2016: um golpe contra os fundamentos romanos e gregos do Estado brasileiro

Por Fábio de Oliveira Ribeiro

A esquerda tem considerado a privatização de empresas estatais, o aumento do juros, a interrupção de programas sociais e a revogação de direitos trabalhistas e previdenciários são os aspectos mais devastadores do golpe de 2016. Estas, porém, são apenas as consequencias do mal maior que se abate sobre o Estado brasileiro.

Desde que começaram a viver em comunidades, os homens perceberam a necessidade de fazer uma distinção entre o que é privado (afeto ao interesse do cidadão) e o que é público (interesse da cidade, do Estado). Na antiguidade esta separação era mediada pela religião, pois tudo que dizia respeito à comunidade tinha um aspecto religioso e isto se refletiu no Direito.

Os romanos classificavam as coisas (res) em duas grandes categorias: res in patrimonio e res extra-patrimonium.  As primeiras poderiam ser: a) res mancipi e res nec mancipi; b) res corporales e res incorporales; c) res mobiles e res immobiles; d) res fungibiles e res infungibiles; e) res divisibiles e res indivisibiles. As segundas poderiam ser : a) res humani júris (res communes, res universitatis e res publicae) ou b) res divini juris (res sacrae, res religiosae e res sanctae).

As res divini juris não estavam no comércio. Sacrae eram os objetos de culto. Religiosae eram os túmulos e cemitérios. Sanctae eram os muros e as portas da cidade. Referindo-se às res sanctae, J. Cretella Junior afirma que:

“Penas severas são cominadas  a quem desrespeita esses lugares.” (Curso de Direito Romano, 20ª. Edição, Forense, Rio de Janeiro, 1997, p. 167).

Os muros e as portas da cidade eram especialmente valorizados pelos romanos, pois da sua conservação e respeito dependia a própria existência da urbe e da civilização que ela representava. Roma foi invadida e saqueada por gauleses em 390 aC e correu sérios riscos durante a campanha de Aníbal Barca na península italiana. É, portanto, perfeitamente compreensível a preocupação dos romanos com o desenvolvimento do conceito de res divini juris e da proteção das res sanctae.

Estas distinções são mais importantes do que parecem, pois elas se refletiam ou deveriam se refletir na ação daqueles que estavam encarregados de governar e de julgar as condutas dos cidadãos. Estas duas atividades eram públicas, razão pela qual na execução delas o agente pública não poderia nem deveria se deixar influenciar pelos interesses privados. Aos romanos, portanto, não seria sequer possível imaginar a privatização das muralhas de Roma, pois elas eram Sanctae e aquele que tentasse vendê-las cometeria sacrilégio ficando sujeito a uma severa punição.

Em relação às res extra-patrimonium Religião, Moral e Direito se fundiam para garantir a predominância do interesse público sobre a ganância privada. O Direito Romano se espalhou pela Europa, chegou à Hispânia e à Lusitânia e de lá foi trazido para o Brasil. Ele é uma das pedras fundamentais da nossa civilização. A outra é a filosofia grega, que também preconizava uma distinção entre o público e o privado:

“Como el individuo pude sentir, según hemos demonstrado, afecto y amistad por sí mismo, se ha perguntado lo siguiente: ?el hombre virtuoso se amará o no a sí mismo? ?Será egoísta? El egoísta es el que lo hace todo en consideracíon a sí mismo, en las cosas que le pueden ser útiles. El malo es egoísta, porque todo lo hace absolutamente para sí mismo. Pero el hombre honrado, el hombre de bien no pude ser egoísta, pues precisamente es hombre de bien, porque obra en interés de los demás, y por tanto no puede tener egoísmo.” (Aristóteles, Los Tres Tratados de la Ética, La Gran Moral, Capítulo XV, Clasicos Inolvidables “El Ateneo”, Librería “El Ateneo” editorial, Buenos Aires – Argentina, 1950, p. 510) 

A Constituição Federal de 1988 descreve, define e delimita as nossas instituições públicas (Senado, Câmara dos Deputados, Presidência da República, STF, etc…),  instituindo como fundamento essencial do Estado a defesa da cidadania e dos cidadãos (de onde todo poder emana). Portanto, a CF/88 e nossas instituições públicas podem ser comparadas às muralhas de Roma: elas também são res extra-patrimonium.

Em razão disto, os agentes públicos concursados (juizes e servidores públicos), nomeados (ministros do STF e Ministros de Estado) e eleitos (senadores, deputados, etc…) não podem agir segundo seus próprios interesses. Ao realizar suas atividades públicas eles não podem ser pautados pelo egoísmo, eles devem obra “en interés de los demás”  como disse Aristóteles.

Não é isto o que está ocorrendo no presente momento. Os inimigos de Dilma Rousseff, muitos dos quais praticaram pedaladas fiscais quando eram governadores (caso de Anatasia, Aécio Neves, por exemplo), querem afastá-la do poder movidos pelo egoísmo. O mesmo pode ser dito dos senadores golpistas que estão sendo criminalmente investigados em razão da liberdade de ação dada pela presidenta do Brasil à PF, ao MPF e à Justiça Federal.  Os Ministros do STF que se recusam a impedir o golpe de estado também estão agindo em interesse próprio, pois é evidente que eles venderam suas consciências em troca de aumento salarial prometido e concedido por Michel Temer.

As muralhas de Roma garantiam a existência da urbe e não podiam ser violadas ou vendidas pelos romanos. As instituições públicas que deveriam defender a cidadania e os cidadãos brasileiros foram capturadas por interesses mesquinhos. A nossa principal res extra-patrimonium (o regime constitucional) está sendo estuprada e assassinada para possibilitar a privatização de empresas públicas, o aumento do juros, a interrupção de programas sociais e a revogação de direitos trabalhistas e previdenciários.

O maior problema do Brasil não é, portanto, o sintoma (a governança neoliberal implantada pelo interino)  e sim a doença (a destruição da natureza pública do Estado). Isto ocorreu justamente quando o egoísmo passou a condicionar a ação dos deputados, dos senadores e dos Ministros do STF durante o processo de impedimento de Dilma Rousseff. O fato da presidenta eleita pela maioria dos brasileiros estar sendo crucificada sem provas de corrupção e por pedaladas fiscais que sempre foram praticadas não é apenas um detalhe desagradável: é a prova irrefutável de que a nossa res extra-patrimonium foi transformada em res in patrimonio dos golpistas.

Resumindo, o Estado deixou de ser dos brasileiros e passou a ser coisa privada de um punhado de deputados, senadores, Ministros do STF e do vice-presidente que se impõe à nação como um tirano a serviço dos tiranetes que o levaram à presidência. Este golpe de estado horrendo está destruindo os fundamentos romanos e gregos sobre os quais o Brasil foi construído. Doravante não existirão cidadãos brasileiros, mas apenas servos e vítimas de uma tirania privada privatizante.

Fábio de Oliveira Ribeiro

10 Comentários

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  1. The Day After

    Muitos se perguntam sobre o que faria Dilma se o impeachment for parado e voltar ao Governo.

    Eu sugeriria a seguinte pauta (não necessariamente na mesma ordem):

    1.    Chamar a conversar ao povo (plebiscito);

    2.    Chamar a conversar aos partidos e ao Congresso – para definir uma pauta mínima até 2018. Montar uma nova base parlamentar e manter diálogo com ela;

    3.    Tacar fogo na Lava-Jato: Aumentar apoio para a PF e MPs. Oferecer ao Juiz Moro uma cadeia nova em Curitiba;

    4.    Criar uma comissão para iniciar uma reforma política – assembleia constituinte;

    5.    Criar uma comissão para definir uma agenda de emprego e renda: obras públicas com uso intensivo de mão de obra, por exemplo;

    6.    Temer: Falar para ele que não confia mais e pedir sua renuncia ou afastamento definitivo do Governo. Se ficar, que fique decorativo mesmo!

    7.    Desfazer muitas das agendas neoliberais feitas pelo Governo Interino, incluindo a recuperação de ativos da Petrobrás;

    8.    Criar uma comissão (pode até incluir ao Anastasia) para melhorar todos os assuntos que se prestaram para criar dúvidas sobre a Responsabilidade Fiscal e evitar novas surpresas no futuro;

    Seria bacana se pudessem agregar sugestões. Mas bacana ainda, se a Dilma ler.

    1. + sugestões

      – processar os articuladores por conspiração e tentativa de golpe de estado;

      – cassar concessões públicas de mídias golpistas que prestaram desserviço à sociedade…

  2. Olá Colegas. Se for dada

    Olá Colegas. Se for dada posse a Temer, será o fim da constituilção. Acabou. Não há mais razão para reconhecer o voto ou eleições como garantias do poder que emana do povo. Terá sido determinado que o único caminho é a desobediência civil e até mesmo a violencia, de lado a lado. O projeto de uma civilizaçao tropical está arruinado para neste século. Talvez o caminho seja a dissolução da república e a balcanização do Brasil.  

  3. O quinta-colunismo é

    O quinta-colunismo é escancarado .

    (perceba os olhares e as babações do Zé Chirico e do Michel Cunha de Marinhos)  

    Resultado de imagem para Kerry Serra Temer

  4. O impeachment não é um divisor de águas

    O Congresso não mudou. Sempre foi isso aí. Se mudanças houve, foram graduais e não drásticas.

    O texto dá a entender que o Congresso tinha um comportamento republicano até 2014 e passou a ter um comportamento egoísta a partir de 2015. Se é isso, essa mudança abrupta precisaria ser explicada.

    Vejo a guinada de outra forma. Parcelas crescentes do Congresso simplesmente não viram mais motivos para continuar apoiando o governo. Se até 2012, 2013, era conveniente, depois dessa data foi deixando de ser. Os fatores que contribuíram para tal mudança de direção são múltiplos. Vou listar alguns.

    a) maturação de projetos políticos próprios de ex-parceiros do PT de longa data que se cansaram de ficar em segundo plano – ex.: PSB, PMDB.

    b) diálogo difícil de Dilma com o Congresso.

    c) disposição de Dilma de dar rédea solta à Lava Jato.

    d) o desentendimento anterior com Eduardo Cunha motivado pela disputa em torno da nomeação da diretoria de Furnas.

    e) má gestão econômica, que produziu, inicialmente, desequilíbrio fiscal sem recuperar o crescimento e levou, depois, a um ajuste fiscal controverso e certamente impopular.

    f) acúmulo de denúncias de corrupção em seu partido, reais em sua grande maioria porém veiculadas seletivamente pela imprensa, fornecendo munição aos adversários e prejudicando ainda mais a popularidade do governo. 

    Antes e agora, o Congresso tem se movido por cálculo político. A partir do momento em que Dilma teve menos a oferecer do que Temer e Cunha, estava engatilhada a virada de mesa. Para que o presidente da República se veja nessa condição, tem de acumular um extenso passivo político contra si. Não é algo frequente. Aconteceu com Collor, depois disso tivemos o mandato tampão de Itamar e cinco mandatos presidenciais completos, antes de a situação se repetir com Dilma 2.

    Contudo, o articulista tem inteira razão em um aspecto, aliás, certamente o mais importante de todos. Está muito difícil enxergar, na atual safra de políticos, lideranças, partidos ou movimentos políticos fortes, que inspirem confiança. O pragmatismo no Legislativo sempre esteve aí, contribuindo a cimentar a governabilidade, a estabilização e a inclusão. Agora não se vê ninguém qualificado para assumir o leme e alinhar os pragmáticos em torno de um programa de governo que preste e se sustente.

     

    1. Esta é a sua maneira de
      Esta é a sua maneira de justificar o golpe de estado: a culpa é da vítima, o povo não é e não pode ser parte do Estado porque este é propriedade privada dos golpistas. Você também afundará na infâmia, meu caro. E não adianta tentar disfarçar. Se houver guerra civil não reclame quando sua casa for bombardeada: você pediu por isto.

    1. Se Brasil fosse tupi os

      Se Brasil fosse tupi os índios não teriam sido exterminados e certamente não seguiriam sendo molestados. Se fosse africano todos nossos presidentes seriam negros e um racista como Michel Temer não teria despedido o único negro que trabalhava no Palácio do Planalto. Pense mais antes de vomitar merda pela boca ou pelos dedos, meu caro.

      1. Perdido no mato

        Sua resposta asquerosa demonstra que você não tem resposta. Os centuriões continuam perdidos na floresta. Eles acham que venceram!

        Valha-me Deus, senhor São Bento! Buraco velho tem cobra dentro!

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