“Como falar de amor em tempos de dor?”, por Pedro Pouzada Mandelli

Arte: Vinicius De Miranda

do Psicanlistas pela Democracia

“Como falar de amor em tempos de dor?”

por Pedro Pouzada Mandelli

…e de um discurso em que é a morte
que sustenta a existência?
(Lacan, 1960)

Objetivo ou não de uma peça teatral, penso que ela tem um sentido de endereçamento, de falar a alguém que a escute e que, quem sabe, possa ser seu intérprete. Claro que a cada um que a assiste/escuta é levado a mergulhar em afetos que são do singular, da propriedade de cada sujeito como único. E a partir disso ficam recortes que podem ser levados a interpretações ou hipóteses do visto, escutado e sentido.

Assistindo a “Nem mesmo todo o oceano” com a Cia Omondé, somos inundados por diferentes sentimentos, sofremos como espectadores o atropelamento de uma história vivida em nosso país: da dor promovida pela ditadura militar que conseguiu assujeitar muitos sujeitos, o que para a psicanálise é tirá-lo do seu lugar, retirá-lo da possibilidade de se nomear a partir do reconhecimento de seu desejo.
Desejo do protoganista em se tornar médico, ser o orgulho para sua família humilde e amar Dometila. Entretanto, os acontecimentos acabaram por colocá-lo entre os torturadores dos porões e seus afetados.
No desenrolar do espetáculo, fica marcada a conflitiva do que é o amor e do que se é o amar. Ama-se só a si ou ao outro também?

O Brasil militar do ame-o ou deixe-o não contempla o amor, pois ao diferente é dado uma única escolha: deixe-o! Então não se está no amor, mas sim no desamor, que violenta, exclui e tenta exterminar ao não igual (quem sabe por amar só a si e o diferente ser uma ameaça de nunca nos tomar como objeto de seu amor?) Pois, por não sentir ou pensar como nós nunca nos amará? Então a ele, ao desigual não existe lugar!

O que ficou evidente na peça, em que o protagonista era interpretado pelos diferentes atores, remetendo-me que a ele não tinha lugar definido, deixando cada corpo em vários momentos, por ser diferente ao contexto em que estava inserido, era não desejado. Assume seu lugar/corpo na cena final que é sua última morada, quem sabe, nos mostrando a tragédia que viveu no seu assujeitamento junto aos torturadores? Tragédia que se registrou antes do fim, mas seu fim, que é o momento em que abusa fisicamente de sua amada Dometila, inscrevendo-se no lugar que mais abominava: o de violador! Ao amor acredito que ele sempre encontra um caminho. Já ao desamor resta a tragédia, a dor e sofrimento. Extingue-se em si, desmancha-se por si só. Sentença que se deu em ato, no seu ato, com Dometila e no que lhe restou do ato do outro: seu fim!

A todos que viveram este momento sombrio da história brasileira e aos que assistiram à peça, estamos frente a um inquietante, que fica posto nas palavras de Clarice Lispector: “Para que eu continue humana, meu sacrifício será o de esquecer?”

Pedro Pouzada Mandelli. Psicanalista. Membro associado da Sigmund Freud Associação Psicanalítica.

Arte: Vinicius De Miranda

Redação

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