Cenário: por que o desinteresse dos partidos, do Executivo e do Judiciário de melhorar a qualidade da política

A falta de qualidade política da representação eleitoral tem legitimado a crescente invasão de atribuições do Legislativo pelo Judiciário e pelo Executivo. Mas, ao contrário do que se poderia esperar, o debate sobre a deficiência dos quadros do Congresso e a pouca representatividade dos partidos não se traduzem em leis ou em uma ação política mais efetiva para colocar a política em patamar mais elevado.

Existem interesses consolidados que trabalham contra qualquer mudança do status quo. O mais óbvio é o dos parlamentares profissionais, que são eleitos por esse sistema político e estariam fora do jogo se as condições dadas para convivência dentro de um partido, ou as regras eleitorais, fossem mudadas. Isso é fácil de entender. Não são visíveis, ou tão óbvias, todavia, as razões para o desinteresse do Judiciário e do Executivo de ser parte do debate e da ação necessárias para fazer uma mudança profunda na estrutura política do país.

Na prática, todavia, a fragilidade do Legislativo – que é, por excelência, aquele com maior conteúdo democrático do sistema de tripartição de poderes – tem justificado ações de tutela por parte do Judiciário.

O Executivo, embora aponte a falta de qualidade dos quadros e partidos como a base de sua dificuldade de governar, manipula essa fragilidade em nome da governabilidade. No final das contas, a negociação de interesses de clientela para aprovar projetos de seu interesse no Congresso tem um custo menor do que o debate programático, que é mais demorado, mais denso e define compromissos políticos mais efetivos entre os partidos de apoio ao governo. O Executivo mudaria a qualidade da relação política com os partidos representados no Congresso se a negociação fosse programática, mas os interesses ligeiros do governo, e as negociações ligeiras, prevalecem.

A qualidade dos quadros partidários que definem a maioria do Legislativo é ruim; o Judiciário tutela o Legislativo a pretexto de preservar o interesse público, e isso o mantém em permanente superioridade em relação a um poder constituído pelo voto; o Executivo mantém instrumentos para governar sem o Congresso, sob o argumento de que a soma dos interesses políticos individuais dos parlamentares pode imobilizá-lo. E tudo isso legitima um discurso conservador segundo o qual a qualidade política é ruim porque vem do voto, e o eleitor o exerce com a irracionalidade de interesses individuais – e, fundamentalmente, não é tão qualificado como o ministro do Supremo, ou um presidente da República, ou um ministro, e por isso não produz uma representação qualificada. E por isso os representantes eleitos pelo voto direto naturalmente deveriam permanecer sob tutela, em especial dos homens togados e cultos do Judiciário.

Da parte dos partidos políticos que integram o Congresso, investir na renovação e na qualidade política de seus quadros significa desmontar uma estrutura de poder interna que define a burocracia consolidada da agremiação, no âmbito nacional, e os chefes políticos nacionais e regionais. É abrir mão de poder.

Para todos os lados da equação do sistema de tripartição de poderes, a perspectiva de mudança é ameaçadora.

O poder dos chefes políticos que conseguem, pelo voto, chegar ao Congresso, é o que decorre da negociação individual de seu voto em plenário. Para os honestos e bem intencionados, a negociação de questões programáticas e até a execução de obras para as suas cidades, previstas em emendas parlamentares ao Orçamento. Para os clientelistas, a possibilidade de troca de favores e posições com o governo federal pelo voto. Para os venais, as trocas com o poder público e privado. Para os partidos vale essa mesma lógica. Os tradicionais assimilaram a cultura de que os seus líderes apenas obtêm apoio de suas bancadas são capazes de transitar interesses de todos (não os interesses coletivos, mas o somatório dos interesses individuais) no Executivo de forma eficiente – isso é o que faz, por exemplo, o PMDB tão venal quanto é. A venalidade é tanto maior, quanto mais o partido tiver o poder de desestabilizar maiorias. Daí seu preço aumenta. Se aumenta a qualidade do Congresso, diminui o preço dos políticos tradicionais. Por isso é tão difícil aprovar matérias que desmontem essa equação, mesmo que os resultados dessa mudança seja a melhoria da qualidade da política.

A equação do Congresso, todavia, é conhecida, e de senso comum. E, como é conhecida, fica difícil entender por que um STF, que tem o poder constitucional de controle sobre o Legislativo, define vetos a medidas legais que possam ter o poder de alterar essa realidade quando elas milagrosamente irrompem da inércia do Poder Legislativo para legislar sobre partidos e eleições. O veto à cláusula de barreira, a definição de perda de mandato como pena à infidelidade partidária, a proibição de tramitação de matéria que estabelece limites à criação de novos partidos, as intervenções no projeto Ficha Limpa – toda a ação do STF, ao longo da última década, tem sido no sentido de manter um quadro político com qualidade declinante. Simultaneamente, a pretexto de que este Congresso abre um “vácuo legislativo”, o Supremo legisla. Não se pode dizer que essa seja uma ação deliberada dos ministros do STF, mas esta é a função que o STF tem desempenhado na construção da democracia brasileira. A lógica é a seguinte: se eu posso legislar porque o Congresso é deficiente, melhor manter o Congresso assim.

Redação

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