A “meritocracia” é um status diferenciador entre pobres e classe média

Por ArthurTaguti
 
Comentário ao post “Desvendando a espuma: o enigma da classe média brasileira
 
Excelente reflexão Renato. Uma verdadeira aula.
 
Só queria acrescentar alguns pontos, que você e outros podem ou não concordar.
 
1) Nossa sociedade sempre teve duas classes sociais muito fortes: os “donos” (donatário, senhor de engenho) e o povão marginalizado. Como uma classe detém poder absoluto e a outra sente o poder do chicote, a classe média surgiu basicamente para funcionar de “equipe de apoio” às classes mais altas, tornando-se advogados, médicos, contadores, engenheiros, e por aí vai.
 
2) Por não deter os meios de produção (tal qual a elite), está mais perto dos pobres que dos ricos. É muito fácil amanhã eu estar na pindaíba, mas quase impossível um dia estar num jantar de gala da Fiesp ou da Febraban como um banqueiro ou industrial.
 
Assim, a “meritocracia” torna-se status diferenciador entre pobres e classe média, e esta se torna essencialmente conservadora, defensora dos mais abastados, pois a ela fora concedida “regalias”, “benesses”.
 
3) O que Marilena Chauí esquece de dizer, talvez por acreditar que há 10 anos vivemos governos “pós-neoliberais”, é que há tempos (desde a época de FHC) a classe média das grandes metrópoles (tal qual SP e RJ) enfrenta um processo não de proletarização, mas de recrudescimento do padrão de vida. 
 
O sujeito que hoje se casa e tem seus dois filhos em SP/Capital, vai procurar um apartamento no bairro que morou a vida inteira (vamos supor, Pinheiros) e encontra latas de sardinha a R$ 700.000,00, apartamentos de 3 quartos a R$ 1.000.000,00, preço proibitivo até para a classe média “tradicional”. Ao mesmo tempo em que ouve do pai que este estudou em ótimos colégios públicos e gratuitos, o sujeito procura o mesmo colégio privado que estudou a vida inteira, e encontra mensalidades batendo a casa de R$ 3.000,00, isto na Pré-Escola.
 
SP e RJ já figuram entre as cidades mais caras do mundo, comparáveis a NY, Londres, só que com um detalhe singelo: possuem Renda Per Capita muito, mas muito menor. 
 
4) Portanto, além da meritocracia, impossível retirar do contexto o fato de que o custo de vida e as condições de vida da classe média, nas grandes metrópoles brasileiras, estão chegando a patamares insuportáveis.
 
Tanto que os protestos de junho irromperam destas duas cidades, e se espalharam para o resto do país identificando não um problema regional, mas nacional.
 
Nesse contexto, não causa surpresa que a molecada da classe média – ao contrário do senso comum que sejam reacionários e defensores do Estado mínimo – pediram “Mais Estado”, na forma de investimentos em mobilidade urbana, educação e saúde gratuitos.
 
5) A meritocracia é uma ideologia ainda cara a classe média, mesmo a que engrossou o coro das ruas em junho, só que o processo de “empobrecimento” – que é o que ocorre quando o seu dinheiro não compra coisas que eram possíveis há anos, décadas atrás – leva os seus membros a pedir medidas que “aliviem” o seu custo de vida crescente, dando uma destinação adequada aos 27,5% de IR que é descontado todo mês do seu salário.
 
Assim, deixar de pagar colégio privado para os filhos, deixar de bancar planos de saúde com preços cada vez mais proibitivos, e a possibilidade de deixar o carro em casa para ir ao trabalho, importaria no restabelecimento de um status financeiro que a classe média vem perdendo lenta e gradualmente há décadas.
 
6) Existe espaço para um partido político, ou grupo político, que abrace verdadeiramente a bandeira do “Welfare State”. E, levando a discussão para um rumo adequado (ou seja, ganhando a discussão com a mídia, que de todo jeito tentaria desviá-la), é possível convencer a classe média a defender um Estado de Bem-Estar. 
 
A carga tributária para esta classe já é alta igual no Welfare, a tributação sobre os mais ricos não a prejudicaria, e mesmo que ficassem obrigados a eventualmente arcar com Imposto de Renda mais alto (na base de 40%), no final seus ganhos no orçamento seriam maiores, pois deixariam de pagar educação e saúde privados.
 
Os maiores entraves (e que entraves!) são a falta de grandes financiadores de campanha e apoio da mídia. Teriam que fazer o que o PT fez nos primórdios, com pequenas doações de pessoas físicas e apoio da militância.
Luis Nassif

7 Comentários

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  1. A espuma está mais embaixo

    A espuma pra mim está mais embaixo.

    Classe média (pequena burguesia) não é classe. Não tem a meritocracia como valor. Tem medo.

    Tem pouco, olha para trás (vê os pobres trabalhadores) e acha muito. Olha para frente (vê os ricos capitalistas) e se ajoelha.

    Se mérito fosse um valor seu, não engoliria pagar a taxa de juros que paga e ainda acharia normal um banco lucrar 4 bi no trimestre. Se isto é valorizar o mérito, esta classe já teria cometido haraquiri em massa.

    O que é valor? Algo que vale a pena lutar.

    Será que esta “classe” acredita que com trabalho e estudo (e menos impostos) todos os seus podem chegar lá (no clube dos billionaires)? Afinal, se não for para todos, não é valor. É falácia, engodo.

    Esta pseudo classe não acredita nisso, apenas usa este argumento para inibir a verdadeira classe (aquela que não tem nada a perder) de lutar. Do tipo, é só estudar que vc chega lá (medicina é só 5 mil p/ mês numa universidade particular)!

    Faz isto, porque enquanto existir alguém pior que ela, ela estará bem. Fazendo de conta que está assim por mérito. E estará melhor mesmo, é só olhar para trás! Aí mora um problema, estava bem melhor ontem (quando os pobres eram mais pobres, assim ela tinha muito mais “méritos”).

    Se olhasse para frente, e tivesse o mérito como valor, já teria dado um: alto lá aos billionaires! 

    Pergunta que não quer calar, como uma “classe” que tem o mérito como valor aceita que alguém tenha CEM MIL PORCENTO* a mais que a média dos seus?

    Acredito que lutaria contra isso. Não aceitaria que alguém pudesse ser tão melhor que a média daqueles que tem o mérito como valor e lutam diuturnamente para aprimorar seu desempenho.

    Com certeza, se perguntariam: será por mérito que eles tem tudo isso? Se é, por que nós, que batalhamos tanto, temos tão, mas tão pouco, comparativamente? Será que somos débeis?

    Mas não é este o questionamento que a classe média faz (e ñ faz por medo). O que ela questiona é o bolsa família dos pobres e os impostos que ela paga (que é igual ao dos billionaires, mas isto não é questionado).

    Mas tem lógica esse comportamento.

    – Se não tenho coragem para questionar como alguém pode ser tão melhor do que eu, o negócio é manter os pobres cada vez mais pobres, assim, mais “méritos” terei (- Viu como é bom batalhar na vida meu filho!).

    Triste sina de uma pseudo classe.

     

    * A diferença entre quem tem um patrimônio de 1 bi e quem tem de 1 milhão.

  2. Meritocracia

    “Meritocracia” é uma desculpa esfarrapada que alguns dão pra disfarçar o fato evidente de que a divisão dos quinhões da riqueza da sociedade em um sistema capitalista é intrinsicamente injusto. Usam dessa falácia pra fingir que a distribuição da riqueza da sociedade obedece uma lógica outra do que a mais pura e simples apropriação forçada.

    Não existe “mérito” algum que não seja o esforço pessoal de cada um, sua diligência, seu esmero, o suor que escorre de sua fronte. Ter tido a sorte de nascer em uma família capaz de bancar os estudos não é mérito. Estar no lugar certo e na hora certa pra aproveitar uma oportunidade, idem. E nem se fale em herdar bens e negócios da família!

    Mas não há como justificar as diferenças abissais dos quinhões que cabem a cada um apenas com o esforço pessoal. Ao contrário, os mais ricos são os que se esforçam menos! Ou será que algum rico trabalha quebrando pedras por 12-14 horas por dia e ainda perdem mais duas ou três horas pra ir de casa para o trabalho e vice-versa?

    Por isso, os “meritocratas” buscam por qualquer característica comum e exclusiva dos ricos que possam chamar de “mérito” e usar como razão justificadora das diferentes fortunas. E falham. Dizem que o rico “assume riscos”, “organiza o trabalho”, “toma a iniciativa de produzir”, “aumenta a produção” e “produz riqueza”, ignorando o fato de que o pobre que quebra pedra por 14 horas por dia assume riscos ainda maiores; é capaz, em grupo, de se organizar, e é quem efetivamente produz alguma coisa, já que o capital, sozinho, jamais produziu sequer uma tachinha.

    E todos esses argumentos nada mais são do que pura tautologia. Afinal, o rico só é capaz de organizar, arriscar-se, tomar a iniciativa, etc por ser, antes de tudo, rico!

    Quer dizer, ou o rico “merece” ser rico por acaso – por ter nascido numa determinada família, ou ter aproveitado uma oportunidade -, ou “merece” ser rico simplesmente por ser rico.

    Face ao fato de que o argumento da meritocracia é simplesmente insustentável racionalmente, restam duas opções ao “meritocrata”: ou ele simplesmente assume sua verdadeira face aristocrática e diz que o rico é um ser naturalmente superior ao pobre, seja por obra da natureza ou de alguma divindade, ou ele abandona toda pretensão de que existe qualquer tpo de “justiça”, e o “mérito” é simplesmente o quanto cada um pode tomar pra si segundo a má e velha lei da selva.

  3. Longa caminhada

    Uma eventual tomada de consciência desta natureza por parte da classe média brasileira seria necessariamente seguida de uma cisão entre ela e a classe rica em torno de um novo pacto tributário que viabilizasse a universalização de serviços públicos de qualidade e garantias sociais. Isto demandaria, entretanto, muita maturidade, paciência e resistência por parte dos mobilizadores desta mudança, pois mesmo com recursos suficientes a construção de um Estado de bem estar plenamente funcional leva longo tempo, tipicamente várias décadas. Enquanto isto, as pressões contra a redução das desigualdades seriam enormes. O IDH atual (2012) do Brasil é de 0,730. Alemanha, Coréia do Sul e Irlanda levaram mais de 30 anos para sair deste patamar em 1980 e chegar aos cerca de 0,900 que ostentam hoje. Não foi fácil por lá. Não será por aqui….

  4. Excelente

    Excelente discussão, argumentos, ponderações e provocações.

    Falar em meritocrascia com pontos de partida diferenciados de fato é uma falácia que precisa ser desconstruída.

     

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