Brasil 2019: o contexto para um golpe de estado, por Rômulo Garzillo

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Rômulo Garzillo

No Justificando

Carl Schmitt, um dos mais célebres juristas do Regime Nazista, foi assim considerado, sobretudo, pelo desenvolvimento de sua teoria sobre o estado de exceção [1]. Em poucas palavras, o estado de exceção de Carl Schmitt pode ser traduzido como a suspensão da Constituição por meio de uma decisão soberana, cuja finalidade repousa em  fazer cessar uma situação de caos político-econômico, de modo a restabelecer, assim, a normalidade no seio social. Em outros termos, trata-se do meio pelo qual o titular do Poder intervém diretamente na política – ignorando as amarras jurídicas – para devolver a ordem à sociedade. A título de exemplo, podemos citar o AI-5 que suspendeu uma série de direitos – como o habeas corpus – com o intuito de pôr fim à “ameaça comunista” que gerava, segundo eles, a instabilidade político-institucional. Sob essa lógica, não é possível apenas compreender a Ditadura Militar de 1964, mas ainda todos os demais regimes excepcionais, razão pela qual o estudo de Carl Schmitt mantém-se vivo, até os dias de hoje, quando o assunto são os golpes de estado, ditaduras, totalitarismo e afins [2].
 
De fato, não acredito – como boa parte dos brasileiros – que tanto Bolsonaro como Haddad, caso vençam as eleições, sejam capazes de dar um golpe. Não acredito nisso, e isso por um único motivo: ambos não têm força bélica para tanto, tampouco proximidade com o Exército. Isso porque, para dar um golpe, é necessário a subversão de toda uma ordem constitucional. Não basta ter grito, é importante ser capaz de invalidar a força defensiva do Estado brasileiro, ou, talvez, unir-se a ela. E justamente por tais motivos que todos os golpes institucionais que ocorreram no Brasil – excetuando-se o de 1930 – foram realizados com apoio do Poder Militar, este sim, detentor da força bélica. Deste modo, aqui vai um chute meu: duvido que Haddad e Bolsonaro darão um golpe.
 
No entanto, desde o impeachment de 2016, bem como com o avanço do ativismo judicial protagonizado pelo STF, fato é que a Constituição Federal de 1988 vem sofrendo fortes abalos. A marcha por um modelo econômico que reduza os direitos sociais conquistados desde a Era Vargas vem conquistando o espaço que antes era ocupado pelas normas constitucional. Vale dizer: se as reformas – cuja intenção é baratear o custo de mão de obra nacional para ser utilizado por empresas estrangeiras – não passar por bem, então vai passar por mal.
 
E embora não haja um golpe propriamente dito – com a violenta suspensão da Carta Constitucional -, há certos juristas, dentre eles, Pedro Estevam Serrano, que vêm defendendo a ideia da existência de medidas de exceção no interior da democracia. Ou seja, a coexistência de um regime autoritário sob o manto formal da Constituição. Tal perspectiva ainda se comprova, por exemplo, com o avanço das reformas de austeridade de Temer, como a EC n. 95, que congelou os gastos do governo – em saúde e educação – por mais de 20 anos. Essa medida não apenas foi um tiro nos direitos sociais da Carta Política (art. 6º, CF), mas ainda é um golpe mortal na própria lógica diretiva de implementação positiva de direitos no âmbito do nosso sistema normativo (art. 3º, CF). Assim, é o que pode-se extrair da leitura do art. 60, §4º, IV c/c art. 5º, §2º da CF [3], que visa estabelecer, nada menos, que a proibição da restrição de qualquer direito fundamental – esteja ele contido ou não no texto constitucional.
 
Contudo, conforme as eleições se aproximam, veio à tona o assunto de que a dupla  HxB (Haddad x Bolsonaro) proporá – ganhe quem ganhar – a criação de uma nova Constituinte. E não somente o assunto veio à tona, como também polarizou ainda mais o já caótico embate político nacional. Mas o que significa propor uma Constituinte? Uma Constituinte pode ser proposta? Qual lei regulamenta a propositura de uma Constituinte? É constitucional a criação de uma Constituinte?   
 
A criação de uma Constituinte não está – e nem poderia estar – previsto em lei. Uma Constituinte nada mais é senão o nascimento de um novo Estado, em detrimento da morte de um Estado antigo. Trata-se do anúncio do fim de uma institucionalidade, para a criação de uma outra – com todo o seu arcabouço de Poder. Como diria Lassalle, seria um rearranjo dos fatores reais de poder a darem luz a uma nova Constituição escrita, representativa, portanto, de tais fatores. De qualquer modo, uma Constituinte significa – queira-se ou não – o fim de um Estado para o nascimento de um outro. Tal medida só poderia ser democrática se viesse do próprio povo. Não obstante, não é o que se viu das propostas de HxB que, surgiram, ambas, da cúpula dos respectivos partidos. Nem é preciso adentrar na cabal irresponsabilidade de tais propostas que, em meio a essa tensão nunca vista, põe o povo brasileiro sob a sombra de um ato político obscuro e inesperado.
 
Mas, tal como visto, ainda que HxB se esforçassem, não bastaria a eles um bom discurso para colocarem fim a uma Constituição, uma vez que nem o Presidente da República e nem qualquer um dos Poderes, tem atribuições para tanto. Seria necessário, como dito, algo mais. Algo que, não é difícil perceber, eles não têm. A incapacidade da dupla HxB é nítida. Com tamanha impopularidade de cada lado, difícil será a aprovação uma Lei Ordinária que seja, quanto mais de uma Constituinte. A dupla HxB além de encontrar fortes dificuldades para governar, parece que são agentes de um acirramento dos extremos. São políticos cujos discursos parecem incandescer o lado emotivo de seus (anti)eleitores, seja pelo ódio, seja pelo amor. Caso um dos dois vença, há grande chance da crise persistir, e pior, agravar-se.  E, agravando-se, persistir-se-á o curto-circuito das instituições democráticas do país que vivemos a tanto tempo.
 
E eis que chego ao ponto-chave do texto. 
 
Seja Haddad ou Bolsonaro, não importa quem, há grande chance do país mergulhar num profundo caos. Se Haddad vencer, haverá a inequívoca escalada de uma oposição fascista e anti-petista. Caso contrário, o próprio governo Bolsonaro promoverá um governo despótico e irresponsável para com os direitos previstos na Carta Magna. 
 
Em suma, em face de tal instabilidade, resgata-se Carl Schmitt. E como dizia o autor alemão dos tempos sombrios do 3º Reich, é justamente do caos que emerge o Estado de exceção. Ou ainda: é justamente a situação de crise que clama por uma decisão soberana que possa restituir a paz institucional via suspensão do Direito posto. Como vimos, embora HxB sejam incapazes de darem um golpe – por não possuírem os meios -, o Exército, por outro lado, é o detentor da força bélica e o guardião de normalidade estatal. Assim, o acirramento de HxB pode, muito bem, ser o agente motriz da situação emergencial para um eventual golpe militar. O que, inclusive, acentua-se, diante dos cotidianos golpes que a Constituição vêm sofrendo, distanciando-se da realidade fática, e tornando-se um mero pedaço de papel. Não importa se é Haddad ou Bolsonaro, há grandes chances de haver um golpe em marcha.
 
[1] Nas palavras de Rolando Porto Macedo Jr., o pensamento de Carl Schmitt “exerceu grande influência na Alemanha no início do século XX e ainda continua a exercer grande influência no mundo jurídico alemão. Ainda hoje, os mais significativos representantes desta escola talvez sejam o jurista alemão Ernst Forsthoff e o politólogo francês Julien Freund. Ademais, as mudanças que seu pensamento sofre são paradigmáticas de uma série de transformações pelas quais passa a práxis jurídica e a teoria do direito no século XX”. MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do direito. 2. ed. Tradução Peter Naumann. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 14.
[2] No Brasil, há importantes estudiosos do tema como os juristas Gilberto Bercovici, Pedro Estevam Serrano e Rafael Valim.
[3] Art. 60 (…) § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (…) IV – os direitos e garantias individuais.
Art. 5º (…) § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
 
Rômulo Monteiro Garzillo é Advogado criminalista e mestre em Filosofia do Direito na PUC/SP com o tema “Estado de Exceção no Brasil Contemporâneo” sob orientação do Professor Pedro Estevam Serrano.
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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