Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A filosofia do ressentimento em “Um Homem com Duas Vidas”

Um olhar tragicômico sobre o ressentimento. Com uma complexa narrativa repleta de flash backs onde memórias e fantasias se misturam (marca registrada do belga Jaco Van Dormael, diretor do filme “Sr Ninguém” de 2009), “Um Homem Com Duas Vidas” (Toto Le Héros, 1991) conta a história de Thomas, um homem que acredita que a sua vida foi roubada e, com a ajuda de um agente secreto imaginário chamado Toto, pretende vingar-se. Embora a constelação de afetos que formam o ressentimento (raiva, inveja, amargura e vingança) seja tratada pelo filme de forma leve e cômica, a complexidade narrativa que funde o passado com o presente levanta uma questão central: o esquecimento. Freud e Nietzsche deram respostas diferentes: para o pai da psicanálise o esquecimento negaria a chance de compreender o passado enquanto para Nietzsche era a única chance de nos libertarmos das garras do ressentimento. Além de levantar esse tema “Um Homem Com Duas Vidas” ainda vai conectar o ressentimento individual com o social ao mostrar como as memórias de um super-herói midiático se confundem com memórias e fantasias da infância.

O diretor belga Jaco Van Dormael  já é conhecido por esse blog pelo filme Sr. Ninguém (Mr. Nobody, 2009) onde o protagonista vê a sua vida como um gigantesco hipertexto com diversos futuros alternativos e luta contra os eventos aleatórios que podem interferir no livre-arbítrio das decisões.

Um Homem com Duas Vidas (Toto Le Héros, 1991) marcou a estreia do diretor em longa metragens. Situada em um futuro próximo, Van Dormael nos conta a história de um homem idoso chamado Thomas que olha para trás na sua vida através de uma espécie de fluxo de consciência construído por um complexo mosaico de flash backs intercalado com fantasias de como os acontecimentos poderiam ter sido diferentes.

O Filme

Tudo começa em um asilo onde vemos um velho tossindo e retornando para sua cama. É Thomas que acredita firmemente que a sua vida foi roubada por Alfred Kant, nascido ao mesmo tempo em que Thomas, e que supostamente teriam sido inadvertidamente trocados durante um incêndio no hospital onde estavam. Alfred teria roubado tudo dele: um bom nascimento, nome, educação, oportunidades, romance e a própria felicidade.

Mas a narrativa é ambígua e não podemos afirmar plenamente que essa troca realmente ocorreu já que o tempo inteiro as memórias e as fantasias se confundem. Suas memórias são constantemente pontuadas pelo personagem Toto (interpretado pelo próprio Thomas) como um agente secreto que busca investigar o enigma da sua vida e fazer justiça em cenas que lembram os antigos seriados policiais norte-americanos.

O ressentimento marca sua vida, muitas vezes com consequências trágicas para seus entes queridos. Ele trama uma vingança com a ajuda do seu herói imaginário Toto: matar Alfred – mas no final Thomas encontrará uma maneira criativa e surpreendente para retomar a sua vida.

Alfred cresceu em uma família rica, cheia de conforto e oportunidades que o tornará no futuro uma pessoa rica. Quando criança Alfred era arrogante e ridicularizava Thomas chamando-o de “Van sopa de galinha”. Filho de pais bem mais humildes, Thomas leva uma vida simples marcada pela morte do pai (um aviador que desaparece em uma missão comercial) e pelo desejo incestuoso pela sua irmã Alice – afinal, Thomas não a considera sua irmã de fato por acreditar ter sido trocado com Alfred no hospital.

O que é o ressentimento?

Um Homem com Duas Vidas é uma tragicomédia sobre o ressentimento. Uma vez definiram o ressentimento como quando você deixa alguém ocupar gratuitamente a sua mente. Não é um conceito da psicanálise, mas do senso comum: designa uma constelação de afetos negativos como a raiva, inveja, vingança e amargura. Caracteriza-se pela persistência da mágoa, a repetição da queixa. O outro que supostamente nos ofendeu ou humilhou domina a nossa mente e impressões que por vezes acabam parecendo mais grave do que a ofensa real que a gerou.

Mas o filme de Jaco Van Dormael parece ir mais longe: a complexa montagem da narrativa feita de flash backs e um mosaico de efeitos possíveis de tomadas de decisões em diversos momentos (efeitos que podem estar tanto na fantasia, na realidade ou nas memórias) dá uma impressão ao espectador que passado, presente e futuro estão ocorrendo simultaneamente. Nesse mosaico caótico montado pelo diretor há duas constantes que permanecem e estruturam a memória de Thomas: o desejo incestuoso pela irmã Alice e a música que o seu pai cantava para a família.

Nesse sentido, Van Dormael segue uma perspectiva freudiana. Além da descoberta do inconsciente e de que as ações humanas são motivadas por impulsos inconscientes, Freud rompeu com outro princípio caro para o racionalismo: a ideia de que evoluímos da infância para a maturidade, das ilusões infantis para a racionalidade responsável adulta. Para Freud o homem não passava de uma criança crescida. A vida adulta nada mais seria do que a recorrência de traumas e fantasias de prazeres infantis tão intensos que persistem no psiquismo, orientando para sempre nossas opções, sonhos e projetos pretensamente adultos e racionais.

Freud versus Nietzsche

O que está em jogo em Freud é o tempo e a memória como permanência. Daí por que o passado não pode ser esquecido, ele deve ser simbolizado, trazido à consciência para ser compreendido e o homem torne-se finalmente senhor de si mesmo.

Talvez por isso Freud tenha ficado tão distante da investigação psicanalítica do ressentimento, ao contrário de Nietzsche, o filósofo do ressentimento: todo o método psicanalítico primava em trazer o passado para o presente, enquanto para Nietzsche o esquecimento era a força que promovia a vida. Para Nietzsche, o indivíduo cai nas garras do ressentimento quando se mostra incapaz de esquecer.

Freud e Nietzsche foram homens do século XIX, de um espírito de época onde a questão do tempo e da memória passou a ser recorrente na literatura – Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust ou A Máquina do Tempo de HG Wells, por exemplo. Em um século onde a eletricidade, o motor e o magnetismo começavam a acelerar a vida urbana, o tempo começa a chamar a atenção exatamente pela sua escassez em um cotidiano onde a efemeridade é a marca da modernidade.

Freud quer recuperar do passado a cena do trauma no sentido que o filósofo Theodor Adorno dava ao tempo: o pensamento que aguarda a lembrança do que foi perdido para despertá-lo e o transformar em ensinamento. Ao contrário, Nietzsche via o passado como a maior ameaça para uma vida potente e vigorosa, de aceitar o mundo tal como ele é. Freud era um romântico e Nietzsche um modernista.

Um Homem com Duas Vidas está entre essas duas vertentes filosóficas: entre as divertidas cenas onde o protagonista revive o passado de forma sensível e poética e essas mesmas cenas que se transformam em vício e desejos interditados que envenenam Thomas transformando o presente em obsessão e ressentimento. 

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

1 Comentário

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  1. Parabéns pela sua crítica:

    Parabéns pela sua crítica: simples, concisa, elucidativa e que vai ao ponto. Só por ela dá vontade de assistir o filme. 

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