Como ressignificar a história do golpe sem repeti-lo, por Leticia Pedrozo

A fala e o ato, ou: como ressignificar a história do golpe sem repeti-lo

Leticia Pedrozo

A linguagem e as palavras apresentam varias facetas discursivas, a partir de metáforas ou de metonímias elas tentam ressignificar ou resignar aquilo que não cabe em sentidos tácitos. Mas precisamos nos lembrar de que a fala não é só verbo, pois ela também pode ser ato. Mais ainda, quando a palavra se descola do fazer ela se esvazia e as possibilidades de mudança rareiam.

É espantoso que a história do Brasil se repita tão cruelmente a ponto de chegarmos perto de mais um aniversario do Golpe de 1964 revivendo esse fantasma mal elaborado de afronta contra a democracia e os direitos dos cidadãos.

Nas últimas semanas, o povo saiu às ruas, soltou o grito preso na garganta, reivindicou, falou e buscou ser ouvido expressando como uma parcela importante da população não compactua mais com o retorno do reprimido daqueles anos difíceis nos quais a prosperidade econômica não foi suficiente para suplantar o silêncio imposto pelo autoritarismo.

No entanto, a despeito das resistências, a história do Brasil se repete cinicamente de forma atroz para nos lembrar dos nossos velhos traumas. Na tentativa de elaborar, infelizmente não bastou falar e ocupar as ruas, pois o golpe esta sendo dado escancaradamente, a olhos vistos e na luz do dia, para quem quiser ver, as principais mídias veiculam sadicamente essa ferida autoritária que não cicatrizou mesmo depois de mais de 50 anos.

Infelizmente, no Brasil atual, parece que a fala perdeu seu poder de ressignificar pela via do sentido estritamente verbal. Nesse momento precisamos de uma fala em ato, pois o trauma é irreversível e seu fantasma parece desestruturar o país em todos os sentidos; economicamente, socialmente, politicamente, juridicamente, moralmente e simbolicamente, vivemos em um tempo onde ou o ato se dá no tempo certo a fim de elaborar a história para que ela seja feita de forma diferente ou repetiremos o eterno retorno atroz de ganharmos direito e perdermos direitos a cada cinqüenta anos no Brasil.
Precisamos hoje, mais do que nunca, não de uma fala verbal vazia, mas de uma fala como ato contundente, que seja capaz de promover uma renovação do corpo político democrático e real, no lugar da política cínica tal como a que predomina atualmente no nosso Congresso.

O trauma autoritário é um dado da nossa trajetória histórica, nesse momento precisamos de um Ato como transformação, que seja capaz de interromper – mesmo que bruscamente – a repetição já sabida dos velhos golpismos, é preciso abrir uma brecha para a imprevisibilidade do novo, é fundamental um Ato endereçado capaz de traduzir o fato de que a sociedade não suporta mais o mesmo roteiro autoritário, um ato coletivo e comum em defesa e em nome da soberania popular. No Brasil a democracia se tornou um objeto do qual nos desfazemos periodicamente, é preciso cessar com essa repetição desenfreada ousando pensar o novo e ousando fazer o impossível. 

Leticia Pedrozo é psicanalista

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  • A esquerda brasileira criou
    A esquerda brasileira criou um mundo imaginário no qual vive a despeito da realidade. Agora vai ser atropelada por esta realidade exatamente como em 1964. Uma mistura de incompetência com soberba explica isso. Mas o triste mesmo é que graças aos erros tremendos desta esquerda vamos começar um longo ciclo de conservadorismo.

  • coleta seletiva

    “No Brasil a democracia se tornou um objeto do qual nos desfazemos periodicamente, é preciso cessar com essa repetição desenfreada ousando pensar o novo e ousando fazer o impossível.”

    Se ousarmos pensar esse novo – nem que seja como uma veleidade bem intencionada que adivinho na cabeça da Letícia - é forçoso dizer que o lulopetismo é lixo que precisa seguir  junto e misturado com uma montoeira de outros dejetos, sem nem carecer de coleta seletiva.

    A bem da verdade, parte do contencioso destes dias que correm é justamente o fato de que quem se propõe a lixeiro limitar-se justamente e até agora a uma coleta seletiva.

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