A violência da PM e o “fora Temer” como indignação pela liberdade de expressão

A racionalidade da violência da PM e o “fora Temer” como indignação pela liberdade de expressão

por Sérgio Reis

As imagens sombrias do final do histórico protesto em São Paulo fizeram lembrar cenas distópicas de filmes de ficção científica como os da pentalogia “Exterminador do Futuro”. O breu, intermitentemente iluminado pela luz branca e fria de helicópteros frenéticos; as bombas e decorrentes explosões, quase indistinguíveis, pela potência, se mais próximas ou mais distantes; as forças robóticas, com seus escudos e armas. A questão, é claro, é que tais forças aqui no mundo real são humanas – e, ao que consta, boa parte de seus equipamentos é “não-letal”. Mas seu caráter impassível, gélido e indiferente e o decorrente terror que geram nos fazem lembrar de exemplares de autômatos modelo “T-1000”.

Os vídeos e os relatos de quem participou do ato são unânimes: o protesto foi pacífico, e a atuação da Tropa de Choque da Polícia Militar, absolutamente casuística. Por sinal, não há registro algum de provocação prévia e ostensiva por parte dos manifestantes. Não há. Apenas se vê bombas e mais bombas jogadas, indiscriminadamente, em jovens, idosos, crianças e, sim, em estabelecimentos comerciais – aqueles que a imprensa costuma defender como se fossem bebês recém-nascidos atacados por hordas bárbaras. Sim, também a propriedade privada foi atacada pelo Choque, embora, ao que se saiba, ela não provocou a priori tais forças repressivas. Aguardemos os vídeos para comprovar a hipótese.

A truculência da polícia realmente chama a atenção por sua aparente bestialidade e, é claro, por sua eloquente falta de isonomia. Em um protesto com 150 mil pessoas, é evidente que sempre poderá haver um ou outro cidadão inconsequente – para não se dizer imbecil – capaz de inflamar um agente policial. Não é nem preciso que haja infiltrados para tanto. A espécie humana é vária e complexa, sempre capaz de nos surpreender. O ponto é que, para todos os efeitos, a atuação de forças tão poderosas de controle deve ser pontual, exatamente em virtude de sua força e em razão de lidar com grandes aglomerações humanas – quando sabe-se, há séculos, que o comportamento das massas pode se tornar irracional e irrefreável em situações-limite. Lida-se aí com situações delicadas. Mas a delicadeza, por assim dizer, é um grande calcanhar-de-aquiles das tropas de Alckmin.

Imaginem se, em um jogo de futebol em um estádio lotado, um sujeito desequilibrado qualquer resolve arremessar um sapato em outrem – quem sabe em um soldado integrante da equipe de segurança, e inicia uma confusão. Agora imaginem o Choque entrando no estádio e expulsando, com balas de borracha, tiros para o alto, bombas de efeito moral e artefatos com gases lacrimogênio, os 80 mil torcedores que, até então, cantavam seus cânticos pacificamente. Deve ser desesperador, desproporcional e, possivelmente, pouco inteligente. E parece ser essa a tática adotada em determinadas manifestações.

Parece algo irracional, e talvez seja, em certa medida. É difícil olhar para as imagens e não constatar a vocação eminentemente autoritária dessas forças, que não possuem a menor predisposição para o diálogo. Também é pouco sofisticada a sua incoerência, consubstanciada no trade off bombas versus selfies (muitas vezes com quem, vejam só, deseja justamente a “intervenção militar”). Mas é evidente que a postura “despreparada” é funcional: 1) passa a mensagem de terror para quem participa dos atos, como um “desconvite” a que prossigam com os protestos; 2) passa a mensagem de força, de resistência e de preservação vigorosa do patrimônio público e, principalmente, da ordem, para o cidadão-de-benz que assiste à GloboNews.

Mas a equação proposta pelo status quo não gerará equilíbrio. E a questão instável, no caso, não é a de que “violência gerará mais violência”, pura e simplesmente. Isto é, não há que se prever que os próximos atos contenham manifestantes mais “raivosos”; pelo contrário. Definitivamente, não é esse o espírito da insatisfação posta. A violência “racionalizadora” tenderá a vir, na verdade, da própria Polícia Militar, caso permaneça sem freios. É sua vocação. É para isso que foi criada: para acabar com o problema encerrando-o em si, eliminando-o fisicamente. Apenas soluções excepcionais podem frear esse entendimento. Foi o que ocorreu em 2013, quando uma irrupção humana sem precedentes chocou o Choque – e a própria sociedade e a classe política. Tratou-se de um fato expressivo o bastante para redefinir, naquele momento, a própria aceitação dos setores médios ao ato de se manifestar – o que lhes permitiu inclusive ir às ruas, como novidade experiencial, em 2015 (e, agora, consumado o feito, voltam a definir os protestos, com suporte dos meios de comunicação, como hábitos de vândalos, curiosamente).

Esse diagnóstico precisa se apoiar em outra noção, de caráter político: é preciso ligar os pontos que associam quem está no poder e por que as forças repressivas atuam com tamanha violência. Não se trata de uma correlação espúria.

É em face de tais aspectos não se é possível advogar a ideia de que a democracia está plenamente assegurada. Não está. Se se parte do pressuposto de que ela ficaria “mantida”, sem risco de violência, caso os insatisfeitos ficassem em casa, então talvez teríamos “paz”, mas não “democracia”. E, jamais, teríamos isonomia, esse conceito revolucionário do século XVIII – agora, aparentemente, um ativo escasso. Simples de entender o porquê, se lembrarmos dos neonazistas tranquilamente acampados em frente à FIESP e ao Congresso, às vésperas da votação do Impeachment na Câmara, impunemente.

Então, a resposta possível da sociedade está, sim, em continuar a ocupar as ruas. Mas passa por um elemento subsidiário fundamental, que é fazê-lo não apenas pelo “fora Temer”, mas fundamentalmente pelo direito de se manifestar. Na realidade, sabemos que os motes são intrínsecos e indissociáveis. Temer não só é Cunha – e Cunha é Temer. Temer é “pausa democrática”, nos dizeres bizarros de Ayres Britto. Ou, melhor: Temer é Choque.

Mas a essencial liberdade de se expressar precisa ser encampada com força para atrair ainda muito mais gente para os atos – pessoas que, por mil razões, temem ser associadas ao “vermelho” contido em algumas das bandeiras que flanam nas manifestações. É preciso amplificar ainda mais, então, essa voz das ruas, tornando-a ainda mais plural. Por óbvio, muitos que foram nos atos contra Dilma – e que prometiam tirar “um político por vez” agora estão em casa, satisfeitos (ou, quem sabe, envergonhados). Mas certamente há alguns que o fizeram imbuídos, simultaneamente, de verdadeira insatisfação e de sentimento democrático. Devem haver. Que sejam, sim, trazidos a participar, seja para perceberem materialmente que tirar os reais “donos do poder” é tarefa bem mais complexa do que afastar Dilma, seja para compreenderem, em face da postura vexatória e constrangedora dos meios de comunicação, o que é que realmente está acontecendo no país.

É preciso incendiar a indignação democrática de muitos que ainda estão em casa – e que não têm necessariamente histórico de militância, defendem vigorosamente a ética na política e, talvez, não veem determinadas forças progressistas com particular simpatia. São pessoas que, por sua integridade, veem a violência como um “cruzar o rubicão”, um fato inaceitável, como ocorrera em 2013. O que está em curso é maior do que essas particularidades eventualmente dissonantes com os progressistas de sempre que, em geral, desunem a própria esquerda e, em especial, esta e os centristas – que, hoje, são muitos no país. É preciso mostrar que o “fora Temer” é parte – e não o todo – dessa indignação democrática. Queremos mais República, e Temer representa seu negativo. Precisamos de mais “público”, e não aceitar Temer constitui um rito de passagem nessa reivindicação.

Os democratas não temos escolha. Teremos que ocupar, resistir e conquistar apoio de segmentos com os quais não necessariamente concordamos. Teremos de ser coerentes em nosso apelo democrático para atrairmos forças sociais de diferentes matizes, para mostrarmos a potência dessa reivindicação democrática. Teremos de perceber, ao final das contas, que é essa é a maior e mais bela vocação da nossa sociedade plural. É ela o ponto de inflexão fundamental que está em jogo, como já esteve antes: em 1954, em 1964, em 1968, em 1984, em 1988. Que sejamos capazes de criar uma verdadeira e extensa frente democrática, pois o tamanho da crise político-institucional que nos marca pede exatamente isso: um freio vigoroso ao autoritarismo renitente que toma conta de nosso país. É essa a tensão que está posta. Se falharmos, não exatamente repetiremos 1937 ou 1969. Mas poderemos permitir a inauguração de um capítulo – de um “novo normal autoritário” que não gostaremos de viver – e de reler.

Redação

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  1. “Teremos de ser coerentes em

    “Teremos de ser coerentes em nosso apelo democrático para atrairmos forças sociais de diferentes matizes, para mostrarmos a potência dessa reivindicação democrática.”

    Essa tarefa, eu acho que a direita cumpre por nós. Se alguém precisa que lhe seja explicada a diferença entre a “ditadura” “lulopetista”, que permitia a todos manifestar-se como quisessem, e a “democracia” temerosa, que reivindica mais pau no lombo do povo, esse alguém é irrecuperável para a luta democrática. É preciso divulgar os fatos, mas quem os explica é a lógica intrínseca das ações da direita. O povo pode ser mal informado, mas não é burro. E quem é burro de propósito, bem, estes ficam e ficarão à margem da luta democrática, de livre e espontânea vontade.

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