A democracia e Poderes na visão de Montesquieu para entender política atual

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Foto: Divulgação

Por Alberto Nasiasene

Não chegou até Montesquieu e ficou parado em Maquiavel 

Comentário à publicação “Sem um Estado forte, outro Poder mandará, por André Araújo

O autor do artigo confunde Estado forte, com executivo forte. No meu entender, erro crasso, em se tratando do mundo político democrático e constitucional em pleno século XXI. É preciso ir muito além de Maquiavel e, pelo menos, chegar a Montesquieu e o Espírito das Leis que define a tripartite separação de poderes que o Brasil incorporou em sua cultura política republicana desde o final do século XIX.

Importante ressaltar que o executivo no presidencialismo constitucional que vivemos há décadas, de modo algum pode ser comparado com o Príncipe de Maquiavel. Além disso, não se pode esquecer que Maquiavel, que viveu no século XVI, estava exilado de sua cidade Estado (coisa que não temos em nosso contexto), Florença. Portanto, esta história de homem forte de um Estado forte confundido com o poder executivo, só uma única vez se concretizou, no livro de Maquiavel. Entretanto, é bom não esquecer que este livro foi escrito para bajular a família Médici (os detentores do capital financeiro desta casa italiana que fizeram o mecenato que é parte do Renascimento e dois papas; afinal, os Medicis eram os banqueiros que finaciavam o Vaticano, que, na época, dominava territorialmente todo o centro da Itália e nada se parece com o Vaticano de hoje).

O preço que Maquiavel teve que pagar pela bajulação foi alto. A Itália só seria unificada em meados do século XIX e não como queria Maquiavel (evidentemente, séculos antes, numa Itália feudal e toda dividida em cidades principados e repúblicas cidades Estado, Maquiavel só tinha como referência Roma e Grécia antigas, porque os conceitos que fundamentam os atuais Estados modernos ainda estavam em gestação incipiente e iam muito além de Aristóteles e o mundo antigo redescoberto pelo Renascimento).

Portanto, utilizar o raciocínio de Maquiavel, passando por cima de séculos de desenvolvimento da teoria política, sem sequer chegar ao século XVIII e a Montequieu e Rousseau (muito menos ao século XIX e XX), é completamente anacrônico e ineficiente como referência teórica séria para analisar a atual situação política brasileira. Sem falar que é passar por cima das especificidades históricas da política brasileira desde a era colonial (que era governada pela Coroa absolutista portuguesa com suas especificidades bem distintas do que está escrito no Príncipe de Maquiavel). Mas muito conveniente para colocar lenha na fogueira de Savonarolas (que perseguiu Maquiavel e a família Médici e todos os artistas do Renascimento) que querem tomar o poder no Brasil para instalar mais uma ditadura monocrática que nem a ditadura militar aceitou (porque os militares udenistas que deram o golpe de 1964 eram tão anti getulistas que evitaram encarnar, em si mesmos, o que Getúlio havia representado para eles, um ditador pessoal e inventaram esta fórmula só existente no Brasil, uma ditadura militar, da corporação, não de um general em específico, mantendo as aparências de uma república presidendencialista com separação dos três poderes).

Ora, o conceito de Estado é mais amplo do que somar duas corporações em aliança política por meio de um executivo forte.

Há elementos de verdade empírica misturados com grandes equívocos de avaliação sobre as estruturas e conjunturas políticas atuais brasileiras. Podem passar despercebidos para quem não conhece um leque maior de referências teóricas políticas e se impressiona com a citação única, fora de contexto, de Maquiavel. Mas não quem tem um mínimo de formação historiográfica e em ciências sociais (ou em filosofia política) e não parou seu conhecimento teórico e prático sobre esta temática no século XVI e na europa mediterrânea.

O artigo destaca outras leituras possíveis, à revelia do autor, dentro de um diagnóstico semelhante, que vão muito além dos equívocos de percepção analítica do autor: o que precisamos é que os três poderes da República encontrem meios factíveis e práticos de restaurarem a harmonia dos três poderes que está rompida. Uma volta ao Espírito das Leis de Montesquieu é muito mais eficaz do que invocar um Príncipe que absorve os três poderes em um só, o executivo. Isto, por incrível que pareça, está mais para o que os ideólogos do golpe chamam de bolivarianismo. Tudo o que o Brasil não foi até 2014 e até o golpe de Estado parlamentar de 17 de abril de 2016. Os golpistas todos, desde os do judiciário, da polícia federal e ministério público hipertrofiados, como idetentifica corretamente o artigo, é que instalaram um movimento bolivarianista com as cores do verde e amarelo e declarações bolivarianas de um general que não sabe usar uma calculadora eletrônica e ainda se vale de tábua de logarítmos…

O STF tem que fazer o movimento contrário que levou ao golpe de 2016, para restaurar a harmonia, mantendo a independência de poderes, e o Estado de Direito, duramente atacado, inclusive pelos erros históricos do próprio STF (constituído de seres humanos falíveis, não de deuses do Olimpo). São as próprias intituições representativas do poder que emana do primeiro artigo da Constituição de 1988 que devem reconstruir a democracia seriamente ameaçada, evitando exatamente a ficção teórica de Maquiavel (que só ocorreu no livro dele, não na história concreta da Itália ultra dividida de seu tempo). Não precisamos de príncipe algum, mas de voltar ao Contrato Social de Rousseau e seu conceito de vontade geral (que não significa o somatório de vontades de uma sociedade, nem maiorias e minorias específicas dentro de um parlamento representativo porque a ênfase de Rousseau é na democracia direta e numa síntese dialética completamente avessa ao pensamento cartesiano linear de um general que usa tábua de logarítmo).

E o primeiro e grande movimento que se tem que fazer é respeitar o calendário político brasileiro que prevê que o ano que vem é o ano de eleições gerais, menos municipais. Livres, diretas e sob a vigências das regras da Constituição de 1988; sem golpismos jurídicos e ameaças inconstitucionais de intervenção militar. Faltam pouco mais do que três meses para chegarmos ao ano que vem que irá, finalmente, colocar de volta o chamamento ao primeiro artigo da Constituição de 1988.

Ao contrário dos oportunismos e fofismas dos golpistas de 2016, não vivemos em uma república parlamentarista, mas em uma república presidencialista, com separação clara entre os três poderes (que são independentes entre si, mas devem atuar em harmonia institucional e constitucional). A fonte primeira é última de todos os três poderes é o povo como diz o artigo primeiro da Constitucional. Todos os três poderes da república presidencialista brasileira são representavos da fonte original dos poderes. Portanto, o fortalecimento do Estado brasileiro passa necessariamente pela fonte primária dos poderes instituídos de forma representativa.

Quem tutela a Constituição de 1988 é o voto popular, como diz seu primeiro artigo. Não uma instituição à parte, como o exército (não é o exército que tutela a constituição, mas a constituição que tutela o exército). Muito menos, um príncipe, ou ditador pessoal que nunca poderá ser contundido com o executivo que engole o Estado (ainda mais neste século e num país complexo como é o nosso). Também não há tutelas do poder judiciário sobre a democracia brasileira, cuja fonte primeira é o interesse público, não interpretações e ações individuais deste ou daquele juiz, de primeira, segunda, terceira ou seja lá qual instância (nenhum deles está ali para impor sua vontade pessoal, de acordo com interpretações subjetivas muito elásticas que não estejam em conformidade estrita com o ordenamento jurídico brasileiro que não nasceu agora, mas tem uma longa história). Ninguém está acima da lei, nem abaixo dela, a começar pelos juízes e promotores. E o exército que não é a fonte original dos poderes da república (não consquistamos nossa democracia pela força das armas, mas do voto).

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

5 Comentários

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  1. O poder dominante passa por

    O poder dominante passa por grave  crise, no Brasil e no resto do mundo. A origem da crise é econômica, as consequências, naturalmente, são graves e imprevisíveis. A humanidade nunca produziu tanta riqueza e, ao mesmo tempo, tanta ganância. Nenhum sistema social fundado no voto popular sobrevive a tanta desigualdade. O exército é uma força que protege o poder dominante. A primeira vítima de uma crise é o povo, que, historicamente, paga a conta sózinho. Mas, desta vez, a conta pode ser tão alta  que não haverá Estado que dê conta.   

  2. Interessante

    Pediria ao dono do comentário, se possível, expor a visão de autores, digamos, mais contemporâneos, uma vez que os Estados já se modificaram um bom tanto.

  3. Excelente texto

    O grande sofisma atual de que o parlamentarismo seria melhor (menos corrupto) do que o presidencialismo é que deveria ser mais aprofundando e debatido com a sociedade brasileira. Mas a velha imprensa não faz esse papel. Ela esta muito ocupada com as intrigas do poder e suas oportunidades econômicas. Dependendo de como se passarão as eleições de 2018, quem concorrera, o perfil desses candidatos e o eleito, teremos então a proposição clara de mudança institucional, passando do presidencialismo para o parlamentarismo. Pelo que acompanho, tem muita gente no Congresso Nacional sonhando com essa possibilidade. Foge-se assim do importante que é recolocar, como aponta o texto, as instituições em seus devidos lugares e que possam voltar a funcionar constitucionalmente.

  4. O judiciário estupra as

    O judiciário estupra as palavras, estupra as leis, estupra a justiça. O executivo não governa, implode o Estado. O Legislativo é pior que o PCC. Tá foda.

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