Apatia e o surgimento do culto da força nas eleições, por Vladimir Safatle

 
Jornal GGN – Vladimir Safatle, professor do Departamento de filosofia da Universidade de São Paulo, analisa os resultados das eleições municipais, incluindo o alto número de votos nulos e brancos, além das abstenções. 
 
Para ele, há um sentimento de apatia em relação à política no país, como se a população visse os “embates eleitorais como uma pantomima esvaziada de sentido”. Safatle também questiona a suposta ascensão do conservadorismo nacional.
 
O professor argumenta que, em momentos de crise, “parte da população que escolhe aqueles que lhe parecem mais fortes”. Para ele, o culto da força aparece há um desaparecimento da crença na transformação política, afirmando que o país precisa vencer esse sentimento e também a apatia que envolve parte significativa da população. 

 
Leia a coluna completa abaixo:
 
Da Folha
 
O culto da força surge quando a crença na transformação política desaparece
 
Vladimir Safatle
 
Não faltaram análises sobre as eleições do último domingo (30). Mas talvez seja interessante começar a se perguntar até que ponto essa eleição foi realmente relevante, até que ponto foi um bom termômetro a medir o pulso da sociedade brasileira.
 
Pois a grande quantidade de votos brancos e nulos, nos dois turnos, mostra que parcelas significativas da população veem os embates eleitorais como uma pantomima esvaziada de sentido. Ou seja, o sentimento fundamental foi, em larga medida, de apatia.
 
Essa apatia é velha conhecida do Brasil. Ela descreve o sentimento de que as verdadeiras decisões políticas passam ao largo do processo eleitoral. Expressa a percepção de que somos chamados às urnas apenas para representar numa peça de teatro em que, no final, qualquer que seja a escolha, nossas vidas continuarão basicamente como antes.
 
Podemos acreditar que esse sentimento é fruto de um julgamento incorreto, mas é certo que ele está lá, presente, a expressar a degradação da crença na democracia brasileira e em seus atores.
 
Mas outro fenômeno acompanhou as últimas eleições: o colapso eleitoral da esquerda brasileira. Seria esse colapso resultado de alguma forma de ascensão do conservadorismo nacional que, pela primeira vez na história do país, caminharia em direção a uma verdadeira hegemonia política e cultural?
 
Não faltam os que gostariam de ler o momento atual desta forma, mas creio que eles agem mais por desejo do que por capacidade de análise.
 
Difícil imaginar que parcelas significativas votaram em Doria ou Crivella por entusiasmo com suas ideias. Mesmo a temática do “voto evangélico” precisaria ser nuançada. Talvez seja mais correto dizer que, na verdade, esses votos foram votos de adesão à força.
 
Lembremos deste princípio fundamental em situações de crise e conflitos generalizados: há uma parte da população que escolhe aqueles que lhe parecem mais fortes. Creem que é melhor um governo forte do que uma comunidade em desagregação. De certa forma, votam a partir do medo e da procura por amparo. Este é um sintoma da redução da política à gestão do medo social.
 
Nesse sentido, a temática do voto sanção ao PT (e, por consequência, contra a esquerda) diz apenas metade da verdade. De fato, houve punição, mas não parece honesto dizer, por exemplo, que ela foi à corrupção.
 
É desrespeitar os princípios elementares de lógica acreditar que alguém recusa um partido envolvido em corrupção para abraçar um pastor representante de uma igreja cujo líder tem ficha corrida substancial na polícia ou, ainda, para se entusiasmar com um empresário cheio de negócios obscuros e representante de um grupo político prenhe de escândalos. Nenhum dos vitoriosos passa em um teste elementar de moralidade.
 
Muito menos seria correto dizer que tal sanção foi contra a incompetência no governo. Crivella foi sócio do lulismo até a última hora, seu partido era o partido de José Alencar. Imaginar que um julgamento sobre incompetência do governo anterior não o afetaria é desprovido de sentido. Da mesma forma, descrever os 20 anos de tucanato paulista como modelo de competência (com seu racionamento de água, fechamento de escolas, o metrô de construção mais lenta do mundo, etc.) é pouco sério.
 
Na verdade, a sanção contra o PT foi, de certa forma, uma sanção contra sua fraqueza. Os últimos anos do PT no poder foram anos de um governo fraco. Por mais cínico que possa parecer, o fato de um partido como o PSDB ser imune a processos e à Justiça, demonstra para certa parcela da população que ele tem força suficiente para “controlar o caos”. O mesmo vale para uma igreja que parece sempre renascer das cinzas, imune a todo escândalo.
 
Esse culto da força sempre aparece quando a crença na transformação política desaparece. Ele é um sentimento reativo que convive, atualmente, com a apatia de outra parte da população.
 
Vencer esses dois sentimentos será o primeiro desafio se não quisermos ver o país se afundar na sua própria impotência.
Redação

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