Como as pós-verdades e deepfakes normalizam a tragédia cotidiana na série “Years and Years”, por Wilson Ferreira

A co-produção HBO com a TV BBC aborda todos os fenômenos atuais que assaltam o mundo, desde a vitória do Brexit em 2016: fake news, deep fake, pós-verdade, nacionalismo, populismo de extrema-direita.

por Wilson Ferreira

Percebemos a realidade por indução: fatos e tragédias mundiais ou nacionais nos apresentam através da mídia como fossem panos de fundo, cenários para os nossos dramas pessoais e familiares. E se a tecnologia reforçarem ainda mais essa percepção indutiva, ao ponto de que a realidade se torne apenas uma alegoria? Apesar de sentirmos os impactos nas nossas vidas, achamos que tudo passa e pode ser normalizado com “jeitinhos” cotidianos. Esse é o tema da série britânica da BBC, em parceria com a HBO, “Years and Years” (2019-): acompanhamos uma típica família de classe média, os Lyons, durante a ascensão de um governo de extrema-direita no Reino Unido, enquanto o mundo cai aos pedaços por causa do conflito nuclear dos EUA de Donald Trump com a China. Mas diante de tudo isso, o cotidiano tecnologizado fornece as bolhas necessárias (pós-verdades, deep fakes etc.) para tudo ser normalizado. Mesmo que tenha que ter 11 empregos uberizados para sobreviver e perdido um milhão de libras num crash bancário. Quer saber o que nos aguarda nos próximos 15 anos? Assista “Years and Years”.

Se a série britânica Black Mirror nos apresenta o lado sombrio do desenvolvimento tecnológico, a série também britânica Years and Years (2019-) examina o lado igualmente sombrio das tendências políticas e culturais que atualmente tomam conta do mundo: como impactam o cotidiano de uma família comum – seus amores, trabalho e amizades.

A co-produção HBO com a TV BBC aborda todos os fenômenos atuais que assaltam o mundo, desde a vitória do Brexit em 2016: fake news, deep fake, pós-verdade, nacionalismo, populismo de extrema-direita. E como essas tendências culturais e políticas coincidem com tendências tecnológicas como o crescimento das redes sociais, dispositivos móveis e a crise da TV, pós-humano etc.

São temas já batidos e debatidos em muitos filmes e documentários recentes como Brexit, The Cleaners, HyperNormalisation ou mesmo a série Black Mirror.

                  Mas o que torna mesmo a série Years and Years interessante e inovadora ao entrar nessa temática, é a sua narrativa indutiva – seu movimento não é do universal ao particular: como um grande evento vai impactar a vida de protagonistas que terão que lidar com suas consequências. Essa é a clássica narrativa dedutiva.

Pelo contrário, Years and Years inicia do particular (o cotidiano da família Lyons), enquanto os grandes eventos são sentidos de forma fragmentada como um cenário ou pano de fundo. E, como nos informa o título da série, as consequências serão sentidas ao logo do tempo, no qual cada episódio salta alguns anos à frente. Até alcançarmos 2034 e vermos as sombrias projeções das rápidas transformações políticas, tecnológicas e culturais.

Filmes como Guerra dos Mundos (2005) ou mesmo a série Handmaid’s Tale apresentam essa interessante forma de narrativa indutiva: como uma invasão extraterrestre é transformada em pano de fundo de um drama de pais separados e a complicada relação com os filhos; ou como um golpe político religioso fundamentalista não foi percebido pelos protagonistas, imersos que estavam em seus cotidianos de amores e trabalhos – os eventos mais decisivos foram sempre percebidos de forma fragmentada e confusa.

Esse é o truque de Years and Years: acompanhamos os dramas cotidianos e prosaicos do clã Lyons (uma típica família de classe média britânica) enquanto permanecem alheios às rápidas transformações do país e do planeta. Ou até percebem de forma fragmentada, em rápidas olhadas na tela da TV ou em vídeos postados em redes sociais.

Paradoxo alienação e comunicação

“Ei, está acontecendo agora uma crise de imigrantes?” “Eu podia jurar que a TV do bar dizia alguma coisa sobre colapso financeiro!” “Aquilo foi uma bomba que explodiu na China?” “Ou foi apenas um episódio de Chernobyl?”.

De forma sagaz, a série mostra as grandes questões políticas e culturais atuais sem o tom professoral de um documentário ou em irritante tom “lunático-conspiratório”. Primeiro, pelo paradoxo de que, apesar de estamos imersos nas redes de comunicação, o mundo ou a realidade se transformaram em mero pano de fundo para o qual estamos alheios – no mais, serve apenas para temas de rápidas conversas à mesa de jantar ou no sofá diante da TV.

Segundo, a série mostra como cada membro da família Lyons representa uma determinada questão: um irmão homo afetivo se apaixona por um imigrante; o outro é consultor financeiro; a outra é defensora ambiental e assim por diante.

Ao longo dos anos, cada membro da família sentirá os impactos brutais do mundo louco lá fora. O que muitas vezes resulta em uma espécie de humor negro: veem pela TV a ascensão política de uma espécie de Trump de saias com uma conversa franca recheada de palavrões e preconceitos, inclinações populistas com extremo moralismo conservador. E o próprio Donald Trump acaba lançando um míssil nuclear contra a China. E os Lyons tocam suas vidas, como se nada estivesse acontecendo.

Apesar de cercados por redes de comunicação e Inteligência Artificial, que os mantêm unidos on line em chats e vídeo-conferências, a realidade ao redor permanece uma coisa vaga. São alheios, fleumáticos, enquanto o mundo ao redor cai em pedaços – tudo parece se normalizar, e as reuniões da família à mesa permanecem, apesar dos empregos e qualidade de vida irem embora ao longo dos anos.

Cada emprego que se perde, cada infortúnio ou tragédia que se abate sobre os Lyons, é visto por eles como surpresa. Simplesmente, não conseguem estabelecer uma relação de causa e efeito entre a realidade ao redor e os dramas privados e familiares.

 Dessa maneira, Years and Years consegue humanizar questões áridas e abstratas atuais que estremecem o cenário político de todo o planeta.

A Série

Years and Years começa em 2019 com as complicações geracionais da família Lyons: Muriel (Anne Reid) e seus netos, a ativista ambiental Edith (Jessica Hynes), o consultor financeiro Stephen (Rory Kinnear), o oficial de imigração gay Daniel (Russel Tovey), a cadeirante Rosie (Ruth Madeley) e seus cônjuges e filhos, incluindo a contabilista hipster Celeste (T’Nia Miller) e sua filha tecnologicamente antenada (e com aspirações pós-humanas) Bethany (Lydia West).

A história começa para essa típica família de classe média bretã com o nascimento do segundo filho de Rosie, enquanto na TV acompanham a primeira aparição pública de uma política de extrema-direita em ascensão: Vivian Rook (Emma Thompson), em um debate em que se apresenta sincera e desbocada, arrancando gargalhadas – ela parece dizer em público aquilo que sempre dizemos em conversas privadas e familiares.

Acompanhamos os dramas pessoais dos Lyons, enquanto Vivian Rook arranca numa carreira meteórica até chegar a primeiro-ministro; a crise com a China chegar ao extremo de Donald Trump lançando um míssil nuclear; e o separatismo da Grã-Bretanha levar a um crash bancário e financeiro – junto com uma grave crise sobre refugiados no Reino Unido.

Redação

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