A filosofia crítica da tecnologia, por Eliseu Raphael Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Neutralidade, democracia e novas resistências: a filosofia crítica da tecnologia

por Eliseu Raphael Venturi 

Vivemos envoltos em técnicas e tecnologias, embora nem sempre conscientes destas dimensões quando influentes em campos que não pertencem às altas tecnologias das ciências exatas, como, por exemplo, as ciências sociais, cujos objetos são tidos equivocadamente por naturais, e não tecnológicos também.

A Filosofia Crítica da Tecnologia¹ consiste em uma abordagem contemporânea dos problemas da sociedade técnica. É especialmente centrada em um humanismo do bem-estar (isto é, sem delegação de soluções a deidades), consciente dos riscos catastróficos que podem advir das tecnologias, mas, ao mesmo tempo, crente nas liberdades e progressos que podem resultar de seu uso adequado (não se trata, portanto, de uma crença irrestrita do progresso).

Compreende-se, assim, por tal filosofia, que o uso tecnológico possa depender do controle por meio de instituições sociais bem destinadas a tal finalidade, assim como submissão das técnicas a controles democráticos de design e desenvolvimento. É, assim, uma ética de responsabilidade.

Por meio da Filosofia Crítica da Tecnologia, ainda, compreende-se que a tecnologia não é isenta de valores – não é neutra – e, ainda, não é restrita aos valores próprios da tecnologia (eficiência, controle e  poder, por exemplo), mas, antes, emerge permeada de valores interligados em um estilo tecnológico de vida; ou seja, possibilita modos específicos de vida com diferentes mediações tecnológicas.

Para Feenberg, assim, o mito da neutralidade científica e tecnológica (que desconecta meios e fins, tecnologia e sociedade) leva a uma negligência que encerra o potencial político, porque se encerra a luta por melhores condições de vida e de direitos qualificados pela eficiência, o que é significativo em termos éticos – e, ademais, é o que demanda a intervenção democrática.

As tecnologias, ao contrário do que se acredita comumente, não seriam meras ferramentas, mas verdadeiras estruturas para estilos de vida diversos e possibilidades de construção de vidas boas, e seria, assim, prudente, em termos democráticos, assumir o espaço de escolhas humanas acerca do mundo social que se deseja criar e reproduzir, por meio de valores incorporados e a incorporar em estruturas técnicas. Situação esta que, certamente, demanda debates éticos intensos.

Veja-se que, por democracia, não se entende o princípio majoritário, ou apenas procedimentos baseados em mecanismos de democracia direta. Pode-se antever nas soluções de Feenberg uma dinâmica procedimental e material de produção de soluções sociais, com consideração de valores, direitos, práticas, expectativas e necessidades, como é corrente na ideia de democracia substancial e integral contemporânea, assentada em uma forte política de reconhecimento de  direitos.

A voz de diferentes setores influenciados pelas tecnologias e que desenvolverão sua diversidade de projetos de vida possíveis nas estruturas tecnológicas (em que se incluem política, economia e direito, deve-se reiterar) pode permitir dimensões que nem sempre os designers (inclua-se legisladores, julgadores etc.) tem como estimar em seus projetos.

Feenberg considera que enquanto os projetos de vida podem ser perpassados pela mediação do processo político para sua realização, tem-se a problematização da questão tecnológica como foco decisivo, mas não excludente de demais pautas, em torno a viabilização de modos de vida.

Tais questões, por sua vez, conferem significação real e concreta aos usos tecnológicos e seu potencial humano, social, ambiental, econômico e, portanto, também democrático, para muito além do seu reducionismo a uma neutralidade que redunda apenas em opressão, dominação, alienação e violação de direitos.

A abertura da esfera pública a campos considerados exclusivamente de peritos, amplas discussões com auscultação efetiva de pessoas envolvidas, condução de políticas públicas, transparência, são valores democráticos que podem auxiliar em tal processo.

Considerando-se que “a ação técnica é um exercício de poder”², diante de práticas tecnocráticas que sujeitam as pessoas via tecnologias (reprodução de condições de dominação potencializadas pelos meios técnicos), caberiam também novas formas e espaços de resistência ante designs fora de contexto e projetos prejudiciais aos usuários.

Sob o ponto de vista estratégico e tático de Michel de Certeau, Feenberg propõe resistências micropolíticas ante a gerência de sistemas. Em especial, sob o aspecto tático, é na vida diária dos subordinados-controlados que se abrem os ambientes tecnológicos, as expectativas e práticas de significação e, assim, a possibilidade de resistência a partir de posições ocupadas pelos indivíduos, cuja atuação, assim, pode pesar no design, configuração e reconfiguração dos sistemas e produtos e em sua recontextualização.

Há, assim, a partir da Filosofia Crítica da Tecnologia, um potencial democrático de resistência ante os mitos da neutralidade científica e tecnológica, assim como ante os danos da razão meramente instrumental, abrindo-se horizontes de valoração, controle e possibilidades de escolhas humanas. Trata-se, assim, de um referencial crítico e social das tecnologias, incluindo aquelas políticas e jurídicas, que tem se evadido de tais urgentes preocupações – mas que, por seus objetos e técnicas, estão completamente envolvidas na produção da exclusão social.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ FEENBERG, Andrew. What Is Philosophy of Technology? Disponível em: < https://aprender.ead.unb.br/pluginfile.php/125221/mod_resource/content/1/textos/coletanea_feen_ingles.pdf>. Acesso em: 08 maio 2018. p. 5-7.

² “[…] technical action is an exercise of power”; FEENBERG, Andrew. Critical Theory of Technology: An Overview. Disponível em: < https://www.sfu.ca/~andrewf/books/critbio.pdf>. Acesso em: 08 maio 2018. p. 49.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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