Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A Química transforma-se em Alquimia na série “Breaking Bad”

Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes de diversos gêneros que exploram simbologias alquímicas de transformação como “Blue Velvet” de David Lynch ou “Beleza Americana” de Sam Mendes. Narrativas que exploram as possibilidades de transformações íntimas em nossas vidas através de elementos que tradicionalmente tomamos como negativos: caos, trevas e morte. Um professor de Química confronta a morte, o câncer e um vida fracassada por meio de uma jornada radical de redenção no submundo do narcotráfico. A metanfetamina azul se transforma na série em simbologia alquímica ao mesmo tempo de redenção espiritual e destruição de um mundo de aparências. Por isso, “Breaking Bad” também foi um “experimento sociológico”, segundo seu criador Vince Gilligan.

Dostoiévsky num deserto do Oeste dos EUA. Dessa maneira muitos críticos sintetizaram as cinco temporadas da série Breaking Bad: um professor de Química do ensino médio (Walt White) em um canto empoeirado dos EUA (Albuquerque, Novo México), labuta em seu desespero silencioso por saber que já é um condenado pelo câncer no pulmão. Com um filho deficiente físico e a esposa grávida, sabe que um possível tratamento o levará à banca rota. Junta-se a um ex-aluno rebelde (Jesse) para, com seus conhecimentos de química, fazer a metanfetamina mais pura do mercado do submundo das drogas, para ganhar muito dinheiro rapidamente e, assim, garantir a segurança financeira da sua família após a sua morte.

Tudo levava a crer que teríamos uma história tragicômica de um protagonista que pateticamente tentava salvar uma vida que falhara, mostrando que a existência é desprovida de qualquer sentido ou propósito. Mas as cinco temporadas mostraram que não era isso: a jornada de Walt White converteu-se numa épica batalha de transformação íntima onde um velho modo de vida baseado em aparências e farsas é levado ao caos para que o novo renasça, mesmo com o custo da própria morte.

As pistas já eram dadas pelo criador da série, Vince Gilligan, onde nos créditos iniciais vemos a tabela periódica estilizada e em movimento: mais do que Química, Gilligan abordou simbolismos da Alquimia – Breaking Bad tratou das possibilidades de dissoluções e transmutações em nossas vidas, encorajando meditações sobre como o poder das trevas, caos e morte, elementos tradicionalmente pensados de forma negativa, podem se converter em elementos positivos: agentes catalizadores de iluminações, novas ordens e vidas.

A simbologia alquímica

Gilligan explorou a imagerie do cinema alquímico presente em uma tradição de filmes como Blue Velvet (1986) de David Lynch, Beleza Americana (1999) de Sam Mendes e Sinédoque, Nova York (2008) de Charlie Kaufman.

Prática antiga que combina elementos da Química, Metalurgia, Matemática, Cabala, Gnosticismo, Magia e Astrologia, a Alquimia busca, através de sucessivas operações (Nigredo, Albedo e Rubedo), reproduzir as etapas de criação do cosmos físico pelo Demiurgo para redimir a matéria – elevá-la do estado da “ignorância” (como a pedra, por exemplo) para estágios superiores de “consciência” (como o ouro).

Portanto, toda Alquimia seria um complexo conjunto de práticas experimentais e místicas que simbolizariam os estados de transmutação da consciência: diferente de muitas linhas neo-platônicas ou cabalistas, a matéria não pode ser simplesmente transcendida ou desprezada. Ela deve ser redimida, transmutada por meio do caos e da morte.

Nas entrevistas onde procura esclarecer o processo de criação da série Breaking Bad, Vince Gilligan afirma que nunca levou Química e Matemática à sério na escola e se arrependia desse desprezo. Isso teria sido o principal motivador para o argumento da série, que o fez devorar revistas Popular Science e contar com uma especialista da Universidade de Oklahoma – leia “Breaking Bad creator Vince Gilligan answers fan questions”

Esse mix de fascínio, ciência popular e consultoria técnica parece confirmar como a cultura de massa com a sua subliteratura de HQs, magazines, filmes B, sci fi, horror e fantasia, acabou criando uma espécie de “sub-zeitgeist” esotérico-religioso que faz renascer arquétipos que dão uma leitura mística de fenômenos científicos.

Por que a metanfetamina é azul?

O primeiro exemplo é a cor azul da metanfetamina de Walt: Gilligan procurava uma cor para o produto que representasse o grau de pureza do produto que conotasse também a própria busca de redenção de Walt.  A consultoria técnica ponderou que se aplicamos uma cor ao produto, quimicamente ele se tornaria menos puro. Gilligan ignorou a evidência científica (para Gilligan a cor amarela que seria a quimicamente correta lembraria urina e vergonha) e optou pelo azul que simbolizaria pureza. Para reforçar, sua esposa chama-se Skyler numa referencia ao céu azul e a suas roupas da mesma cor.

Outro ponto interessante da imagerie alquímica da série é o câncer pulmonar de Walt. A palavra pulmão vem de pleumon (fluir, fluturar) provavelmente porque, ao contrário das outras vísceras, lançado à água o órgão flutua. Na tradição o esotérica, o pulmão está associado ao ar e a espiritualidade, o pneuma (a alma racional). Mais um simbolismo da redenção e transformaçãoo buscada pelo protagonista.

Além disso, temos o codinome escolhido por Walt para ser reconhecido no submundo do narcotráfico: “Heisenberg”. Sabemos que o físico Werner Heisenberg foi o formulador do conhecido Princípio da Incerteza na física quântica: quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem influenciá-la.

Esse codinome não seria mais perfeito para um protagonista alquímico como Walt White. Diferente do cinema tradicional onde o protagonista é “extrovertido” (tenta intervir e alterar o mundo) ou “introvertido” (contemplativo), no cinema alquímico o protagonista pratica a “centroversão”: a sua transformação íntima acaba afetando involuntariamente a todos ao redor (na série, em uma sucessão de mortes, tragédias e dramas familiares em cascata), num processo holístico semelhante ao sugerido por Heisenberg onde o observador não consegue ficar à parte do objeto.

As etapas alquímicas de transformação – spoilers à frente

A narrativa e as sucessivas temporadas de Breaking Bad parecem acompanhar os três estágios de transformação alquímica:

(a) Nigredo (enegrecimento): o caos primário da indiferenciação. Sob a influência de Saturno, Walt é melancólico em seu desespero silencioso. Nas duas primeiras temporadas, tal como os filmes noir dos anos 1940-50 não má mocinhos e bandidos, ninguém é o que aparenta ser: Rank, o cunhado de Walt e investigador da Departamento de Narcóticos da Polícia, por trás da sua aparência de superxerife, é inseguro e busca reconhecimento e promoção encobrindo seus problemas conjugais; um cidadão benemérito da polícia local na verdade é um narcotraficante implacável e cruel (Gus Fring); Skyler trai Walt com um antigo amante etc.

A melancolia de Walt só poderia ser atraída para o submundo e para um personagem loser como Jesse: no cinema alquímico, personagens como o do Estrangeiro (aquele que possui uma relação de estranhamento com sua família e cidade) sempre é atraído para o submundo – o protagonista vê que a única forma de redenção é mergulhando no caos para redimir a matéria.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

11 Comentários

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  1. Assistam!

    Uma das melhores séries de TV de todos os tempos! Daquelas que fazem história e mudam o patamar de qualidade da TV.

    Assistam a jornada de Walter White e não se arrependerão!  Garanto!

  2. Quebrando tabus

    Wilson, gosto muito de suas analises sobre filmes e séries. Nessa aqui não concordo que personagems “losers”, como os considerados “estranhos” sejam sistematicamente atraidos para o submundo. O personagem de o Estrangeiro de Camus, por exemplo, não era atraido para o submundo, apenas ele estava muito distante do pensamento mediano, muto aquém do mundo de aparências e normativo, assim como Watt, apos sua  reconversão.  O qual, alias, não considero fracassado porque não se tornou rico ao passar dos 40 anos. Mas é claro que nessa nossa sociedade uma pessoa assim é logo considerada marginal. 

  3. OFF: Ex. da atual qualidade da arte dramática das séries de TV

    É ponto pacífico que Peter Dinklage tem levado a arte de interpretar a um outro nível em Game Of Thrones. A cena em que a personagem Oberyn Martell se oferece para ser o “campeão” de Tyrion Lannister no julgamento por combate com a personagem Gregor ” The Mountain” Clegane (“The Mountain” é irmão do “Cão de Caça” e tem o apelido por causa do seu tamanho) está nos anais da arte dramática. Uma das melhores cenas da quarta temporada, recém finalizada. Brilhante também a interpretação do ator chileno-americano Pedro Pascal, que interpreta Oberyn Martell, da região de Dorne, um nobre, como Tyrion, que se oferece para lutar por ele, buscando vingança pelo que os Lannisters fizeram com a sua irmã e os filhos dela no passado. Segue vídeo da cena, legendado em espanhol:

    [video:http://youtu.be/uZAzMzBB9RI%5D

    Só ator fera. Cena do caralho essa. Tem de tudo: marcação de texto, pontuação das emoções, conflitos de interesses, tudo num crescente até atingir o seu clímax. Peter Dinklage e Pedro Pascal, sem dúvida, dois dos melhores atores do mundo hoje. Que me desculpem os atores brasileiros, mas não tem um ator sequer desse nível hoje no Brasil. Os caras estudam arte dramática. O que Dinklage e outros fazem em Game Of Thrones é um assombro. Dinklage é um fenômeno da arte de interpretar. Um anão que atua como um gigante. Absolutamente sensacional.

  4. Breaking Bad é ótimo

    Gosto dos conflitos morais de grande intensidade veiculados pelo roteiro. Ao lado de Game Of Thrones, era uma das melhores séries dos últimos tempos.

    Game of Thrones também é muito bom, ótimas interpretações, um roteiro excelente baseado na série de romances épicos de George R. R. Martin, As Crônicas de Gelo e Fogo, no título no Brasil, que escreveu alguns episódio da adaptação para a televisão. Não assisti ao último 24 Horas, que foi a série televisiva que revolucionou o gênero dramático a partir de 2001, uma das mais bem produzidas e inovadoras séries de todos os tempos, em muito, incompreendida por parte dos críticos. O fato é que 24 Horas é pauleira, do início ao fim. Assisti a alguns episódios de Homeland, que me pareceu ser uma boa série também.

    No entanto, Breaking Bad foi um salto além, absolutamente desconsertante. O roteiro é desprovido da obrigação de proceder a certas convenções morais impostas pelo stablishment comercial da televisão, especialmente da televisão americana, e isso é sempre belo e moral. Os dramas vividos pelas personagens e a crueza das cenas falam por si mesmos.

    De resto, as séries de televisão atingiram um nível de qualidade que hoje têm sido referencial em termos de arte cinematográfica, ao ponto de colocarem o cinema tradicional visivelmente em segundo plano. Isso porque a experiência que elas propiciam ao telespectador equivale a uma extensão da experiência cinematográfica existente nos filmes de longa metragem tradicionais, sem necessariamente impor um desgaste. Ao contrário, as séries de televisão têm conseguido manter o interesse e a atenção mesmo quando veiculadas por vários anos consecutivos e, a bem da verdade, deixam saudades quando terminam, a exemplo de Breaking Bad.

    Hoje, eu não tenho a menor dúvida em afirmar que as séries de televisão são o ponto alto da arte cinematográfica, muito à frente do cinema contemporâneo.

    1. Série

       

      Dê uma olhada em “The Knick” no HBO.

       

      Um médico ranzinza, grosso e drogado. Não é House.

      Cidade de New york. Ano 1900.

      Hospitais sem energia elétrica, sem antibióticos, sem raio-x, sem equipamentos….

      A moral dos personagens tão ou mais precária…

      Subornos, chantagens, trapaças…

      Deve estar no epiśodio 5. Sextas-feiras novo episódio.

  5. Genial

    O que mais gosto no seriado são os dramas, os dilemas “shakespeareanos de Walter White. Não existem mocinhos nem vilões, cada um com suas razões. A reviravolta que o personagem dá ao longo da série é assombrosa, BB já virou um referencial pop a altura de Scarface, Pulp Fiction e outros.

    Outro ponto forte é retratar bem essa cultura estadunidense do salve-se quem puder. Virou moda bater no “american way”, haha.

    Existe uma piada em que, se Breaking Bad se situasse no Canadá, Walter White seria um professor primário satisfeito e respeitado na vizinhança, e ao se descobrir com câncer, trataria-se na rede publica de saúde do país, e curtiria ao máximo os últimos dias junto com a família. FIM. Haha

  6. A melhor série de televisão

    A melhor série de televisão da galáxia em todos os tempos. Não vi “The Wire” da HBO tida como a única a ombrear BB, nem tenho grande conhecimento sobre a televisão do Turguenistão ou da Armênia. Ainda assim como BB não tem.

    Bryan Cranston tem a melhor performance que eu já vi de um ator. Comparável, e mesmo superior às grandes atuações de Brando.

    Spoiler: numa cena em que ele assiste a morte, sem interferir, de uma personagem, ele é capaz de passar todo o horror daquilo vê e daquilo em que ele está se transformando (Heisenberg) sem dizer uma palavra. As 3 primeiras temporadas são simplesmente colossais.

    Aaron Paul se sai extremamente bem com um personagem repensado às pressas, já que foi imaginado matá-lo ainda na primeira temporada. Na terceira mesmo um pouco fora da curva, Paul dá show. Assim como todos os outros. Dean Norris, como Hank está esplêndido. Anna Gunn chegou a ter que escrever um divertido artigo no Times chamado “Eu tenho um problema de personagem” em que avaliava a raiva que as pessoas sentiam de Skyler (The Bitch). Betsy Brandt, como a irmã cleptomaníaca de Skyler é sublime.

    A fotografia, a direção, o roteiro, tudo. BB mostra como o audiovisual americano está décadas na frente de qualquer outra coisa feita no mundo. Um século em relação às baboseiras brasileiras.

    A série completa está no Netflix. Vale a pena gastar pelo 20 reais por mês para vê-la. Eu comecei a assistir BB quando passou pela primeira vez ainda no canal Sony, depois passando para o canal AXN. A série conquista de cara. O piloto é considerado o melhor já feito.

    Eu fiquei tão fascinado pela série que cheguei a acompanhar outras séries que naturalmente não veria só porque tinham atores de BB. Ah! Não posso esquecer de Bob Odenkirk, o advogado safado Saul Goodman, que terá uma série própria chamada Better Call Saul e que também está na série Fargo, baseado no filme.

    Espero que existam outros BB Tarados aqui pelo blog.

    1. Spoiler

      Nada a ver essa implicância com a Skylar.

      O cara vira traficante de drogas na surdina, arrisca a vida dela e dos seus filhos, queriam que a mulher fizesse o que? Desse pulos de alegria?

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