Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A linguagem da sedução do nazismo em “Hitler’s Hit Parade”

Quando assistimos ao documentário “Hitler’s Hit Parade” (2003) somos assombrados por uma estranha sensação de atualidade: uma sucessão de imagens de alta qualidade das décadas de 1930-40 de clipes de filmes de propaganda, desenhos animados, filmes musicais e vídeos caseiros que demonstram como a estratégia de comunicação Nazi criou as bases da moderna Publicidade e da indústria do entretenimento. Sem fazer comentários e apresentando apenas as imagens da época, o documentário mostra como o mal foi banalizado através de uma estética kitsch repleta de estereótipos de felicidade (mais tarde imitados pela sociedade de consumo dos EUA e irradiado para todo o mundo), a estetização e erotização da política por meio de celebridades, modelos sensuais e a fetichização dos uniformes. O documentário sugere que o nazismo não morreu – se transfigurou na moderna linguagem midiática.

Quando pensamos em documentários sobre o nazismo, vem a nossas mentes imagens impactantes do holocausto, trilhas musicais marciais, soldados em marcha e a figura de Hitler como um orador enlouquecido nos congressos do Partido Nacional Socialista.

Bem diferente, durante pouco mais de uma hora, Oliver Axer e Suzanne Benzer nos apresenta no documentário Hitler’s Hit Parade uma surpreendente visão do fenômeno nazi, uma catástrofe política que parece se originar de uma cultura pop, de um universo paralelo estranhamente reconhecível, cujo aspecto assustador é a sua alegre normalidade – artistas cantando em shows exuberantes, enérgicos números de dança, coristas sensuais sapateando e namorados em jogos amorosos surpreendentemente avançados para os costumes da época.

Dividido em seções como “Nova Vida” e “Sob a proteção da Noite”, os cineastas apresentam fragmentos da vida cotidiana alemã, um compêndio de clipes de filmes de propaganda, anúncios, desenhos animados, noticiários, musicais e filmes caseiros. Famílias felizes fazem seus piqueniques ao lado de modernas autobahnen (as highways alemãs) enquanto observam zepelins em cor prata, identificados pela suástica, flutuando em céus de azul profundo, pessoas reúnem-se em locais públicos para assistir televisão, mulheres bonitas experimentam meia-calça, artistas cantam e dançam e os líderes políticos exibem modelos em escala do mundo utópico que estava por vir.

Esses clipes de arquivos da década de 1930-40 podem facilmente ser confundidos com imagens do filme Isso é Hollywood (That’s Entertainment, 1974 – compilação de filmes musicais na comemoração dos 50 anos da MGM) com o mundo singular da fantasia cinematográfica, intercaladas com algumas cenas da realidade cotidiana, com crianças sorridentes e músicas com letras cheias de sentimentos nobres, saudades e desencontros amorosos.

A banalização do mal

Hitler’s Hit Parade foi estruturado para aproveitar ao máximo um sentimento estranho e mal-assombrado de atualidade para os espectadores: não há narração, nenhuma explicação – apenas os próprios cânticos que são anunciados com títulos estilizados. A dupla de cineastas não quis fazer um documentários detalhista e cronológico da cultura popular nazista (seus estúdios de cinema, distribuidores e artistas). Em vez disso, através de uma sedutora colagem de clipes pretenderam ilustrar o famoso diagnóstico da banalidade do mal da filósofa Hannah Arendt ao revelar facetas que foram esquecidas – recordamos o Reich de Hitler como um catástrofe histórica sem precedentes, mas Hitler’s Hit Parade sugere que os cidadãos alemães e suas distorções morais foram tão banalizados como uma ida ao cinema local ou uma canção popular no rádio.

Mesmo quando a realidade da guerra irrompia na normalidade cotidiana (soldados retornando da guerra com pernas amputadas e blecautes), tudo era neutralizado pelo otimismo da propaganda e de um discurso da superação semelhante à cultura atual de autoajuda: exemplos de superação de soldados com pernas mecânicas que se transformam em atletas, a temperança dos alemães que mantem a rotina na escuridão como se nada estivesse acontecendo.

Suásticas e uniformes da gestapo se integram nos cenários do dia-a-dia numa estranha normalidade, para o nosso olhar atual. A estigmatização dos judeus nos desenhos animados, lindas mulheres fazendo “sig-heil” e corpos de soldados alemães mortos rodeados de moscas fazem um caleidoscópio que lembra o atual efeito zapping do telespectador que confortavelmente na sua poltrona vê o desfile de imagens de morte e diversão na TV.

Uma estranha sensação de atualidade

A virtude de Hitler’s Hit Parade é mostrar como o Nazismo foi a base da moderna publicidade e propaganda e da indústria do entretenimento. O documentário faz lembrar a célebre frase do filósofo Theodor Adorno: “A humanidade preparou-se séculos para Victor Mature e Mickey Rooney”, dois atores canastrões da era de ouro de Hollywood. Parece que séculos de filosofia e sofisticação cultural preparam terreno para as suas próprias negações: a propaganda, a cultura kitsch e a banalização do mal.

Ao contrário dos estados terroristas modernos, as bases da cultura alemã estavam na sofisticada teatralidade, na influência dos artistas de Berlim em suas diferentes vertentes do modernismo e na vanguarda artística e intelectual da escola de artes plásticas da Bauhaus. Porém, ironicamente, como sugere Adorno, preparam o terreno para a propaganda e a estética kitsch: o apreço de Hitler à pintura decorativa, a canastrice dos cantores e atores dos filmes de propaganda, os sorrisos com maçãs do rosto avermelhadas que mais tarde seriam o modelo de felicidade estereotipada da publicidade norte-americana, o otimismo místico por futuros utópicos representados por maquetes dos clipes de propaganda. Tudo isso preparou o terreno da moderna sociedade de consumo. 

A estética Kitsch

Certa vez o escritor austríaco modernista Hermann Broch definiu a estética kitsch como “o mal com um sistema artístico de valores”. Talvez na cultura kitsch devamos buscar as origens da “banalidade do Mal” de Hanna Arendt. Por exemplo, o documentário mostra diversos filmes de propaganda onde Hitler era promovido como uma celebridade, ao invés de líder político: Hitler com seus cães na sua casa de campo, brincando com crianças, flagrantes dele ajeitando delicadamente o cabelo antes de um comício etc. E o idêntico script não só da propaganda política atual, como da promoção de celebridades em revistas como Caras ou em programas televisivos como TV Fama ou Estrelas.

A estetização inédita dos políticos como celebridades iniciada pela sedutora linguagem nazista banalizaria todo o mal e o horror do cotidiano que se seguiu: a celebridade e seria a prova de que todos nós poderíamos um dia vencer, e que as desgraças da vida seriam apenas obstáculos para tornar a nossa vitória ainda mais doce… Essa é a base ideológica de todo o otimismo fetichista e místico (o imaginário da autoajuda e da suposta força do pensamento positivo) que animaria mais tarde a indústria do entretenimento e a sociedade de consumo.

Se você perdeu uma perna na guerra, a maravilhosa ciência nazi está aí para te dar uma perna mecânica novinha em folha… isso não é nada. É apenas um degrau para a vitória!…

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

8 Comentários

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  1. Não há surpresa nenhuma. Quem

    Não há surpresa nenhuma. Quem conhece um mínimo de história da propaganda sabe que toda forma de propaganda e marketing posteriores a Segunda Guerra foram reestruturados pelos norte-americanos tendo como base as inovações introduzidas pelo “mago” Joseph Goebels. Em sua forma a moderna propaganda é toda nazista.

  2. O “sócio-alismo” é igual em

    O “sócio-alismo” é igual em todo lugar, o intuito é o totalitarismo, os alemães e hoje por exemplo os Venezuelanos acreditaram no liderda revolução.

    Muda só o nome nazismo para bolivvarianismo.

     

  3. Adoro!

    Quero dizer… Adorno tinha razão.

    Talvez não literalmente quanto as bases do pensamento, ou a criação de léxicos a serem acionados pelo ícone da vez. Porém,  o amaciamento deve ter sido parte da expectativa.

    Mas as ramificações de investidores que se desenvolveram em todo período ultrapassam qualquer fronteira nacional-ideológica. Infelizmente, o blá,blá,blá  parece ser atemporal. E não apenas no campo imagético destas camadas isolantes de significado , mas em toda busca tecnológica e de teorização dos diversos temas que vinham ganhando força com  a saída fantasiosa de cena das monarquias e as possibilidades especulativas que surgiam ao mundo recém industrializado.

    Claro que chamar a aderência  nazi-fascista de uma espécie de efeito bode expiatório das tendências, seria um eufemismo.

    Ou então,  um lapso nos sistemas morais milenares do oriente – Digo. Enterrados no fundo do Himalaia.

    Contextualizando nas paixões atuais da sociedade global – É o sujo falando do mal lavado.

     

     

     

     

  4. Só discordo de um ponto no

    Só discordo de um ponto no texto. O nazismo não criou a propaganda moderna, na verdade a importou dos EUA e a adaptou às condições culturais da Alemanha. A estética nazista (belo + pureza + higiene social + ostentação da superioridade = saúde racial) também não foi criada especificamente pelos alemães. Os criadores do racismo cientifico foram  Arthur Gobineau, Thomas Buckle e Louis Agassiz, cujas teorias foram empregadas por franceses, belgas e ingleses nas suas colônias na África e Ásia, produzindo exclusão, sofrimento e até guerras genocidas. Os nazistas importaram suas primeiras leis de eugenia dos EUA e aprenderam a construir campos de concentração com os Ingleses (que os utilizaram largamente durante a Guerra dos Boeres). É perigoso estudar o nazismo como fenômeno particularmente alemão desconectando a Alemanha do resto do mundo, como se os inimigos dos nazistas não tivessem feito coisas parecidas e até piores fora da Europa. 

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