes de terror e efeitos especiais ou ler best-sellers de sexo, drogas, corrupção e violência, onde os conceitos de humanismo e solidariedade mal cabem numa caixinha de fósforos?

– Como estão as prisões clandestinas ou não, espalhadas pelo mundo, onde se tortura em nome de uma democracia que se pretende única, verdadeira e insubstituível? Afinal que democracia é essa que espalha o terror e o medo pelo mundo?

– E daí?…Perguntarão alguns (ou muitos). E daí, insisto, é que tudo isso tem a ver com a sobrevivência da espécie. E do avanço da luta de classes, queiram ou não os pensadores dos novos tempos apocalípticos.

O modelo econômico em vigor, unipolar, está se esgotando. Ele explora o homem e a natureza e não oferece nada em troca. Vivem na pobreza ou mesmo na miséria 80 a 90% da população mundial. Subnutrida e em grande parte ainda analfabeta, sobrevivendo miseravelmente num mundo que privilegia cada vez mais o conhecimento e o saber, sem oferecer as oportunidades para conseguir esse saber.

As alterações climáticas e os desastres ecológicos, as destruições de florestas e as secas provocadas por essa destruição, o aquecimento global, o degelo das calotas polares, a paulatina destruição da camada de ozônio, o lixo atômico, a poluição dos rios, a desnutrição, o aumento da pobreza e a concentração da riqueza, a falta de empregos, o crescimento desordenado da população mundial, o desnível cultural, a profusão de doenças e epidemias, os fundamentalismos religiosos e o aumento da intolerância, a escalada da corrupção, a espetacularização da guerra e da violência, a banalização do sexo, num espetáculo degradante de ganâncias e egoísmos que só favorece os que se beneficiam de tal situação, como os grandes grupos econômicos dos armamentos, dos remédios, dos computadores, da informação, se quiserem, esses quatro cavaleiros revisitados do apocalipse bíblico.

O que podem fazer os povos pobres e desarmados em relação ao Império e seus asseclas? Alternativas existem, é claro. Não se pode cruzar os braços e entregar o problema aos céus, como “anunciam” falsos profetas religiosos em troca de dízimos.

Até prova em contrário, tudo indica que um pequeno e valoroso país, a noroeste da América do Sul, encontrou um caminho e se juntou aos que resistem. Um caminho que uniu o seu povo e as suas Forças Armadas. A Venezuela de Simón Bolívar, de Sucre, de Francisco Miranda. A Venezuela de Chávez e da Revolução Bolivariana.

A Venezuela de um povo que está aprendendo de verdade a perder o medo. A Venezuela que propõe um novo modelo econômico e a construção de uma nova sociedade para o século 21.

Nessa experiência arriscada e ao mesmo tempo corajosa, foi e tem sido decisiva a participação das Forças Armadas, cuja consciência em lutar pela libertação e autoafirmação de seu povo aflorou num cotidiano de injustiças e privilégios auferidos por uma oligarquia conservadora, racista e antinacional.

Consciência que permitiu levantes militares, alguns deles confundidos como sendo também tradicionais golpes de Estado entreguistas e impatrióticos, mas que – ao contrário – já traziam no seu bojo a semente de um movimento libertador sadiamente nacionalista, democrático e latino-americano.

O contra-almirante da Armada venezuelana, Hernán Grüber Odreman, que participou de um segundo levante depois de Chávez, em novembro de 1992, faz em sua obra Soldados, Alerta! um chamado à consciência dos povos ibero-americanos e suas Forças Armadas:

“Aos militares de toda a Ibero América, na ativa ou na reserva, vão dirigidas estas palavras: o destino de nossos povos está seriamente ameaçado por interesses que têm seu assento em algumas potências do mundo. Argumentos como os da globalização, soberania limitada, narcotráfico e terrorismo constituem a grande armadilha onde se pretende subjugar os nossos povos com o deliberado propósito de explorar nossas riquezas, convertendo-nos de fato em colônias.”

“Desgraçadamente, essas intenções de dominação têm sido facilitadas por alguns de nossos próprios cidadãos que, em funções políticas ou privadas e com o único propósito de se locupletarem, têm aberto o caminho aos novos colonizadores da América. Os mercadores dessa grande farsa invocam o fim da Guerra Fria para justificar o desmantelamento de nossas Forças Armadas e para que sejam convertidas em polícias de combate ao narcotráfico e ao terrorismo, porém debaixo da manga escondem a carta decisiva: neutralizar toda a oposição militar capaz de fazer frente às forças que um dia foram enviadas aos nossos territórios para salvaguardar os interesses de nossos credores e jamais, como alegam, para ‘restabelecer a ordem’.”

E conclui o contra-almirante Grüber Odreman: “Não permitamos que nos prendam em correntes de ignominiosa escravidão sem antes apresentar combate, nas tribunas ou nos campos de batalha, se assim for necessário, pois é isso que pedem a honra militar e a dignidade dos povos que nos confiaram a custódia de seus valores e mesmo a sua vida.”

Essa Venezuela, enfim, que tem hoje um novo conceito de suas Forças Armadas. Conceito que se reflete numa frase de Simón Bolívar e que o presidente Hugo Chávez costumava repetir em muitas ocasiões: “Maldito seja o soldado que ergue as armas contra o seu próprio povo”.

Diante, pois, de um propósito bem definido e sabedor das dificuldades de explicitá-lo da melhor maneira possível, e mesmo sem a certeza de consegui-lo, dediquei os últimos dez meses de trabalho e alguns anos de reflexão para não temer expressar publicamente uma convicção: a de que o Brasil só alcançará a sua soberania como nação democrática e socialmente justa, livre de suas enormes mazelas e vícios estruturais quando, ao contrário de 1964, povo e Forças Armadas se unirem numa outra perspectiva histórica e política.

Na conquista e na manutenção de uma democracia participativa e não representativa de uma oligarquia endinheirada, conservadora e submissa aos interesses estrangeiros; na administração de uma autêntica expressão popular e na defesa consciente de nossas riquezas humanas e naturais.

Leia a primeira parte aqui.

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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