Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Aranhas, morte e identidade no filme “O Homem Duplicado”, por Wilson Ferreira

Ver a si mesmo em uma réplica ou imagem sempre foi considerado um evento misterioso e mágico. Em muitas culturas, ver o próprio duplo pode ser um prenúncio da morte. Inspirado em livro do escritor português José Saramago, o filme “O Homem Duplicado” (Enemy, 2013) do diretor canadense Denis Villeneuve vai atualizar essa mitologia, trazendo-a para uma tradição de filmes que tematizam o problema da identidade: o que você faria se visse em um filme um ator que fosse uma réplica exata sua? Villeneuve vai explorar o tema psicanalítico da busca da identidade através do espelho. Uma jornada perigosa, pois nesse caminho podemos nos confrontar com os nossos desejos mais íntimos, criando uma nova ordem: caos é a ordem que ainda não foi decifrada.

Em um cultura atual de selfies e timelines das redes sociais repletas com nossas fotografias fica difícil imaginarmos um tempo onde as pessoas podiam ficar com medo das suas própria imagens.

Do espelho à fotografia, a contemplação de uma réplica de si mesmo sempre foi considerado um evento misterioso, como, por exemplo, todo o misticismo que cerca os espelhos ou os primórdios da fotografia – as pessoas ficaram assustadas com a fidelidade do resultado, só se tornando popular depois que descobriram que era possível retocá-las. Ou seja, depois de que elas passaram para o campo da simulação.

Em todas as culturas, ver o próprio duplo é uma experiência terrível e às vezes até mesmo o prenúncio da própria morte.

 

Mas no cinema, o tema do duplo passou a ter uma ressonância maior com a questão da identidade, certamente porque a sala escura de projeção é a caverna platônica moderna onde, isolados na escuridão, vemos na tela um espelho do nosso psiquismo.

Desde o filme The Man Who Haunted Yorself (1970), passando por Coração Satânico (1987), Gêmeos – Mórbida Semelhança (1988), Quero Ser John Malkovich (1999), O Grande Truque (2006), Moon (2009), Cisne Negro (2010), o tema do duplo foi anexado à busca da identidade onde o protagonista mergulha numa situação de esquizofrenia e caos.

 No filme O Homem Duplicado o diretor canadense David Villeneuve (conhecido pelos seus filmes de conflitos violentos como Incendies e Prisioners) abandona o campo dos conflitos violentos da vida real para entrar no terreno das perplexidades subjetivas do sonho. Muito embora o diretor crie um estranhamento ao misturar elementos do fantástico com uma narrativa realista que no início parece sugerir ao espectador que estamos diante de um thriller.

O filme é uma adaptação do livro do escritor português José Saramago O Homem Duplicado que discute as implicações filosóficas de uma questão aparentemente prosaica: o que você faria se descobrisse, ao assistir a um filme, que existe uma pessoa que é a sua cópia perfeita?

O Filme

O Homem duplicado inicia epígrafe provocativa: “O Caos é a ordem que ainda não foi decifrada”, para em seguida passarmos por duas sequências que, desconfiamos, nada tem a ver com o tempo presente. Pode ser tanto um flash back como um flash foward. Mas a primeira pista para deciframos esse caos que é sugerido na epígrafe está logo na segunda sequência, em um estilo bem kubrickiano que lembra o filme De Olhos Bem Fechados – que aliás, em entrevistas, Villeneuve atribui uma das influências para esse filme.

Nessa sequência vemos homens que parecem ser poderosos em uma espécie de clube fechado onde acompanham performances eróticas de mulheres que se desnudam para performar fantasias pervertidas como, por exemplo, uma envolvendo uma aranha e um sapato de salto agulha… Intimidade e sexualidade são as pistas para decifrar o enigma que surgirá à frente na narrativa.

Corta para a vida de um pacato professor de História em uma Universidade na cidade de Toronto, Adam Bell (Jake Gyllenhaal). Cada aspecto da sua vida é enfadonho, monótono e sem novidades. Recém divorciado, vive com sua namorada Mary: o sexo selvagem na intimidade e os silêncios gelados do casal indicam um relacionamento prestes a implodir.

Tudo muda depois de assistir a um DVD e perceber algo de estranho no fundo de uma cena: vê um figurante cujo ator é exatamente como ele. Assustado, procura os nomes do cast nos créditos finais do filme e faz uma pesquisa pela Internet, e descobre que o ator chama-se Anthony Claire e que tem apenas três filmes na sua breve carreira em produções de baixa qualidade. Adam descobre onde Anthony vive e tenta estabelecer contato, mas só recebe reações suspeitas dele e da sua esposa grávida.

Nas suas vidas paralelas, ambos não parecem ser profissionalmente realizados e enfrentam a meia idade com uma insatisfação melancólica que talvez mascare uma raiva subjacente e um desejo por sexo ou luxúria como forma de atacar o mundo ou alguém.

 

Igualmente os dois personagens estão envolvidos com mulheres loiras e fisicamente parecidas, inclusive nas dificuldades de relacionamento com seus parceiros.

Quando finalmente Adam e Anthony se encontram, observamos os contrastes sutis físicos e emocionais: Adam anda desengonçado, hesitante e emocionalmente é ressentido e recessivo. Enquanto seu duplo é assertivo, imperioso e mais cruel.

O realismo fantástico de O Homem Duplicado

A visão espelhada e complementar dos duplos sugere as clássicas oposições arquetípicas do psiquismo humano: Yin e Yang, apolíneo e dionisíaco, superego e id. Mas esse encontro vai produzir muito menos reflexão e mais hostilidade e competitividade dos personagens: cada um vai tentar ir para a cama com a mulher do outro, e apenas uma será deixada viva no final.

O Homem Duplicado cria uma tensão que para um espectador acostumado a filmes com narrativa realista ou verossímil poderá parecer absolutamente sem sentido. Villeneuve propositalmente quer criar desconforto e perplexidade no espectador ao inserir elementos do fantástico e do surrealismo na própria realidade.

Além do argumento central proposto por Saramago de duplos que se encontram e não possuem nenhum grau de parentesco, Villeneuve acrescenta um estranho simbolismo que irrompe sem aviso em alguns momentos do filme: a aranha. No próprio pôster promocional do filme vemos uma gigantesca aranha caminhando entre os arranha-céus de Toronto.

O simbolismo da aranha

Segundo o diretor a aranha foi uma ideia que surgiu durante a adaptação do livro original: “para mim a aranha é a perfeita imagem para traduzir algumas ideias do livro. Estava em busca de uma besta que inspirasse um sentimento cuja principal ideia fosse a inteligência. Então percebi que a aranha era a melhor imagem de uma besta que alia uma forte inteligência com elegância”.

 
Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

2 Comentários

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  1. O filme é soberbo, tanto

    O filme é soberbo, tanto tecnicamente, quanto no roteiro.
    O símbolo escolhido para pontuar a trama não poderia ser melhor e mais significativo.
    Denis Villeneuve é um diretor pra se ficar de olho.

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