Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
[email protected]

“Chappie” e a “consciência hipodérmica”, por Wilson Ferreira

Depois do favelão e lixo nos quais o futuro se transformou em “Distrito 9” e “Elysium”, dessa vez com o filme “Chappie” (2015) Neil Blomkamp visita a pedra filosofal do gênero ficção científica: a Inteligência Artificial. O subtexto político dos filmes anteriores continua (África do Sul, Globalização e apartheid), mas dessa vez parece que Blomkamp cedeu ao “product placement” (inserção subliminar de produtos e marcas) e à agenda que orienta as produções do gênero pelos grandes estúdios: o tecnognosticismo – a ambição pós-humana de nos livrarmos da carne e do orgânico através de uma suposta transcendência espiritual possibilitada pelo escaneamento da consciência e a sua conversão em bytes. Ao contrário do filme “AI” (2001), também uma alusão à fábula de Pinóquio (uma máquina que quer se transformar em ser humano), aqui Chappie tenta emular sentimentos humanos, mas dessa vez através de uma consciência que se assemelha à metáfora da “agulha hipodérmica”. Se em “A.I.” a máquina queria acreditar naquilo que não podia ser visto ou sentido, em Chappie a máquina não tem sonhos – ela quer apenas imitar – filme sugerido pelo nosso leitor Joari Carvalho.

Chappie, do diretor Neil Blomkamp (Distrito 9 e Elysium), é um filme dentro de um subgênero do sci fi que os pesquisadores chamam de “ficção científica do Sul”: filmes em estilo realista monckmentary (feitos em estilo documentário mas em tom paródico) com atores e empresas de países considerados periféricos e com temas ligados às mazelas da globalização sócio econômica – privatização, imigrantes ilegais, favelização, exclusão, máfias internacionais etc.

O tom mais marcante desse subgênero é mostrar como a alta tecnologia (robótica, nanotecnologia etc.) convive de forma conflitiva com favelas, deterioração urbana, lixo, precarização do trabalho e sucateamento do Estado. O que torna os filmes desse subgênero potencialmente críticos em relação ao atual status quo da Globalização.

Ao contrário do que foi Distrito 9 (uma crítica ácida dos temas como racismo, exclusão e apartheid), Chappie decepciona os admiradores desse subgênero sci fi ao perceber que Blomkamp parece ter cedido primeiro, e de forma descarada, ao product placement (inserção subliminar de marcas e produtos na narrativa) e, numa discussão mais filosófica, ao tecnognosticismo – a ambição pós-humana de nos livrarmos da carne e do orgânico através de uma suposta transcendência espiritual possibilitada pelo escaneamento da consciência e a sua conversão em bytes.

O tecnognosticismo é a motivação mística por trás da atual agenda tecnocientífica: o esforço multidisciplinar envolvendo a confluência das neurociências, ciências cognitivas, Cibernética, Inteligência Artificial e Teoria da Informação. A procura de um modelo computacional que possibilite não só compreender a dinâmica dos processos mentais, mas principalmente resolver o enigma da consciência com finalidades de manipulação e controle – sobre esse conceito clique aqui.

O Filme

Trabalhando com um roteiro escrito em conjunto com sua esposa Terri Tatchell, Neil Blomkamp demonstra ter uma sensação real por distopias e cenas caóticas. Por isso ele retorna para a sua Johanesburgo natal, África do Sul, para narrar uma história passada em futuro próximo onde as forças policiais passam a depender de uma empresa paramilitar que fabricas robôs armados (os “scouts”) que ajudarão a impor a lei e a ordem numa cidade dominada pelo crime organizado por máfias que combinam ritos tribais com alta tecnologia.

Após as cenas introdutórias com imagens da CNN e telejornais locais que mostram os choques policiais nas ruas e imagens aéreas de grandes áreas de favelas e pobreza, entram em ação os robôs com seus revestimentos foscos cinzentos, orelhas de coelho, cabeças giratórias e membros articulados – cujo layout lembra muito os “camarões” aliens de Distrito 9.

Aos poucos surgem os protagonistas: o jovem Deon (Dev Patel), o engenheiro responsável pelo projeto dos scouts, e seus únicos colegas – a sua chefe Michelle (Sigourney Weaver) e um suspeitíssimo ex-soldado que virou engenheiro chamado Vincent (Hugh Jackman). Vincent desenvolve um projeto alternativo de robô militar e ao mesmo tempo desfila constantemente pelo escritório rangendo agressivamente os dentes com uma arma na cintura. Ele inveja o sucesso dos scouts e estuda uma forma de sabotá-los para que o seu monstruoso robô seja o substituto.

Embora o projeto dos scouts seja bem sucedido e o preferido pela empresa Tetravaal (o nome é uma alusão ao curta de 2004 do diretor que deu origem ao argumento do filme), Deon quer algo mais: criar um robô consciente que sinta, de forma real, emoções humanas. Dada a eficácia dos robôs originais, Michelle acha o projeto uma perda de tempo – que empresa paramilitar gostaria de ver robôs pensando por sua própria conta em situações de conflito?

A cena em que Dave resolve o problema fundamental da Cibernética, a Inteligência Artificial, é um dos mais explícitos exemplos do chamado product placement (inserção de marcas e produtos em um filme) dos últimos tempos: chegando em casa à noite, senta-se em frente à tela do computador e pede a um pequeno robô doméstico que pegue o energético Red Bull na geladeira. Após um gole do produto, Dave por fim chega à linha de códigos que resolve o problema da IA e salva em uma pen drive o arquivo “consciousceness.dat”. É como se o filme confirmasse aquele anúncio: “Red Bull te dá asas…”.

Dave rouba um robô defeituoso da linha de montagem da Transvaal. Mas, na fuga Dave e o robô caem nas mãos de um trio de ladrões, Ninja, Yolandi (na vida real membros do grupo musical raper-punk Die Antwoord, interpretando eles próprios) e Amerika (Jose Pablo Castillo), que desejam usar o robô para um assalto a banco para se livrarem de uma dívida com uma grande organização mafiosa.

Nessas condições adversas, Dave espeta a pen drive com a consciência virtual no robô. Assim nasce Chappie com um comportamento que, a princípio, assemelha-se a um bebê assustado. 

Mas Vincent suspeita de que algo de estranho ocorre com Dave e o desaparecimento do robô. Vincent pressente uma oportunidade de encontrar um ponto fraco para rackear o projeto dos scouts e destruí-lo para que o seu projeto seja o próximo escolhido pela Transvaal.

Consciência e a agulha hipodérmica

Para a crítica especializada, o grande problema com o roteiro do filme diz respeito ao amadurecimento de Chappie, retratado de modo atropelado: num momento inicial a máquina só diz papai e mamãe; no outro já começa a demonstrar senso comparativo e filosófico.

Mas, olhando com mais cuidado as cenas do aprendizado de Chappie onde o seu amadurecimento parece evoluir de acordo com a mudança do tom de cada cena (maternal, violento, irônico, infantil etc.), talvez o problema não esteja no roteiro mas no conceito de consciência com o qual trabalha Neil Blomkamp – uma consciência, por assim dizer, “hipodérmica”.

A metáfora da agulha hipodérmica vem da chamada Teoria Hipodérmica do teórico da comunicação Harold Laswell (1902-1978) onde, baseado a psicologia comportamental, acreditava que a mídia funcionasse como uma agulha que injetava estímulos em receptores passivos cujos  comportamentos seriam imediatamente moldados. Essa teoria baseia-se na tese da psicologia comportamental de que a consciência humana nada mais é do que uma massa moldável a partir de estímulos externos. Uma massa disforme (ou um “golem”) que apenas ganha vida e significado a partir de estímulos repetitivos ou códigos.

A cena chave do filme é quando Chappie está diante de um aparelho de TV e vê a animação do He-Man. O robô tenta imitar os gestos e falas do personagem, assim como mais tarde tentará imitar os trejeitos do trio de bandidos e andar como um gangsta ou rapper.

O amadurecimento de Chappie dá-se por sobressaltos não por um problema de roteiro, mas pela filosofia hipodérmica (e por extensão cibernética) de consciência – Chappie é a resultante de cada meio em que está: absorve estímulos e se molda mimeticamente a eles. 

Blomkamp nos ajuda a revelar a noção de consciência que está por trás do atual projeto tecnognóstico da agenda científica – uma consciência descorporificada, reduzida apenas a bites que se organizariam a partir de estímulos provenientes de fontes externas. Não é à toa que Chappie finalmente toma consciência de si mesmo quando se vê a em uma representação gráfica da própria mente em uma tela de computador – não há mais Fase do Espelho no sentido lacaniano, porque em Chappie não existe inconsciente ou corpo. O espelho foi substituído pela interface gráfica.

 

Uma consciência sem sonhos

É nesse ponto que a noção de Inteligência Artificial de Blomkamp é inconsistente por ser fruto dessa visão hipodérmica e tecnognóstica da consciência. Como bem demonstrou o filme A.I. (2001), para que haja consciência é necessário a inconsciência (o mundo dos sonhos e da fantasia): a Inteligência Artificial só existirá no dia em que uma máquina acreditar naquilo que não pode ser visto ou medido – acreditar no mundo de onde nascem os sonhos: o inconsciente.

>>>>>>>>>>Leia mais>>>>>

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Concordo com o texto mas isso

    Concordo com o texto mas isso não desmerece o filme. Num tempo como este em que tudo é banal e até idiota, chega a ser bem vindo.

  2. Não sabemos nada, logo nada sabemos.

    É nesse ponto que a noção de Inteligência Artificial de Blomkamp é inconsistente por ser fruto dessa visão hipodérmica e tecnognóstica da consciência. Como bem demonstrou o filme A.I. (2001), para que haja consciência é necessário a inconsciência (o mundo dos sonhos e da fantasia): a Inteligência Artificial só existirá no dia em que uma máquina acreditar naquilo que não pode ser visto ou medido – acreditar no mundo de onde nascem os sonhos: o inconsciente.

    É fácil entender que um filme não é um trabalho cientifico que possa ser usado como referência para balizar alguma tese (“Como bem demonstrou o filme A.I. (2001), para que haja consciência é necessário a inconsciência…”). Assim, é fora de questão discutir qualquer coisa nesses termos.

    Ninguém sabe com certeza o que é consciência, mas não é difícil aceitar que inconsciência é um processo análogo que se diferencia pelo aspecto de não ser exteriorizado, ou ser percebido, diretamente. Por analogia uma organização possui porta vozes e relações públicas que dialogam diretamente com o exterior, mas eles manifestam as decisões internas tomadas por outros elementos, igualmente humanos e pensantes, mas invisíveis ao exterior. Assim saber que um existe porque o outro existe não explica como ambos funcionam.

    Da mesma forma é perda de tempo tentar explicar o que seja a formação da noção de realidade dizendo que ela existe como reverso dos sonhos e nossa imaginação. Isto é, não se sabe o que é sonhar e imaginar. Então não é resposta satisfatória dizer que o sentido da realidade existe por causa de nossa capacidade de sonhar.

    Por outro lado novamente pode-se dizer que tanto a percepção da realidade como a capacidade de sonhar e imaginar são processos idênticos. No caso estamos o tempo todo construindo, ou projetando, cenários e simulações de ambientes externos ao nosso eu. O que inclui nossos corpos materiais. A percepção do “cenário realidade” seria identificado (algo aprendidio ou talvez inato, não sei) por haver maior coerência e continuidade da construção do cenário enquanto a imaginação é mais pobre e sujeita a aleatoriedade. Aleatoriedade que na verdade permite a própria imaginação acontecer e produzir idéias, isto é, associação aleatória de eventos separados no tempo e espaço, mas conexos.

  3. Não concordo

    O filme, que filme?, é um alerta, é uma informação, é uma pesquisa, a proposta é possivel, o hoje responde ao futuro, perfeita a carapuça a quem prima pela ignorância. Será que será ser conveniente ser inculto? Belo Trabalho.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador